Acessibilidade / Reportar erro

Comissões de heteroidentificação e universidade pública: processos, dinâmicas e disputas na implementação das políticas de ação afirmativa

Heteroidentification committees and the public university: processes, dynamics and disputes in the implementation of affirmative action policies

Comisiones de Heteroidentificación y universidad pública: procesos, dinámicas y disputas en la implementación de políticas de acción afirmativa

Resumo

Este artigo versa sobre o desenvolvimento de comissões de heteroidentificação na Universidade Federal Fluminense com vistas à implementação das ações afirmativas de cunho étnico-racial para o ingresso nos cursos de graduação e nos concursos públicos para docentes. A adoção pela mesma instituição de modelos distintos, com base no critério identitário ou exclusivamente fenotípico, evidencia as tensões e as disputas em jogo em relação ao tema. Ao contrastar a operacionalização institucional dessas diferentes comissões será possível observar as singularidades dos modelos analisados, mas também alguns elementos comuns, sobretudo no que se refere às relações complexas entre Poder Judiciário, burocracias e movimentos sociais, bem como aos modos de identificação fenotípica do pardo. Tais elementos são alguns dos principais desafios para garantir tanto o direito de pessoas negras às ações afirmativas quanto o objetivo de mudar a monocromia branca das salas de aula das universidades públicas brasileiras.

Palavras-chave:
Igualdade racial; Educação superior; Ações afirmativas; Comissões de heteroidentificação

Abstract:

This article deals with the development of hetero-identification committees in the Universidade Federal Fluminense with a view toward implementing affirmative action of a ethno-racial variety for admission to undergraduate programs and in public selection processes for professors. The adoption of different models by the same institution, based on identity criteria or exclusively on phenotypic criteria, highlights tensions and disputes. By contrasting the institutional operationalization of these different commissions, the article observes the specificities of the models but also certain common elements, especially with reference to the complex relationships between Judiciary, bureaucracies and social movements, as well as the modes of identifying the “pardo” phenotype. Such elements are some of the main challenges in ensuring both the rights of black people to affirmative action and the aim of changing the white monochrome of the classroom in Brazilian public universities.

Keywords:
Racial equality; higher education; affirmative action; heteroidentification committees

Resumen:

Este artículo aborda el desarrollo de comités de heteroidentificación en la Universidad Federal Fluminense con vistas a la implementación de acciones afirmativas de tipo etno-racial para la admisión en los programas de grado y en los procesos de selección pública de profesores. La adopción por parte de la misma institución de modelos diferentes, basados en criterios identitarios o exclusivamente en criterios fenotípicos, pone de manifiesto las tensiones y disputas en relación con el tema. Al contrastar la operacionalización institucional de estas diferentes comisiones será posible observar las singularidades de los modelos, pero también algunos elementos comunes, especialmente en lo que se refiere a las complejas relaciones entre el Poder Judicial, las burocracias y los movimientos sociales, así como los modos de identificación fenotípica del “pardo”. Tales elementos son algunos de los principales desafíos para garantizar tanto el derecho de los negros a la acción afirmativa como el objetivo de cambiar el monocromo blanco de las aulas de las universidades públicas brasileñas.

Palabras clave:
Igualdad racial; educación superior; acción afirmativa; comités de heteroidentificación

Introdução

O tema das comissões de heteroidentificação deixou de ser um apêndice da produção acadêmica sobre ações afirmativas para se tornar um debate central para operadores da política de cotas no Brasil. Tais comissões são hoje um ponto nevrálgico do debate sobre inclusão nas áreas de educação e trabalho no setor público, seja porque dizem respeito à operacionalização das cotas, seja porque deixam expostas fraturas do sistema classificatório racial brasileiro.

Nos últimos anos, embora tenha ganhado amplo espaço nos periódicos acadêmicos, a produção sobre as políticas afirmativas tendeu a se concentrar no acesso ao ensino superior, com menor atenção ao campo do serviço público e, em especial, ao tema das comissões de heteroidentificação no funcionalismo (Venturini 2021VENTURINI, Anna Carolina. 2021. “Ações Afirmativas em Concursos para Docentes de Universidades Públicas e a Adoção de Comissões de Heteroidentificação”. Boletim de Análise Político-Institucional, v. 31:129-135.; Mello & Resende 2019MELLO, Luiz & RESENDE, Ubiratan P. de. 2019. “Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os”. Sociedade e Estado, v. 34, n. 1:161-84.). Notável exceção é a recente publicação do Boletim de Análise Político Institucional, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea 2021), que analisa a aplicação das ações afirmativas em diferentes cargos do serviço público federal, desde carreiras como magistratura e polícia, até a de docentes universitários, dando visibilidade às experiências e às vicissitudes da operacionalização das cotas para negros na esfera do Estado.

Alguns dos últimos trabalhos de destaque apresentaram os desafios prementes das comissões de heteroidentificação racial em estudos de caso nas universidades federais. Batista e Figueiredo (2020BATISTA, Neusa C. & FIGUEIREDO, Hodo A. C. de. 2020. “Comissões de heteroidentificação racial para acesso em universidades federais”. Cadernos de pesquisa, n. 177, v. 50:865-881.) analisam o caso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mostram os resultados quantitativos e qualitativos das comissões ali instaladas. Já Santos (2021SANTOS, Sales Augusto. 2021. “Comissões de Heteroidentificação Étnico-Racial: lócus de constrangimento ou de controle social de uma política pública?”. O Social em Questão, Ano XXIV, n. 50:11-62, maio-ago.) investiga várias instituições universitárias e explora diferenças entre comissões de verificação e comissões de validação da autodeclaração étnico-racial, apontando nuances na gestão da igualdade racial em instituições públicas de ensino superior e defendendo a eficiência das políticas de cotas contra “tentativas de fraudes”.

Na Universidade Federal Fluminense duas publicações se concentraram em examinar o processo de construção da política de cotas para ingresso no ensino superior, com foco no trabalho das comissões de heteroidentificação racial. Em meio à descrição dos dilemas administrativos, logísticos e políticos implicados na formatação institucional dos trabalhos das comissões, Silva et al. (2020SILVA, Ana Claudia Cruz da; CIRQUEIRA, Diogo Marçal; RIOS, Flávia; ALVES, Ana Luisa Monteiro. 2020. “Ações Afirmativas e Formas de Acesso no Ensino Superior Público: O caso das comissões de heteroidentificação”. Novos Estudos CEBRAP, v. 39, n. 2:329-347.) e Miranda, Souza e Almeida (2020MIRANDA, Ana Paula M. de; SOUZA, Rolf & ALMEIDA, Rosiane. 2020. “Eu escrevo o quê, professor (a)?: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas”. Revista de Antropologia, v. 63, n. 3:1-26.) expõem, em particular, os problemas compreendidos pela tensão entre autoclassificação e heteroidentificação raciais no trabalho das comissões, ao discutirem, sob perspectivas teóricas diversas, conceitos e fundamentos subjacentes ao seu funcionamento. Ambos os textos evidenciam a importância da antropologia no debate em torno do tema ao indicar como na literatura e no espaço social, político e acadêmico da área, construíram-se alguns dos mais frequentes argumentos hoje enfrentados na tarefa de consolidação dos critérios que informam o trabalho das comissões de heteroidentificação racial.

Na esteira desse debate, o presente artigo retoma e aprofunda a reflexão avançada em Silva et al. (2020SILVA, Ana Claudia Cruz da; CIRQUEIRA, Diogo Marçal; RIOS, Flávia; ALVES, Ana Luisa Monteiro. 2020. “Ações Afirmativas e Formas de Acesso no Ensino Superior Público: O caso das comissões de heteroidentificação”. Novos Estudos CEBRAP, v. 39, n. 2:329-347.), desta feita ampliando o período de observação para dar conta de analisar os desenhos e os resultados institucionais da montagem da política de ações afirmativas segundo as variações regulamentares verificadas desde a instalação das primeiras comissões de heteroidentificação na UFF, entre 2016 e 2017. Desde então, modelos distintos de funcionamento das comissões de heteroidentificação vigoraram no processo seletivo do Sistema de Seleção Unificada (SiSU) do Ministério da Educação (MEC) e nos concursos para técnicos-administrativos e docentes (Lei 12.990/2014). Embora evidentemente ligadas à dinâmica de construção da política - com seus naturais avanços e recuos - as variações no desenho regulamentar das comissões são particularmente significativas porque traduzem internamente a repercussão de diferentes leituras sobre os critérios a serem adotados no processo de deliberação das comissões, constituindo a UFF como espaço privilegiado de análise dos desafios de sua implementação, em especial no que concerne à discussão teórica, política e metodológica acerca da categoria “pardo”, em contextos de aplicação de políticas de ações afirmativas.

Movendo áreas como antropologia, sociologia e direito, os pesquisadores que escrevem este artigo relatam suas experiências com as comissões de heteroidentificação, seja como beneficiária da política, seja como integrantes da comissão, ou ainda como assessores para sua concepção e desenho no âmbito universitário. Além de descrições feitas por aqueles que observam de dentro a gestão pública em contextos que envolvem discricionariedade e tensão política, realizamos nossas interpretações sobre o que está em jogo na construção de tais comissões, seus principais obstáculos operacionais, jurídicos e políticos.

Do ponto de vista metodológico, recorremos aos relatos etnográficos e às descrições de processos situados com objetivos de contrastar os diferentes casos analisados. A apresentação dos dados obedece a alguns critérios: 1. exposição cronológica dos eventos; 2. análise dos contextos, processos e agentes envolvidos; 3. recorte de temas transversais de relevo nos dois casos estudados; 4. análise contrastiva dos casos, sublinhando suas particularidades e seus traços comuns.

Neste trabalho apresentamos inicialmente o processo de criação da comissão de heteroidentificação para o ingresso dos estudantes de graduação na UFF, em 2017, indicando-se os princípios teórico-políticos que orientaram essa experiência em contraste com os que passaram a guiar os procedimentos a partir de 2018, do ponto de vista de quem participou da elaboração dos princípios e do funcionamento da primeira comissão. Em seguida, o foco se dá sobre o processo que levou à implementação da comissão de heteroidentificação no último concurso docente da UFF, em 2021, destacando-se seu modelo de funcionamento e os desdobramentos em torno de seu resultado, dessa vez do ponto de vista de quem concorreu às vagas e de quem operou na formação dos componentes da comissão com atuação no concurso. Em ambos os casos, é a experiência empírica que conduz, na terceira e última seção do artigo, nossa análise dessas diferentes abordagens e de seus efeitos sobre o impacto da política de ações afirmativas na universidade.

Processos, agentes e agências: as comissões de heteroidentificação para estudantes da UFF

A adoção das comissões de heteroidentificação para o ingresso de estudantes de graduação na UFF, como analisado em outro lugar (Silva et al. 2020SILVA, Ana Claudia Cruz da; CIRQUEIRA, Diogo Marçal; RIOS, Flávia; ALVES, Ana Luisa Monteiro. 2020. “Ações Afirmativas e Formas de Acesso no Ensino Superior Público: O caso das comissões de heteroidentificação”. Novos Estudos CEBRAP, v. 39, n. 2:329-347.), deveu-se às denúncias dos coletivos negros de que as vagas reservadas às cotas étnico-raciais estavam sendo ocupadas por pessoas de fenótipo branco, principalmente nos cursos de maior prestígio e concorrência, como Medicina, Direito, Cinema e Engenharias.1 1 Para mais detalhes sobre o tema dos coletivos negros, vale a leitura de Guimarães, Rios e Sotero (2020). Diante da recusa do Ministério Público Federal (MPF)2 2 Recomendação nº 41, do Ministério Público Federal, de 9 de agosto de 2016. em aceitar apenas a autodeclaração como forma de controle, a Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) criou a Comissão de Estudo do Acompanhamento e da Aferição da Autodeclaração de Raça e Etnia nos concursos para ingresso de estudantes e servidores na UFF em agosto de 2016.3 3 Até 2016, o modelo de autodeclaração usado pela UFF não incluía fotografia. Formada por docentes estudiosos da temática, servidores envolvidos com a questão, discentes de coletivos negros da UFF e representantes da Prograd, como o pró-reitor, a comissão estudou o parco material encontrado àquela altura sobre o tema das comissões de heteroidentificação. Após meses de reuniões e acúmulo de discussões, deliberou-se que o principal critério a ser adotado seria o fenotípico.4 4 Dentre o material à disposição para o estudo sobre a regulamentação da matéria destacava-se a decisão proferida em Brasil, Supremo Tribunal Federal, ADPF 186, Relator Min. Ricardo Lewandowski, 26 de abril de 2012, confirmando a constitucionalidade do critério fenotípico então mobilizado por comissões de heteroidentificação adotadas pela UnB. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693, Acesso em 28/02/2022.

A primeira comissão de heteroidentificação do SiSU na UFF foi formada para atuar junto aos ingressantes do primeiro semestre de 2017, composta por sete membros, buscando seguir a recomendação de diversidade étnico-racial, de gênero e de função: uma docente branca, duas docentes negras, um docente negro, um servidor técnico-administrativo negro e dois servidores técnico-administrativos brancos.5 5 Recomendação presente no voto do relator da ADPF 186 (Brasil 2012). A maioria havia participado com mais ou menos intensidade das reuniões da comissão de estudos.

As resoluções a respeito da comissão de heteroidentificação foram tardias em relação ao calendário das pré-matrículas. A fim de que a UFF atendesse ao MPF quanto à existência de controle do ingresso pelas cotas étnico-raciais, a opção foi pela análise das autodeclarações a partir das fotos anexadas. Seriam chamados para a entrevista apenas os estudantes que a banca considerasse, por unanimidade, não atenderem ao critério fenotípico. Constava também que o estudante poderia levar documentos em que houvesse declaração de sua classificação étnico-racial, desde que não fossem recentes e preenchidos pela própria pessoa. Poucos foram os candidatos que levaram documentos seus (algumas pessoas tinham em mãos documentação dos progenitores, que não foi aceita). A aceitação de documentos foi uma concessão aos membros da comissão de estudos que eram contrários à heteroidentificação e a seu argumento de que pessoas que haviam sido socializadas como pardas em seus documentos não poderiam ser consideradas inaptas ao ingresso pelas cotas étnico-raciais na universidade.

No primeiro semestre de 2017, 698 candidatos foram selecionados pelo SiSU para as cotas étnico-raciais, tendo sido escolhidos 181 estudantes para entrevistas. Desses, 113 foram indeferidos pela comissão de heteroidentificação. Dado que a matrícula ocorreu antes das entrevistas, os candidatos foram avaliados já na condição de alunos, o que lhes permitiu mobilizar recursos administrativos. O Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPEx) da UFF designou uma comissão recursal, incluindo entre seus membros pessoas que haviam sido contrárias à formação da comissão e ao uso do critério fenotípico. Assim, 48 dos 86 recursos analisados foram deferidos, reformando-se as decisões da primeira comissão. Critérios e documentos não previstos no edital - como ascendência e fotografias de familiares - foram aceitos como recurso.

No segundo semestre de 2017, houve uma mudança significativa em relação ao primeiro: todos os candidatos que pleiteavam seu ingresso pelas cotas étnico-raciais passariam pela entrevista. O objetivo era 1. evitar qualquer ação jurídica posterior embasada em um processo discriminatório, ao se adotar para todos o mesmo procedimento; 2. facilitar o recurso e sua análise, dado que esses estudantes só teriam sua matrícula efetivada em caso de deferimento; 3. facilitar a chamada de candidatos para ocupar as vagas daqueles que tivessem seus recursos indeferidos, evitando-se a sobra de vagas ao final do processo.

Já que o número de entrevistas seria muito maior, o número de componentes da comissão também deveria ser. Além do atendimento a candidatos aos cursos localizados em Niterói, sede da UFF, a comissão compareceria a outros sete campi situados em municípios diferentes. E o trabalho crescia em função das novas chamadas para a ocupação das vagas não utilizadas anteriormente, fosse por desistência do candidato, ou por indeferimento de alguma das modalidades de cotas reivindicada. Isso fez com que a comissão, desdobrada em quantas fossem necessárias, tivesse que se reunir a cada nova chamada e em cada um dos campi.

Dessa vez, o procedimento ocorreria no momento da pré-matrícula, e foi organizado com a participação da Coordenação de Seleção Acadêmica (Coseac), o que contribuiu para o aumento do leque de pessoas envolvidas e de potenciais convidados, especialmente entre servidores técnico-administrativos. Quinze servidores, entre docentes e técnicos, foram nomeados para a comissão e estabeleceu-se que em cada etapa de seu funcionamento haveria um estudante. Os discentes foram indicados em assembleias do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Duas reuniões de formação foram realizadas com a equipe de docentes e servidores para que se uniformizasse a compreensão quanto ao objetivo da comissão e seus procedimentos.

Assim como no primeiro semestre de 2017, o edital do SiSU referente ao ingresso no segundo semestre foi bastante explícito quanto à existência da comissão de heteroidentificação e ao uso do critério fenotípico para validação da autodeclaração e sobre a realização das entrevistas filmadas para todos os candidatos e os documentos a serem aceitos.6 6 Cf. Anexo I do Edital do Processo Seletivo para ingresso nos cursos de graduação por meio do SiSU no segundo semestre de 2017. Disponível em: http://www.coseac.uff.br/2017/. Acesso em 04/09/2022. Novamente poucos foram os candidatos que levaram documentos próprios. Ao final do processo, os agentes envolvidos - participantes da comissão e demais servidores - chegaram à conclusão de que nenhum documento deveria ser considerado nas edições futuras, já que se tinha por princípio a adoção do fenótipo como único critério.7 7 Cabe salientar que esta seria também a posição adotada pela Orientação Normativa nº 04, do MPOG, editada no ano seguinte. Ademais, documentos, mesmo antigos, podem sofrer alterações, por vias legais ou por fraude.

Antes de passar pela comissão de heteroidentificação, solicitava-se ao candidato que preenchesse um questionário em que constavam as seguintes perguntas: “1. Você já sofreu discriminação racial?; 2. Por que você se considera preto(a), pardo(a) ou indígena?; 3. Você tem algo a acrescentar em relação às informações prestadas nas perguntas anteriores?”. Desde o início, estabeleceu-se nas discussões que conduziram à elaboração dos procedimentos que o questionário não seria usado para deliberar se o candidato poderia acessar a vaga. Ele foi pensado como um recurso auxiliar, no qual a pessoa poderia expressar o que a motivava a reivindicar o direito, e se mostrou um instrumento pouco eficaz para o propósito da comissão de heteroidentificação. Da mesma forma que os documentos, a conclusão ao final do processo foi de que o questionário deveria ser abolido por abrir margem para outros critérios além do fenotípico.

Já na sala onde ocorreria a entrevista, o candidato entregava sua autodeclaração, seu questionário e documentos a um membro da comissão. Em seguida, era informado de que deveria dizer seu nome, o curso pretendido e que poderia acrescentar algo ao que já havia escrito no questionário, retirando-se logo após. Fora decidido que a comissão não responderia ou faria outras perguntas. Proporcionalmente, poucas pessoas fizeram uso da palavra. Algumas fizeram pronunciamentos emocionantes sobre a oportunidade de finalmente alguém da família entrar na universidade pública e da necessidade de garantir as vagas para as pessoas realmente negras. Houve quem quisesse mostrar fotos ou documentos de seus familiares, mesmo diante da afirmação de que não seriam aceitos. E houve também algumas - bem poucas - acusações de que a existência da comissão era uma prática racista, que se a pessoa estava se afirmando negra ninguém poderia dizer que não era. Mas a grande maioria dos estudantes só agradecia e perguntava quando teria o resultado.

Após a saída do candidato era feita a deliberação, sobre a qual trataremos em seguida. O resultado era assinalado em formulário próprio e entregue ao candidato por uma pessoa externa à sala. Em caso de indeferimento, a pessoa era convidada a redigir, no ato, um recurso a ser encaminhado posteriormente a uma comissão formada por membros distintos daqueles que participaram de sua entrevista que, além do recurso por escrito, também utilizaria a imagem da entrevista. Do número total de pessoas entrevistadas, 16% foram indeferidas no primeiro momento e 13% após a fase de recursos.

Entre as formas de deliberação usadas por universidades que já previam as comissões de heteroidentificação, duas eram predominantes: uma pelo voto com formação de maioria e outra pelo indeferimento por unanimidade. Esta última foi a opção feita pela UFF. Registre-se que àquela altura ainda não havia sido publicada a Portaria Normativa n.º 4 (MPOG), de 2018, que viria a se tornar referência regulamentar na matéria, embora objeto de crítica daqueles que entendem que o critério fenotípico não deve ser exclusivo. A opção se deu em função do entendimento de que o racismo nos atravessa, evidentemente, de diferentes formas. É a experiência com o racismo que orienta nosso olhar e nos faz perceber uma pessoa como passível ou não de sofrê-lo. Dessa forma, considerando-se a heterogeneidade de composição da banca já afirmada acima, se um dos seus membros considerasse que o candidato teria alguma característica fenotípica que o fizesse sofrer discriminação racial, a divergência seria usada em prol do candidato. Pretendia-se, assim, assegurar que indígenas, pretos e pardos, inclusive os de pele clara, desde que fenotipicamente negros, de fato transformassem as salas de aula da UFF.

Poder-se-ia argumentar que, nesse formato, bastaria uma pessoa mal-intencionada na banca para fazer fracassar todo o processo. É comum encontrarmos formas diversas de burla ou má aplicação das ações afirmativas pelos órgãos gestores. A comissão de heteroidentificação é uma obrigação legal, mas seu bom funcionamento depende do compromisso político de enfrentamento da desigualdade racial e do entendimento do papel das comissões nesse propósito. Ao longo do trabalho, mesmo agentes externos à comissão envolvidos com os procedimentos da pré-matrícula e inicialmente contrários à heteroidentificação foram sendo convencidos de sua necessidade ao se depararem com candidatos de fenótipo branco tentando ocupar as vagas.

Na segunda experiência da comissão, havia na banca alguém que, com uma frequência excessiva no entendimento dos demais membros, divergia da avaliação de que determinado candidato seria branco e o “salvava”. O verbo salvar - e suas derivações - passou a ser utilizado para denominar essa ação que garantiria o acesso à vaga para alguém que teria sua autodeclaração invalidada pelos demais membros da banca. “Alguém salva?” era a pergunta corrente antes da deliberação final sobre algum candidato considerado branco pela maioria. A pessoa que “salvava demais” não o fazia por não concordar com a política, mas por uma avaliação multidimensional do perfil do candidato e costumava levar em conta outras modalidades de cotas, como a de renda e/ou de pessoa com deficiência.

Essa experiência, que poderia demonstrar a ineficácia do modelo adotado, possibilita comprovar sua eficiência. Bastaram poucas situações para que o restante da banca passasse a cobrar dessa pessoa uma mudança de postura. Ela não deixou de “salvar” quando assim entendeu que deveria, mas com bem menos frequência e não se distinguindo muito do restante da comissão. É possível afirmar que ao longo das mais de mil e duzentas entrevistas, todos os membros da banca “salvaram” candidatos. É claro que houve discussões, mas em um processo tão longo e desgastante, esses momentos foram em número irrelevante e resolvidos com tranquilidade.

Vale reiterar que o critério fenotípico vem sendo utilizado praticamente na totalidade das comissões de heteroidentificação, tanto no acesso ao ensino quanto no provimento de cargos públicos.8 8 Ver, por exemplo, o dossiê sobre as comissões de heteroidentificação publicado pela Revista da ABPN (Marques 2019). O dossiê conta com oito artigos sobre as experiências de diferentes universidades. Todos afirmam o critério fenotípico exclusivo para a validação da autodeclaração. Para um panorama mais atualizado da extensão com que a maioria das universidades federais adota o critério fenotípico, veja-se Santos (2021). No entanto, a partir do primeiro semestre de 2018, com uma nova coordenação das comissões de heteroidentificação para o ingresso na graduação, a UFF substituiu o critério fenotípico pelo “identitário” como fundamento do processo de heteroidentificação, num movimento que compreendia a adoção de orientação teórica e política distinta da que houvera sido construída até então.9 9 Ver Instrução de Serviço Prograd nº 02/2018, de 20 de fevereiro. A partir desse ano, a autodeclaração passou a contar com um espaço para o candidato escrever uma exposição de motivos sobre sua autodeclaração de pertencimento étnico-racial (ver http://www.coseac.uff.br/vestibular.htm). No SiSU de 2022, a autodeclaração passou a contar com a palavra “identitários”, devendo o candidato se autodeclarar “de acordo com os critérios exclusivamente identitários/fenotípicos” (cf. Tutorial para utilização do Sistema de Pré-Matrícula on-line. Disponível em: http://www.coseac.uff.br/20222/. Acesso em 25/08/22). Para além dos elementos teóricos implicados nessa alteração, a mudança provocaria uma estranha situação na universidade: modelos contraditórios de funcionamento das comissões vigorariam na graduação, por um lado, e nos concursos para vagas de servidores técnicos-administrativos e docentes, por outro, uma vez que, desde 2016, tais concursos adotavam exclusivamente o critério fenotípico como orientação para as deliberações da comissão, o que também repercutia nas atividades de formação de seus integrantes.10 10 Tal situação era estranha igualmente para servidores da UFF que integravam ambas as comissões. Entre participantes das oficinas das comissões de concursos para técnicos, havia pessoas que também participavam das comissões voltadas para o ingresso de estudantes.

Ações Afirmativas para servidores federais: o modelo das comissões de heteroidentificação para o concurso docente na UFF

A primeira comissão de heteroidentificação em um concurso docente na UFF viria a funcionar no ano de 2021, no âmbito do edital aberto para seleção de pessoal na instituição. Isto porque, até a experiência desse concurso, a UFF subutilizava a lei de cotas para a carreira docente, seja porque não contava com orientação jurídica para a máxima eficiência da reserva de vagas, seja porque encontrava oposição no interior da burocracia, ou ainda por não adotar mecanismos de monitoramento e fiscalização do andamento da política. Some-se a isto o fato de a instituição - bem como as demais universidades brasileiras - não apresentar periodicamente dados sobre as desigualdades étnico-raciais em seus quadros administrativos.

As desigualdades raciais no acesso à carreira de magistério nas instituições de ensino superior no Brasil são severas, graves e persistentes (Mello & Resende 2019MELLO, Luiz & RESENDE, Ubiratan P. de. 2019. “Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os”. Sociedade e Estado, v. 34, n. 1:161-84.). Segundo o censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2018 apenas 16% do corpo docente de instituições públicas e privadas eram formados por pessoas pretas e pardas. No que toca exclusivamente às instituições federais é até difícil saber o tamanho das desigualdades, já que metade dos professores não responde à pergunta sobre cor/raça nos formulários institucionais das universidades, base para a coleta do Inep. No caso da UFF, conforme quadro abaixo, o cenário não é diferente.

TABELA 1
CORPO DOCENTE POR RAÇA/COR - UFF, 2018

Em reação às fortes disparidades e hierarquias por cor de pele no funcionalismo público brasileiro, foi aprovada a Lei nº 12.990/2014, que reserva 20% das vagas de concursos do serviço público federal para candidatos autodeclarados negros. Segundo Mello e Resende (2019MELLO, Luiz & RESENDE, Ubiratan P. de. 2019. “Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os”. Sociedade e Estado, v. 34, n. 1:161-84.), até 2019, porém, as instituições públicas federais haviam reservado, em conjunto, pouco mais de 5% do total de vagas abertas nos concursos. Como a referida lei, que já conta com mais de sete anos de vigência, também se aplica aos concursos públicos para a carreira de magistério superior em universidades federais, procuramos saber como a UFF a aplicava em seus concursos, de modo geral realizados sob um edital comum para todas as áreas do conhecimento que dispusessem de vagas. Para este tipo de arranjo esperava-se que a reserva de 20% incidisse sobre o total de vagas oferecidas no concurso docente, mas até o ano de 2021 a UFF promovera a reserva de vagas por área de conhecimento, limitando-a àquelas que contassem com no mínimo três vagas por concurso, mesmo quando a universidade lançava editais que somavam mais de 50 vagas para toda a instituição. Por esta razão, dos concursos realizados pela UFF no período da vigência da lei até 2019, 352 vagas foram ofertadas, cabendo 345 delas à ampla concorrência e apenas sete reservadas nos editais (Palma 2019PALMA, Vanessa. 2019. Educação, democracia e inclusão racial: análise da efetividade da lei de cotas para negros em concursos docentes de universidades federais. Tese de Doutorado, Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia, Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados.).

Diante dessa situação, e contando com a promoção e o financiamento da Associação dos Docentes da UFF (ADUFF), professores e coletivos negros de estudantes, docentes e servidores organizaram um evento na Faculdade de Direito para discutir e dar visibilidade ao problema. Na ocasião, foi também lançada a Cartilha de Combate ao Racismo do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes).11 11 Disponível em: https://www.andes.org.br/sites/publicacoes. Acesso em 25/02/2022.

Como resultado desse movimento, criou-se uma comissão que levou ao reitor da Universidade uma representação pela plena aplicação da política de cotas. A crítica central formulada no documento tinha como objeto o edital em processo de elaboração, cuja formulação incorria em grave erro ao prever a aplicação das cotas para candidatos negros em “áreas de conhecimento com número de vagas igual ou superior a 03 (três)” (Edital 169/2019, publicado no DOU nº 104, de 31 de maio de 2019). Por se tratar de um único edital, logo um único concurso, caberia aplicar a reserva sobre a totalidade de vagas, sem distinção de cada área de conhecimento separadamente. Era esta a posição consagrada na matéria desde, pelo menos, 2017, por decisão do Supremo Tribunal Federal (Brasil 2017). No final de 2019, a comissão então sugeriu à UFF a montagem de um GT que buscasse em casos bem-sucedidos a melhor observância da lei, levando em conta a realidade institucional de outras universidades que enfrentavam o mesmo problema.

A resposta institucional veio com a suspensão do processo de elaboração do edital e com a criação de um grupo de técnicos que desenharam novo modelo para a aplicação da legislação, finalmente definido no Edital n. 54/2020, publicado em 22/12/2020. O novo edital estabelecia que dentre as 81 vagas para docentes de diversos cursos, 16 delas (20% do total) seriam reservadas para negros. A UFF então divulgava o primeiro concurso público de provas e títulos para ingresso na carreira do magistério superior no qual haveria comissões de heteroidentificação racial e do qual participou, como candidata, uma das autoras deste artigo.

Também resultado desse movimento, o modelo adotado para o funcionamento das comissões não seria aquele vigente para o processo seletivo na graduação a partir de 2018. A normativa aplicável, os critérios definidos para a deliberação da comissão e especialmente as estratégias de formação de seus componentes - conduzidas pela Escola de Governança e Gestão Pública da UFF (EGGP) - distinguiam o padrão pela primeira vez utilizado no concurso para técnicos-administrativos, realizado ainda no ano de 2016, no qual o critério a considerar para a avaliação da autodeclaração racial seria exclusivamente o fenotípico.12 12 O item 2.4.12 do Edital nº 212/2016 estabelecia que: “A Comissão Específica, responsável pela verificação da veracidade da Autodeclaração, considerará, tão somente, os aspectos fenotípicos do Candidato, os quais serão verificados obrigatoriamente com a presença do mesmo, conforme disposto no § 1º, do artigo 2º, da Orientação Normativa nº 3, de 1º de agosto de 2016, publicada no Diário Oficial da União de 2 de agosto de 2016, Seção 1, página 54, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão”. A fórmula se repetiria nos editais seguintes, com a única diferença de, a partir de 2018, incorporar a menção à Portaria MPOG nº 4, de 6 de abril de 2018. Uma autora e o autor deste artigo participaram de formações promovidas pela EGGP: ambos em abril de 2019; ele, também em julho de 2021.

Na seção relativa à comissão de heteroidentificação racial, o edital do concurso docente (Edital de Retificação do Edital nº 54/2020, publicado no DOU em 23 de junho de 2021) definiu que sua formação deveria incluir cinco membros - todos servidores da própria UFF, além de cinco suplentes - e respeitar a diversidade de gênero e cor (item 7.27). Seguindo a Portaria Normativa (MPOG) n. 4/2018, o edital garantia sigilo sobre os nomes dos membros da comissão de heteroidentificação, e destacava que o único critério a ser considerado pela comissão seria o fenótipo, bastando a concordância da maioria dos seus membros com o teor da autodeclaração para que o candidato fosse considerado apto a concorrer às vagas destinadas às ações afirmativas.

Como esperado, o edital informava sobre a possibilidade de recurso para os candidatos que não fossem considerados negros para efeito do processo de heteroidentificação.13 13 Os recursos seriam avaliados por uma comissão recursal composta por três pessoas, diferentes das cinco que compuseram a primeira comissão de heteroidentificação. Nesse novo procedimento seriam avaliados o texto do recurso enviado pelos candidatos, o parecer da comissão anterior e a filmagem realizada durante a entrevista. Numa primeira versão do documento, aqueles considerados inaptos, com ou sem recurso, seriam eliminados não apenas da concorrência via ações afirmativas, mas do próprio concurso. O entendimento de base para tal sanção era o de que a autodeclaração seria fraudulenta, o que, como veremos adiante, pode não ser o caso. Mas um edital de retificação alterou este ponto, permitindo aos candidatos cuja autodeclaração não fosse validada o prosseguimento no concurso na condição de ampla concorrência. Um ponto que nos parece relevante é que, ao contrário das ações afirmativas direcionadas à graduação ou outros processos seletivos massificados, os concursos para docentes costumam ser mais pessoalizados, acarretando grande exposição individual, o que provavelmente afeta a disposição dos candidatos em “fraudar”. Atentar para este ponto pode nos ajudar a complexificar a própria ideia de “fraude” ou “má fé” dos candidatos.

Ao fim de todo o processo das provas do concurso, houve a convocação dos aprovados negros para o procedimento de heteroidentificação. É importante registrar que do total de inscritos no concurso (3.730 candidatos), menos de 10% (334) tinham se inscrito para vagas reservadas aos candidatos negros. E dentre todos os aprovados para as 81 vagas do certame, apenas 13 haviam postulado a ação afirmativa, número inferior às 16 vagas reservadas no edital.14 14 Informações gentilmente fornecidas em comunicação eletrônica pela Coordenação de Pessoal Docente (CPD/UFF).

Os 13 aprovados compareceram ao procedimento de heteroidentificação que, em geral, não durava mais do que cinco minutos. Ao entrar na sala onde seria realizada a entrevista, o candidato deveria se voltar para uma câmera, retirar a máscara facial protetora (já que vivíamos a pandemia de Covid-19) e ler um pequeno texto que estava disposto abaixo da câmera, falando seu próprio nome e autorizando a gravação. Após esse momento, um integrante da comissão informava a data do resultado do procedimento de heteroidentificação e a possibilidade de recurso, perguntando por fim se o candidato tinha dúvidas. Em caso negativo, a gravação era interrompida e o candidato se retirava da sala.

Alguns dias depois o resultado do procedimento de heteroidentificação foi divulgado no site do concurso e, dentre os 13 candidatos à reserva de vagas, sete foram considerados aptos a pleiteá-la. Todos os demais candidatos que solicitaram justificativa para tal avaliação receberam por e-mail exatamente o mesmo texto: “O candidato foi considerado INAPTO no procedimento de Heteroidentificação no qual não foram identificadas características fenotípicas da condição autodeclarada” (maiúsculas no original).

Um dos seis candidatos considerados inaptos à reserva de vaga enviou um e-mail aos demais para estimulá-los a escreverem seus recursos, momento em que muitos expressaram sua surpresa com o resultado. Nessas trocas de mensagens, muito se disse para além da elaboração de tal recurso: alguns procuraram fotos dos demais em redes sociais e concluíram que todos os pardos foram considerados inaptos. Muito se contestou sobre o conhecimento dos integrantes da comissão de heteroidentificação sobre o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), sobre a Lei 12.990/2014 e sobre o próprio edital do concurso, já que todas essas normativas declaram que pardos também fazem jus à reserva de vagas. Tal cenário causou irritação, frustração e descontentamento nesses candidatos, pois nenhum deles se considerava de fenótipo branco. Ao contrário, concluíram que a comissão de heteroidentificação tinha arbitrária e ilegalmente excluído os pardos do certame. Em um dado momento da troca de e-mails, um dos candidatos mencionou sua dúvida sobre se pardos com a pele mais clara poderiam pleitear tal reserva de vagas, no que foi prontamente respondido por outros candidatos, os quais reforçaram o direito de qualquer indivíduo pardo acessar as ações afirmativas.

As trocas de mensagens expuseram a descrença por parte de alguns candidatos de que a comissão recursal revogaria a decisão da banca anterior. Alguns já antecipavam a possibilidade de judicializar o resultado referente às ações afirmativas. Ao final da etapa recursal, três dos seis candidatos recorrentes tiveram suas solicitações deferidas, do que resultou que dos 13 candidatos aprovados, 10 viram sua condição autodeclarada ser confirmada no processo de heteroidentificação.

No saldo final do concurso, embora a UFF não tenha atingido os 20% de vagas destinadas às ações afirmativas (seis das 16 vagas reservadas a pretos e pardos não foram preenchidas por este público), é preciso enfatizar que um único concurso preencheu vagas do sistema de cotas raciais em maior número (10) do que o de vagas reservadas em todos os editais anteriores (7). Este quadro evidencia, ao lado de problemas estruturais de desigualdade racial no ambiente acadêmico, o enorme déficit provocado pela incorreta aplicação da lei tal como promovida até antes de 2021.

Para o debate sobre a promoção da política de cotas raciais, dois pontos fundamentais sobressaem da experiência do concurso docente analisado, em especial da atuação da comissão de heteroidentificação, seus resultados e reações provocadas. Trata-se de desafios já vividos no processo de implantação do sistema de reserva de vagas no SiSU, e em torno dos quais se organizou a mudança nos parâmetros das comissões de heteroidentificação ali atuantes a partir de 2018. Estamos falando do teor dos questionamentos formulados pelos candidatos considerados “não aptos” à concorrência pelas cotas, que miram a interpretação do Estatuto da Igualdade Racial e da Lei 12.990/2014 que está na base das decisões adotadas pela comissão, e também a sistemática de seu procedimento administrativo.

No primeiro caso, vemos uma leitura jurídica que parece confundir a matéria da identidade racial com as condições de elegibilidade de uma política pública. De fato, o Estatuto da Igualdade Racial trata de ambas, mas a Lei 12.990/2014 cuida apenas das últimas. Essa aparente confusão ressalta da conclusão a que chegam os candidatos recorrentes quando entendem que a comissão teria arbitrária e ilegalmente excluído todos os pardos de pele clara do concurso, afinal eles não se veem como brancos.

Outra dimensão relevante do caso, traduzida pelos sentimentos de “irritação, frustração e descontentamento” dos candidatos com o resultado da heteroidentificação, é que ele denuncia o que se vê como um erro jurídico, interpretativo ou procedimental, que frustraria a expectativa de correção do problema dentro do próprio sistema que o provocou. Ora, isso aponta para a necessidade de que o processo de constituição e de funcionamento das comissões de heteroidentificação responda de forma clara e transparente à demanda dos interessados por conhecer as razões e os fundamentos de sua “inaptidão” para as cotas raciais. Em outras palavras, implica a responsabilidade de trabalhar a legitimidade dos procedimentos adotados, submetendo seus critérios ao escrutínio público, ao mesmo tempo reiterando-os na dinâmica de construção de uma tecnologia administrativa.

Tratar de ambos os pontos como desafios centrais da política é o que faremos na próxima seção do artigo, ao mesmo tempo tentando analisar criticamente, na experiência vivida dentro da UFF, de que forma os modelos atualmente vigentes dão conta de responder mais ou menos satisfatoriamente às exigências que estão postas.

Conflitos, dilemas e disputas: a operacionalização institucional das comissões de heteroidentificação

Desde o início da discussão das cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB) com José Jorge de Carvalho e Rita Segato a partir do “caso Ari” em 1999 (ver Carvalho 2005, entre outros), a antropologia tem se destacado neste tema no cenário acadêmico, e mesmo fora dele, com a publicação de inúmeros artigos em veículos de comunicação de grande alcance. Embora não seja objetivo deste trabalho detalhar essa história tomando a antropologia como centro, sucintamente destacamos alguns episódios/movimentos de interesse.15 15 Há bons trabalhos tratando da participação das ciências sociais brasileiras nesse debate, como Feres Jr., Campos e Daflon (2018). Por um lado, há programas de pós-graduação em antropologia sendo pioneiros na implementação de políticas de ação afirmativa em grandes universidades, como o PPGAS/Museu Nacional/UFRJ (Goldman e Banaggia 2017GOLDMAN, Marcio & BANAGGIA, Gabriel. 2017. “A política da má vontade na implantação das cotas étnico-raciais”. Revista de Antropologia, v. 60, n. 1:16-34.) e o PPGAS/USP - que, além disso, é o curso com o maior número de iniciativas de ação afirmativa (11 em 109 existentes até 2017, segundo Venturini 2017VENTURINI, Anna Carolina 2017. “Ações afirmativas para pós-graduação: desenho e desafios da política pública”. In: Anais do 41º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Anpocs. Disponível em: Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/41-encontro-anual-daanpocs/spg-4/spg27-1/11017-acoes-afirmativas-para-pos-graduacao-desenho-edesafios-da-politica-publica/file . Acesso em 02/08/2022.
http://www.anpocs.com/index.php/encontro...
:20). Sabemos também da participação - e temos nós mesmos participado - de audiências públicas, seminários, cursos e outras formas de envolvimento com a implementação de políticas de ação afirmativa e comissões de heteroidentificação em diversas instituições.16 16 Ver, por exemplo, Banaggia (2021). Autoras e autor deste trabalho já estiveram presentes em vários desses espaços.

Por outro lado, tivemos a nota da Comissão de Relações Étnico-raciais (Crer) da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) condenando os procedimentos de heteroidentificação usados pela UnB em seu primeiro vestibular com reserva de vagas em 2004.17 17 Infelizmente, o link para acesso a esse documento não está mais disponível no portal da ABA. Ele é citado por Maio e Santos (2005) e Carvalho (2005). Em Valente (2006:87) se tem acesso ao conteúdo da curta nota. Ainda como reação à primeira experiência da UnB, a Revista Horizontes Antropológicos (2005) publicou seu emblemático número com um debate em forma de artigos. Já em 2016, a ABA publicou outra nota condenando novamente os procedimentos de heteroidentificação instituídos pela Orientação Normativa nº. 3, de 1º. de agosto de 2016, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.18 18 Trata-se de uma primeira orientação normativa relativa ao cumprimento da Lei 12.990/14 que obriga a reserva de vagas de cotas raciais em concursos públicos. E, é claro que não pode ser esquecido, o protagonismo de antropólogos nos manifestos contra e a favor das cotas entregues aos congressistas brasileiros em 2006.19 19 Manifesto contra as cotas raciais disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/a-integra-do-manifesto-contra-as-cotas-raciais/. Acesso em 02/09/2022. Manifesto a favor das cotas raciais disponível em: https://www.geledes.org.br/confira-a-integra-do-manifesto-a-favor-das-cotas/. Acesso em 02/09/2022.

Na UFF, nosso objeto de análise, o processo de implementação das comissões de heteroidentificação tem, em seu início, a participação de antropólogos assumindo as diferentes posições presentes na “antropologia brasileira”. A comissão de estudos em 2016 e as primeiras experiências da comissão de heteroidentificação para a graduação em 2017 contaram com uma docente da área, uma das autoras deste artigo, favorável à heteroidentificação. Um antropólogo com posição contrária à heteroidentificação chegou a participar da comissão de estudos, mas logo se retirou. Outros assumiram a gestão da comissão de heteroidentificação a partir de 2018, adotando para os anos seguintes orientações teóricas e políticas distintas daquelas que embasaram a comissão de heteroidentificação com atuação em 2017, discutidas pela comissão de estudos de 2016.

A crítica às comissões de heteroidentificação em textos acadêmicos, sobretudo quando oriundos da antropologia, costuma se basear na ideia de que a classificação étnico-racial feita por terceiros fere o “respeito à identidade” dos candidatos, seu “direito à autodeterminação”; que utiliza critérios que remetem ao racismo científico do século XIX. Em seu último parágrafo, a nota da ABA (2016) de repúdio às comissões afirma que “a questão da cor ou raça se imbrica profundamente com construções individuais e coletivas de caráter identitário que vão muito além das características físicas” e que a Associação defende que “a autodeclaração, livre de suspeições e ameaças, deve ser o critério principal e norteador”.20 20 Nota da Associação Brasileira de Antropologia: - Repúdio à Orientação Normativa nº. 3, de 1º de agosto de 2016, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, contra Programa de Promoção da Igualdade Racial (2016). Disponível em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/noticias/nota-da-associacao-brasileira-de-antropologia-aba/.%20Acesso%20em%2021/08/22. A coordenação da comissão de heteroidentificação para ingresso pela graduação na UFF a partir de 2018 justifica a adoção do critério identitário por sua maior abrangência, já que o “elemento fenotípico” estaria nele incluído, e em função do entendimento de que a “classificação/denominação de cor/raça funciona, no sistema brasileiro, como resultado de uma política histórica de miscigenação imposta à população negra, que valorizava o embranquecimento” (Miranda, Souza & Almeida 2020MIRANDA, Ana Paula M. de; SOUZA, Rolf & ALMEIDA, Rosiane. 2020. “Eu escrevo o quê, professor (a)?: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas”. Revista de Antropologia, v. 63, n. 3:1-26.:10).

Para fins de melhor compreensão das consequências não só teóricas, mas também práticas, do argumento que defende a maior abrangência do critério identitário sobre o fenotípico, vejamos como se deu a sua mobilização na regulamentação da matéria das comissões para a graduação da UFF desde o ano de 2018. Sobre essa base empírica, é possível discutir se sua operacionalização tem condições de atender não só à demanda por um procedimento razoavelmente objetivo de deliberação sobre a elegibilidade da política de cotas, mas também se responde ao propósito central das ações afirmativas: mudar o perfil racial das instituições nas quais são promovidas.

Como salientado acima, a Instrução de Serviço nº 10/2018, da Prograd, determinava em seu art. 3º que: “O processo de aferição da Autodeclaração de cor/etnia será orientado pelo critério identitário e composto por quatro etapas”. Dentre essas etapas, uma era fundamental para a consequência do novo critério: o candidato deveria responder por que se considerava preto, pardo ou indígena, e relatar se já havia sofrido discriminação étnico-racial (Art. 3º, §2º). Resta claro da norma em análise que o conteúdo da declaração do candidato, formado pelo teor das respostas às questões acima indicadas, constituía documento-chave da deliberação da comissão sobre sua “aptidão” à reserva de vagas, fechando-se assim o sentido da substituição do critério fenotípico pelo identitário.

Apesar das regulamentações dos anos seguintes - até aquela que normatizou o processo no ano de 2022 - terem alterado a nomenclatura do critério regente da deliberação das comissões para “critério identitário/fenotípico”, seu modelo seguiria combinando, com algumas alterações, a arguição do fenótipo sujeita a um complemento identitário, que poderia se dar ora com a análise de um formulário de autodeclaração (IS 01/2019, Art. 4º, I), ora com a aceitação de documentos de identificação civil com registro da cor ou mesmo de um documento que atestasse aptidão para a reserva de vagas de caráter racial em outro processo seletivo (IS 11/2020, Art. 4º, c). Mesmo a introdução da “dúvida razoável” a respeito do fenótipo como condição para a análise dos documentos civis (nos anos de 2020 e 2021), ou até a completa exclusão de seu uso na normativa de 2022, manteve, sob a chave “identitária/fenotípica”, a possibilidade de que um elemento externo à percepção do fenótipo constituísse uma espécie de base argumentativa para a avaliação final da comissão de heteroidentificação.

Há, porém, um problema lógico imbricado na formulação “identitária/fenotípica”. Afinal, o critério fenotípico, que foi concebido para funcionar como um mecanismo heterônomo complementar à autodeclaração, tornar-se-ia, nessas condições, ele mesmo sujeito à complementação (ou correção) por meio do teor de uma autodeclaração justificada, o que evidentemente levaria o problema de volta ao começo. É preciso, portanto, responder ao argumento contrário à exclusividade do critério fenotípico com a observação de que a defesa de um procedimento externo de heteroidentificação não redunda em “aferir a veracidade das autodeclarações” e, portanto, não viola “o princípio de presunção de inocência”, como sugerem Miranda, Souza e Almeida (2020MIRANDA, Ana Paula M. de; SOUZA, Rolf & ALMEIDA, Rosiane. 2020. “Eu escrevo o quê, professor (a)?: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas”. Revista de Antropologia, v. 63, n. 3:1-26.), uma vez que o problema está posto em outro lugar.

Primeiramente cabe frisar que a autodeterminação está garantida pela autodeclaração: é a pessoa que se candidata às cotas raciais que opta por fazê-lo como preta, parda ou indígena. E, como sabemos, toda identidade é relacional e não uma essência. A escolha da identificação a ser usada tem uma relação direta com as Leis 12.711/12, 12.990/14 e suas correlatas, assim como seu objetivo comum: diversificar racialmente instituições de ensino e o serviço público. Isto significa que a opção de se candidatar pelas cotas raciais é livre, mas o acesso ao direito depende de o candidato ser percebido como alguém que proporcionará essa diversificação. Para acionar a chave lógica uma vez mais: ou é aceitável que a autodeclaração se convalide por algum tipo de “exame externo” - o que, portanto, implica colocá-la sob questionamento - ou nenhum sentido restaria para o trabalho heteroclassificatório. De outra forma restaria ao executor da política se conformar à livre arguição da identidade que a autodeclaração traduz, o que importaria garanti-la como meio de acesso direto ao benefício da política, sustentando assim mais uma tautologia do que um mecanismo de controle de sua implementação. Nota-se, portanto, que o problema reside exatamente aí: tomar a identidade racial como fundamento do direito, e não a classificação racial compartilhada pela comunidade que um dado procedimento administrativo de seleções públicas e privadas atualiza nos processos de execução da política.

Quanto ao fato de que nossa classificação racial é fruto da violência da política de embranquecimento ainda vigente no Brasil não há dúvida. Justamente por isto, sabemos que descendentes de pessoas negras que apresentam fenótipo branco não sofrerão o mesmo racismo sofrido por seus ascendentes. Não é tarefa da comissão de heteroidentificação definir a identidade de alguém, ou examiná-la - tanto é que o deferimento ou não ao acesso à vaga deve servir exclusivamente ao processo em questão e não devem ser aceitas deliberações de processos anteriores. No entanto, permitir que essas pessoas ocupem as vagas reservadas às pessoas negras, ainda que se entendam como pardas em função de sua ascendência, implicará a perpetuação da desigualdade racial na universidade e na sociedade como um todo.

O agrupamento de pretos e pardos na categoria “negro” tem uma história: tem sido proposto por grande parte do movimento negro desde os anos 1960 em busca de conscientizar pretos e pardos na valorização de uma identidade negra comum em prol do enfrentamento da ideologia da mestiçagem, destacando que a racialização de ambos os grupos produz desigualdades de caráter racial, mesmo que de modo diferenciado (Gonzalez 2022GONZALEZ, Lélia. 2022. “O movimento negro na última década”. In: Lélia Gonzalez & Carlos Hasenbalg, Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar. pp. 15-84.). Somado a isso, desde a clássica pesquisa de Carlos Hasenbalg (1979HASENBALG, Carlos. 1979. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal.) na qual o autor mobilizou os termos “branco” e “não branco”, esse sistema tem sido cada vez mais adotado por formuladores de políticas21 21 Inclusive o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (cf. Osório 2003). e pesquisadores devido ao fato de que, em termos estatísticos, pessoas pretas e pardas estão muito próximas entre si e, ao mesmo tempo, consideravelmente distantes das pessoas brancas em inúmeras variáveis relevantes, como inserção no mercado de trabalho, desemprego, renda, escolarização e acesso ao ensino superior, dentre outros. É este o contexto que explica por que a Lei Federal nº 12.990 de 9 de junho de 2014 (conhecida popularmente como Lei de Cotas) e o Estatuto da Igualdade Racial asseveram que a população negra é o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas (Campos 2013CAMPOS, Luiz Augusto. 2013. “O pardo como dilema político”. Revista Inteligência, Ano XVI, nº 63:80-91, out./nov./dez.).

Como já afirmamos acima, o desencadeamento do movimento dos coletivos de estudantes negros da UFF junto ao MPF se deu porque, embora estivéssemos no ápice da quantidade de vagas para cotas raciais em 2016, os cursos de maior prestígio continuavam brancos.22 22 A Lei 12.711/12 previa um aumento gradual do percentual de vagas ao longo de quatro anos até atingir a proporção da população (preta, parda ou indígena) em cada estado, o que aconteceria em 2016. E é plausível pensar que parte dos estudantes que ingressaram se autodeclarando pardos realmente se entendesse dessa forma por uma relação genealógica, apesar do fenótipo branco. Sabemos da complexidade da questão23 23 Reflexões sobre “colorismo” e “passabilidade” da pessoa parda de pele clara são fundamentais para a compreensão da classificação racial no Brasil (ver, entre outros, Munanga, 1999; Carneiro 2004; Rios 2019; Arruda 2020). e não se trata de considerar negras e com direito às cotas raciais apenas as pessoas chamadas “negras retintas”, desconsiderando-se as de pele mais clara, tampouco de suspeitas de serem “afroconvenientes”.24 24 Indivíduos que supostamente passaram a se denominar negros apenas para acessar as vagas das ações afirmativas (Rodrigues, 2021). O tempo e o método empregados na entrevista com as comissões não permitem que se conheçam as intenções e/ou motivações para alguém requerer o direito à vaga. E, ainda que houvesse esta possibilidade, ela não representaria maior justiça se o candidato em questão fosse branco. Além disso, a exigência de que o indeferimento seja deliberado por unanimidade e a existência da banca recursal - em que novo indeferimento também ocorrerá por unanimidade - garantem que a pessoa terá sua identificação racial validada se apenas um, entre tantos membros com experiências raciais distintas graças à diversificação interna exigida para a banca, entender que ela apresenta fenótipo negro. O que se pretende combater com a defesa da heteroclassificação com base exclusivamente no fenótipo é que pessoas brancas ocupem as vagas. Concordamos com a declaração de Marcilene Garcia de Souza em uma matéria sobre candidatos ao governo da Bahia que se autodeclararam pardos:

O termo “pardo” tem sido utilizado pelas pessoas brancas com propósito de se beneficiar de um direito que não é o seu. As políticas para negros devem ser garantidas para as pessoas que, pelos traços fenotípicos negros, sofrem discriminação em todos os espaços, como educação, saúde, mundo do trabalho e na política.25 25 Disponível em: https://almapreta.com/sessao/politica/candidatos-ao-governo-da-bahia-acm-neto-e-vice-se-autodeclaram-negros. Acesso em 25/08/22.

É importante deixar muito bem explicitado que a adoção do critério fenotípico não diz respeito ao uso de medidas antropométricas, análises genéticas ou biologizantes de qualquer tipo. O sentido de seu uso não está em qualquer medida, mas nas relações sociais, históricas e políticas produzidas pelo racismo que atravessam a sociedade brasileira. Como afirma Banaggia (2021BANAGGIA, Gabriel. 2021. “Comissões antifraude em processos seletivos com ações afirmativas”. In: Jacques D’Adesky & Marcos Teixeira de Souza (orgs.), Afro-Brasil II: Debates e Pensamentos. Rio de Janeiro: Editora Autografia. pp. 33-48.:39):

O uso do termo fenótipo não deve dar margem a uma outra forma de sabotagem das políticas de ação afirmativa que ocorreria com a apresentação de laudos médicos de dermatologistas ou geneticistas em ações judiciais. O recurso a estes documentos não possui nenhuma validade já que as ações afirmativas não se fundamentam em argumentos biológicos e sim numa realidade eminentemente sociopolítica e histórica.

De outro modo, as vagas reservadas às populações negra e indígena serão usurpadas por pessoas de fenótipo socialmente branco que, por má fé ou equívoco por não compreenderem o objetivo das políticas de ação afirmativa, se consideram merecedoras do direito.

Como é sabido, as Leis 12.711/12, 12.990/14 e suas correlatas em estados e municípios visam produzir uma mudança na composição racial das instituições públicas de ensino e nas correspondentes esferas do serviço público, hoje majoritariamente - ou totalmente, em alguns lugares - branca. Essa mudança não é possível adotando-se o critério da identidade reivindicada pelo candidato. Pessoas de fenótipo branco reivindicam identidade negra e/ou indígena a partir de sua ascendência genealógica, de suas opções políticas ou religiosas, ou por má fé, esperando ter vantagem indevida com a presunção de que sua afirmação identitária não pode ser questionada. O resultado desse critério foi visto na maior parte das universidades brasileiras antes da implementação das comissões de heteroidentificação: mesmo com as cotas étnico-raciais, especialmente os cursos mais prestigiados continuaram majoritariamente brancos.26 26 Como documentado por Santos (2021), várias universidades pelo país foram instadas pelos órgãos de controle, especialmente o MPF, a estabelecer comissões de sindicância, haja vista o número significativo de denúncias de que alunos com fenótipo branco tinham sido aprovados por meio das cotas raciais. Nos anos de 2021 e 2022, a UFF montou e concluiu duas dessas comissões de sindicância. Implantar as comissões de heteroidentificação e continuar usando o critério identitário, tal como adotado no processo de seleção para o SiSU na UFF desde 2018 (Miranda, Souza & Almeida, 2020MIRANDA, Ana Paula M. de; SOUZA, Rolf & ALMEIDA, Rosiane. 2020. “Eu escrevo o quê, professor (a)?: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas”. Revista de Antropologia, v. 63, n. 3:1-26.), significa impedir que as populações negra e indígena realmente estejam presentes e mudem a monocromia branca das salas de aula da universidade pública brasileira.

A maior parte dos trabalhos acadêmicos contra as comissões de heteroidentificação afirma se basear no conhecimento científico - especialmente aquele cunhado pelas Ciências Sociais - e seus autores se reivindicam especialistas na questão. Seu entendimento é de que se trata de um problema de identidade e que a antropologia dispõe de um lugar privilegiado para a enunciação de opiniões. No feliz entendimento de Anjos (2005ANJOS, José Carlos dos. 2005. “O tribunal dos tribunais: onde se julgam aqueles que julgam raças”. Horizontes Antropológicos, Ano 11, n. 23:232-236.) quanto à acusação de “tribunal racial” referente ao procedimento da UnB em 2004, evocada sempre que se trata das comissões de heteroidentificação, essa ciência se coloca como “[T]ribunal de todos os tribunais - lugar em que os cientistas críticos insistem em camuflar posições que precisariam passar pelo teste da política em lugar dos jogos sem riscos típicos do lazer escolástico” (:236). As políticas de ação afirmativa e as comissões como parte delas são, sem dúvida, de grande interesse antropológico como objeto de investigação. Mais do que isso, como saber que se realiza a partir da relação direta com as pessoas, em sólida base empírica, a antropologia tem muito a dizer - e tem feito isso - sobre os efeitos mais que perversos, mesmo letais, da desigualdade racial. Contudo, esse saber não dá à antropologia nenhum privilégio sobre a determinação do funcionamento da política nem na formação das comissões de heteroidentificação como “especialistas para afirmar identidades e conceder benefícios”, nos alerta Banaggia (2021BANAGGIA, Gabriel. 2021. “Comissões antifraude em processos seletivos com ações afirmativas”. In: Jacques D’Adesky & Marcos Teixeira de Souza (orgs.), Afro-Brasil II: Debates e Pensamentos. Rio de Janeiro: Editora Autografia. pp. 33-48.:37). Trata-se, como já afirmava Valente (2006VALENTE, Ana Lúcia E. F. 2006. “A ‘Má vontade antropológica’ e as cotas para negros nas universidades (ou usos e abusos da antropologia na pesquisa educacional II: quando os antropólogos desaprendem”. InterMeio, v, 12, n. 24:84-103.:87), de “uma decisão administrativa e institucional”, não de uma “questão acadêmica”.

Tanto em 2004 na UnB (Carvalho 2005CARVALHO, José Jorge de. 2005. “Usos e abusos da antropologia em um contexto de tensão racial: o caso das cotas para negros na UnB”. Horizontes Antropológicos, Ano 11, n. 23:237-246.:243) quanto em 2016 na UFF, a reivindicação pelo controle do ingresso pelas cotas raciais partiu dos coletivos de estudantes negros justamente porque estamos tratando de uma política, que se faz com política. Referindo-se às cotas raciais - o que vale também para o repúdio à heteroidentificação com base no fenótipo -, Goldman e Banaggia (2017GOLDMAN, Marcio & BANAGGIA, Gabriel. 2017. “A política da má vontade na implantação das cotas étnico-raciais”. Revista de Antropologia, v. 60, n. 1:16-34.) chamam a atenção de que os argumentos usados por uma grande parte da literatura antropológica “deixam precisamente de lado esse caráter pragmático, uma vez que essas políticas tentam combater o racismo em um campo que não é apenas o das ideias e preconceitos, mas no da política em geral e no das políticas públicas em particular” (: 21). E não se trata aqui de pleitear banalmente uma separação entre ciência e política, pois o que afirmamos é que cada uma dessas posições, que são políticas - a defesa do fenótipo ou a defesa da identidade - resultará, pragmaticamente, em universidades distintas.

Considerações finais

Este trabalho apresentou e discutiu as implicações institucionais da promoção de distintos modelos de implementação das ações afirmativas para diferentes segmentos: estudantes universitários e servidores federais. Além do diálogo com a bibliografia recente e especializada no assunto, o trabalho chama a atenção para o fato de que, a despeito das singularidades dos modelos analisados, existem elementos comuns que merecem ser destacados em razão de sua relevância para o aperfeiçoamento da política, para a garantia de sua eficiência, bem como para a legitimidade das políticas públicas de igualdade racial. Mostrou também que o detalhamento do trabalho das comissões, seus conflitos, impasses e atores são fundamentais para a compreensão de seus resultados, evitando leituras baseadas em caricaturas, opiniões e valores preconcebidos. Os detalhes da análise, produzidos a partir de nossas experiências etnográficas, são importantes em artigos desta natureza porque garantem a qualidade da informação muitas vezes negligenciada pelas instituições públicas brasileiras no que se refere aos dados sobre processos administrativos relacionados às ações afirmativas. A troca de informações institucionais, bem como o acúmulo de conhecimento sobre o histórico das comissões são processos fundamentais para sua arquitetura e aperfeiçoamento, e podem fortalecer a produção acadêmica sobre o tema das categorias classificatórias no Brasil. Em outras palavras, contribuem tanto para o campo científico como para o desenvolvimento da área de políticas públicas no país.

Foi possível identificar que as burocracias administrativas enfrentam grandes desafios para a implementação das ações afirmativas, sendo que um dos mais importantes é garantir o direito aos beneficiários. A segunda dimensão de destaque é a relação complexa entre o Poder Judiciário (normatização e regulamentação), o poder das burocracias (operacionalização e controle) e o poder dos movimentos sociais (denúncias e pressão política). Outra dimensão importante para reflexão diz respeito aos modos de identificação fenotípica do pardo, a categoria mais sensível no trabalho das comissões. Dado o caráter relativamente ambíguo da categoria pardo, já identificado por trabalhos clássicos e contemporâneos sobre classificação racial no Brasil (Guimarães 1999GUIMARÃES, Antonio. S. 1999. Racismo e Antirracismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34.; Feres Jr. at al. 2018; Carneiro 2004CARNEIRO, Sueli. 2004. “Negros de pele clara”. Portal Geledés, São Paulo, 29 maio 2004. Disponível em: Disponível em: https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/ . Acesso em 24/08/2022.
https://www.geledes.org.br/negros-de-pel...
), o treinamento de agentes públicos envolvidos nas comissões é requisito fundamental para a eficiência da política, particularmente no que toca ao tema sobre o fenótipo como critério fundamental para as comissões. O peso do fenótipo para a dinâmica das relações raciais em contextos de políticas públicas é a grande novidade do debate público e acadêmico, alimentando controvérsias e a necessidade de estudos aprofundados sobre a temática, dado seu impacto relevante para os diversos segmentos populacionais brasileiros, especialmente para a população autodeclarada parda nas pesquisas censitárias nacionais. Aprofundar teórica e empiricamente as análises sobre o tema pode favorecer a melhor eficiência dos operadores da política em seus diferentes níveis, evitando eventuais danos e erros institucionais e contribuindo para a maior coerência interna entre os modelos adotados pelas instituições.

No que tange ao âmbito administrativo, as universidades brasileiras devem estimular o preenchimento do quesito cor/raça a fim de que seja possível produzir diagnósticos sobre a realidade institucional, assim como identificar mudanças e gargalos nas instituições. Além de garantir transparência, o compartilhamento dos dados desagregados dos resultados das comissões no âmbito dos processos seletivos discentes e docentes, ou mesmo no nível técnico-administrativo, seria de grande importância para o desenvolvimento das investigações sobre o assunto, impedindo argumentos baseados em opiniões e ampliando as possibilidades de pesquisas comparativas e mais amplas do universo total das instituições de ensino superior no país. O mesmo se deve esperar das prefeituras, estados e demais entes federativos quanto à disponibilização das informações sobre os concursos que reservam vagas para o funcionalismo público. Tais dados podem auxiliar as burocracias na aplicação da legislação em prol dos potenciais beneficiários da política, além de assegurar melhor entendimento da mesma e garantir pesquisas mais profundas, com qualidade e agilidade no acesso à informação.

Referências bibliográficas

  • ANJOS, José Carlos dos. 2005. “O tribunal dos tribunais: onde se julgam aqueles que julgam raças”. Horizontes Antropológicos, Ano 11, n. 23:232-236.
  • ARRUDA, Jalusa. 2020. “Nos versos me seguro”: uma etnografia documental da trajetória de meninas na medida socioeducativa de internação Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
  • BANAGGIA, Gabriel. 2021. “Comissões antifraude em processos seletivos com ações afirmativas”. In: Jacques D’Adesky & Marcos Teixeira de Souza (orgs.), Afro-Brasil II: Debates e Pensamentos Rio de Janeiro: Editora Autografia. pp. 33-48.
  • BATISTA, Neusa C. & FIGUEIREDO, Hodo A. C. de. 2020. “Comissões de heteroidentificação racial para acesso em universidades federais”. Cadernos de pesquisa, n. 177, v. 50:865-881.
  • BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 186, Relator Min. Ricardo Lewandowski, 26 de abril de 2012.
  • BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Declaratória de Constitucionalidade 41. Relator: Min. Luís Roberto Barroso, Brasília, 8 de junho de 2017.
  • CAMPOS, Luiz Augusto. 2013. “O pardo como dilema político”. Revista Inteligência, Ano XVI, nº 63:80-91, out./nov./dez.
  • CARNEIRO, Sueli. 2004. “Negros de pele clara”. Portal Geledés, São Paulo, 29 maio 2004. Disponível em: Disponível em: https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/ Acesso em 24/08/2022.
    » https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/
  • CARVALHO, José Jorge de. 2005. “Usos e abusos da antropologia em um contexto de tensão racial: o caso das cotas para negros na UnB”. Horizontes Antropológicos, Ano 11, n. 23:237-246.
  • FERES JR, João; CAMPOS, Luis A. C.; DAFLON, Verônica & VENTURINI, Anna Carolina. 2018. Ação afirmativa: conceito, história e debates Rio de Janeiro: Eduerj.
  • GOLDMAN, Marcio & BANAGGIA, Gabriel. 2017. “A política da má vontade na implantação das cotas étnico-raciais”. Revista de Antropologia, v. 60, n. 1:16-34.
  • GONZALEZ, Lélia. 2022. “O movimento negro na última década”. In: Lélia Gonzalez & Carlos Hasenbalg, Lugar de negro Rio de Janeiro: Zahar. pp. 15-84.
  • GUIMARÃES, Antonio. S. 1999. Racismo e Antirracismo no Brasil São Paulo: Ed. 34.
  • GUIMARÃES, Antonio S.; RIOS, Flavia & SOTERO, Edilza. C. 2020. “Coletivos negros e novas identidades raciais”. Novos Estudos CEBRAP, v. 39, n. 2:309-327.
  • HASENBALG, Carlos. 1979. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil Rio de Janeiro: Graal.
  • INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). 2019. Censo da Educação Superior 2018 - Divulgação dos Resultados. Disponível em: Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2019/apresentacao_censo_superior2018.pdf Acesso em 04/03/2022.
    » http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2019/apresentacao_censo_superior2018.pdf
  • INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). 2021. Boletim de Análise Político-Institucional. N.31, dez. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/11039 Acesso em 07/09/2022.
    » http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/11039
  • MAIO, Marcos Chor & SANTOS, Ricardo Ventura. 2005. “Política de cotas, os ‘olhos da sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília (UnB)”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23:181-214, jan./jun.
  • MARQUES, Eugênia P. de S. (org.). 2019. Dossiê Temático “A importância das Comissões de Heteroidentificação para a garantia das Ações Afirmativas destinadas aos Negros e Negras nas Universidades Públicas Brasileiras”. Revista da ABPN, v. 11, n. 29, jun.-ago.
  • MELLO, Luiz & RESENDE, Ubiratan P. de. 2019. “Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os”. Sociedade e Estado, v. 34, n. 1:161-84.
  • MIRANDA, Ana Paula M. de; SOUZA, Rolf & ALMEIDA, Rosiane. 2020. “Eu escrevo o quê, professor (a)?: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas”. Revista de Antropologia, v. 63, n. 3:1-26.
  • MUNANGA, Kabengele. 1999. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra Petrópolis: Editora Vozes.
  • OSÓRIO, Rafael Guerreiro. 2003. “O sistema classificatório de ‘cor ou raça’ do IBGE”. Texto para discussão, n. 996, Ipea, nov. Disponível em: Disponível em: http://www.ipea.gov.br/ portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf Acesso em 14/03/2018.
    » http://www.ipea.gov.br/ portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf
  • PALMA, Vanessa. 2019. Educação, democracia e inclusão racial: análise da efetividade da lei de cotas para negros em concursos docentes de universidades federais. Tese de Doutorado, Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia, Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados.
  • RIOS, Flávia. 2019. “O que o colorismo diz sobre as relações raciais brasileiras?”. Portal Geledés, São Paulo, 28 nov. Disponível em: Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-que-o-colorismo-diz-sobre-as-relacoes-raciais-brasileiras/ Acesso em 24/08/2022.
    » https://www.geledes.org.br/o-que-o-colorismo-diz-sobre-as-relacoes-raciais-brasileiras/
  • RODRIGUES, Gabriela M. B. 2021. (Contra)mestiçagem negra: pele clara, anticolorismo e comissões de heteroidentificação racial. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
  • SANTOS, Sales Augusto. 2021. “Comissões de Heteroidentificação Étnico-Racial: lócus de constrangimento ou de controle social de uma política pública?”. O Social em Questão, Ano XXIV, n. 50:11-62, maio-ago.
  • SILVA, Ana Claudia Cruz da; CIRQUEIRA, Diogo Marçal; RIOS, Flávia; ALVES, Ana Luisa Monteiro. 2020. “Ações Afirmativas e Formas de Acesso no Ensino Superior Público: O caso das comissões de heteroidentificação”. Novos Estudos CEBRAP, v. 39, n. 2:329-347.
  • UFF. 2017. ANEXO I do EDITAL DO PROCESSO SELETIVO PARA INGRESSO NOS CURSOS DE GRADUAÇÃO POR MEIO DO SiSU NO SEGUNDO SEMESTRE DE 2017. Disponível em: Disponível em: http://www.coseac.uff.br/2017/ Acesso em 04/09/2022.
    » http://www.coseac.uff.br/2017/
  • VALENTE, Ana Lúcia E. F. 2006. “A ‘Má vontade antropológica’ e as cotas para negros nas universidades (ou usos e abusos da antropologia na pesquisa educacional II: quando os antropólogos desaprendem”. InterMeio, v, 12, n. 24:84-103.
  • VENTURINI, Anna Carolina 2017. “Ações afirmativas para pós-graduação: desenho e desafios da política pública”. In: Anais do 41º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais São Paulo: Anpocs. Disponível em: Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/41-encontro-anual-daanpocs/spg-4/spg27-1/11017-acoes-afirmativas-para-pos-graduacao-desenho-edesafios-da-politica-publica/file Acesso em 02/08/2022.
    » http://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/41-encontro-anual-daanpocs/spg-4/spg27-1/11017-acoes-afirmativas-para-pos-graduacao-desenho-edesafios-da-politica-publica/file
  • VENTURINI, Anna Carolina. 2021. “Ações Afirmativas em Concursos para Docentes de Universidades Públicas e a Adoção de Comissões de Heteroidentificação”. Boletim de Análise Político-Institucional, v. 31:129-135.
  • 1
    Para mais detalhes sobre o tema dos coletivos negros, vale a leitura de Guimarães, Rios e Sotero (2020).
  • 2
    Recomendação nº 41, do Ministério Público Federal, de 9 de agosto de 2016.
  • 3
    Até 2016, o modelo de autodeclaração usado pela UFF não incluía fotografia.
  • 4
    Dentre o material à disposição para o estudo sobre a regulamentação da matéria destacava-se a decisão proferida em Brasil, Supremo Tribunal Federal, ADPF 186, Relator Min. Ricardo Lewandowski, 26 de abril de 2012, confirmando a constitucionalidade do critério fenotípico então mobilizado por comissões de heteroidentificação adotadas pela UnB. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693, Acesso em 28/02/2022.
  • 5
    Recomendação presente no voto do relator da ADPF 186 (Brasil 2012).
  • 6
    Cf. Anexo I do Edital do Processo Seletivo para ingresso nos cursos de graduação por meio do SiSU no segundo semestre de 2017. Disponível em: http://www.coseac.uff.br/2017/. Acesso em 04/09/2022.
  • 7
    Cabe salientar que esta seria também a posição adotada pela Orientação Normativa nº 04, do MPOG, editada no ano seguinte.
  • 8
    Ver, por exemplo, o dossiê sobre as comissões de heteroidentificação publicado pela Revista da ABPN (Marques 2019). O dossiê conta com oito artigos sobre as experiências de diferentes universidades. Todos afirmam o critério fenotípico exclusivo para a validação da autodeclaração. Para um panorama mais atualizado da extensão com que a maioria das universidades federais adota o critério fenotípico, veja-se Santos (2021).
  • 9
    Ver Instrução de Serviço Prograd nº 02/2018, de 20 de fevereiro. A partir desse ano, a autodeclaração passou a contar com um espaço para o candidato escrever uma exposição de motivos sobre sua autodeclaração de pertencimento étnico-racial (ver http://www.coseac.uff.br/vestibular.htm). No SiSU de 2022, a autodeclaração passou a contar com a palavra “identitários”, devendo o candidato se autodeclarar “de acordo com os critérios exclusivamente identitários/fenotípicos” (cf. Tutorial para utilização do Sistema de Pré-Matrícula on-line. Disponível em: http://www.coseac.uff.br/20222/. Acesso em 25/08/22).
  • 10
    Tal situação era estranha igualmente para servidores da UFF que integravam ambas as comissões. Entre participantes das oficinas das comissões de concursos para técnicos, havia pessoas que também participavam das comissões voltadas para o ingresso de estudantes.
  • 11
    Disponível em: https://www.andes.org.br/sites/publicacoes. Acesso em 25/02/2022.
  • 12
    O item 2.4.12 do Edital nº 212/2016 estabelecia que: “A Comissão Específica, responsável pela verificação da veracidade da Autodeclaração, considerará, tão somente, os aspectos fenotípicos do Candidato, os quais serão verificados obrigatoriamente com a presença do mesmo, conforme disposto no § 1º, do artigo 2º, da Orientação Normativa nº 3, de 1º de agosto de 2016, publicada no Diário Oficial da União de 2 de agosto de 2016, Seção 1, página 54, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão”. A fórmula se repetiria nos editais seguintes, com a única diferença de, a partir de 2018, incorporar a menção à Portaria MPOG nº 4, de 6 de abril de 2018.
  • 13
    Os recursos seriam avaliados por uma comissão recursal composta por três pessoas, diferentes das cinco que compuseram a primeira comissão de heteroidentificação. Nesse novo procedimento seriam avaliados o texto do recurso enviado pelos candidatos, o parecer da comissão anterior e a filmagem realizada durante a entrevista.
  • 14
    Informações gentilmente fornecidas em comunicação eletrônica pela Coordenação de Pessoal Docente (CPD/UFF).
  • 15
    Há bons trabalhos tratando da participação das ciências sociais brasileiras nesse debate, como Feres Jr., Campos e Daflon (2018).
  • 16
    Ver, por exemplo, Banaggia (2021). Autoras e autor deste trabalho já estiveram presentes em vários desses espaços.
  • 17
    Infelizmente, o link para acesso a esse documento não está mais disponível no portal da ABA. Ele é citado por Maio e Santos (2005) e Carvalho (2005). Em Valente (2006:87) se tem acesso ao conteúdo da curta nota.
  • 18
    Trata-se de uma primeira orientação normativa relativa ao cumprimento da Lei 12.990/14 que obriga a reserva de vagas de cotas raciais em concursos públicos.
  • 19
    Manifesto contra as cotas raciais disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/a-integra-do-manifesto-contra-as-cotas-raciais/. Acesso em 02/09/2022. Manifesto a favor das cotas raciais disponível em: https://www.geledes.org.br/confira-a-integra-do-manifesto-a-favor-das-cotas/. Acesso em 02/09/2022.
  • 20
    Nota da Associação Brasileira de Antropologia: - Repúdio à Orientação Normativa nº. 3, de 1º de agosto de 2016, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, contra Programa de Promoção da Igualdade Racial (2016). Disponível em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/noticias/nota-da-associacao-brasileira-de-antropologia-aba/.%20Acesso%20em%2021/08/22.
  • 21
    Inclusive o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (cf. Osório 2003).
  • 22
    A Lei 12.711/12 previa um aumento gradual do percentual de vagas ao longo de quatro anos até atingir a proporção da população (preta, parda ou indígena) em cada estado, o que aconteceria em 2016.
  • 23
    Reflexões sobre “colorismo” e “passabilidade” da pessoa parda de pele clara são fundamentais para a compreensão da classificação racial no Brasil (ver, entre outros, Munanga, 1999; Carneiro 2004; Rios 2019; Arruda 2020).
  • 24
    Indivíduos que supostamente passaram a se denominar negros apenas para acessar as vagas das ações afirmativas (Rodrigues, 2021).
  • 25
    Disponível em: https://almapreta.com/sessao/politica/candidatos-ao-governo-da-bahia-acm-neto-e-vice-se-autodeclaram-negros. Acesso em 25/08/22.
  • 26
    Como documentado por Santos (2021), várias universidades pelo país foram instadas pelos órgãos de controle, especialmente o MPF, a estabelecer comissões de sindicância, haja vista o número significativo de denúncias de que alunos com fenótipo branco tinham sido aprovados por meio das cotas raciais. Nos anos de 2021 e 2022, a UFF montou e concluiu duas dessas comissões de sindicância.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2022
  • Aceito
    06 Out 2022
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com