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SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.

SOUZA, Neusa Santos. . 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.

“Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo” (:45SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.). Com esta afirmação, a psicanalista e intelectual negra, Neusa Santos Souza, abre a introdução de Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, em princípio uma dissertação de mestrado, defendida em 1981, no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e publicada como livro em 1983. Quarenta anos após a sua produção, uma nova edição é publicada (2021SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.), no lastro do movimento mais amplo de crescente interesse, releituras e reconhecimento de autoras/es negras/os como resposta à histórica invisibilização de intelectuais negras/os brasileiras/os, produto de um racismo epistêmico que em muito sustentou a produção de conhecimento e o mercado editorial. O destaque para a frase de abertura da obra, aqui citada, não é trivial e comunica sobre a relevância depositada na produção de um discurso autoenunciado, que faz frente aos estereótipos raciais reproduzidos e atualizados historicamente nos estudos brasileiros sobre “o negro” tomado como objeto e problema de investigação. A passagem de objeto para sujeito marca a fala ou a escrita de si como um ato político e de descolonização (Kilomba 2019KILOMBA, Grada. 2019. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó.).

Dessa forma, o estudo de Souza baliza certo pioneirismo na medida em que pretende sustentar, em nível de elaboração de um gênero de conhecimento, um “discurso do negro sobre o negro no que tange à sua emocionalidade” (:45SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.). Apesar de ter sido Virgínia Bicudo (1945BICUDO, Virgínia L. 1945. Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Dissertação de Mestrado em Ciência, Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.) a primeira autora a inaugurar, no Brasil, a discussão que articula a discriminação racial ao adoecimento psíquico, ou da experiência de racialização a processos de subjetivação de pessoas negras, foi Neusa Santos Souza quem situou a produção deste discurso como a possibilidade de (re)organizar uma identidade negra, pautada no amor a si e à negritude, a partir de sua construção: “ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (:115SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.). Tornar-se negro/a passa, portanto, por descobrir e produzir uma fala, uma linguagem sobre si, não preexistente.

A elaboração deste discurso só é possível através da compreensão da dimensão posicionada da experiência social e subjetiva de ser negro/a numa sociedade branca - branca em sua ideologia, estética e comportamentos dominantes. Sociedade que projeta, no sujeito negro, um apelo de inserir-se a partir de signos, valores e referenciais que correspondem a modelos de identificação brancos, em que tomar estes modelos para si se delineia “como a única possibilidade de ‘tornar-se gente’” (:46SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.). Ao deparar-se com a materialidade social de que “ser bem tratado era ser tratado como o branco” (:50), o sujeito negro se percebe inserido em um campo de apelo e desejo de assemelhar-se ao branco, para ser respeitado, para ser visto como igualmente humano, ainda que isto implique alienar-se de sua marca racial. O caminho percorrido para esse assemelhamento ao branco é o da ascensão social, pois este significante “branco” carrega consigo marcas simbólicas determinadas que se ligam a um status de ordem econômico-social. No entanto, dobrar-se a prerrogativas brancas engendra no/a negro/a um alto custo emocional: o custo da experiência subjetiva de sujeição e negação de sua identidade histórico-existencial.

A obra Tornar-se negro escancara a dimensão menos imediata, porque menos evidente, do racismo na sociedade brasileira, a partir do olhar para o conflito intrapsíquico de pessoas negras em processo de ascensão social. Como metodologia de pesquisa baseada em estudos de caso e histórias de vida, a autora entrevista 10 interlocutores negros e negras em mobilidade econômica ascendente no estado do Rio de Janeiro. A escolha pelo recorte de negros/as em ascensão pretende elucidar os conflitos emocionais decorrentes desta experiência particular, associando-a ao campo de constituição subjetiva, compreendido como historicamente determinado. Articulação que explora no capítulo 1, apoiando-se em referências sociológicas canônicas dos estudos das relações raciais no Brasil - sobretudo as que integram a geração do Projeto Unesco a partir de 1950. Ao se delimitar à experiência negra de ascensão, Souza nos possibilita evidenciar o equívoco contido na imbricação de racismo e pobreza, que sustenta boa parte da literatura sobre as relações raciais no Brasil, tensionando a associação acrítica entre ascensão social e branqueamento. Com este recorte, evidencia, por um lado, a experiência de discriminação racial presente entre negros situados em uma posição econômica privilegiada e, por outro lado, atesta que o estímulo individualizante à ascensão desorganiza a percepção de um coletivo social negro e desarticula a potencialidade da luta política antirracista.

Para construir seu argumento sobre os efeitos psicossociais da experiência de discriminação racial e das consequências da subjetivação, por pessoas negras, da brancura como valor, a autora toma emprestado conceitos da psicanálise freudiana como narcisismo, ego e ideal do ego. A psicanálise começa a aparecer de forma mais tímida, porém bem acompanhada por Franz Fanon, no capítulo 2, quando a autora discute a força simbólica e estruturante do “mito negro”, enquanto resíduo biológico que “toma o lugar da história” (:54SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.) na constituição imaginária da “ raça”, consolidando um discurso social de exclusão. Mas é no capítulo 3 que a teoria psicanalítica ganha corpo, quando a discussão sobre a noção de narcisismo é enfrentada e remetida no sentido de recuperar que a constituição do ego se dá sempre na relação ego/ corpo. Tal recuo teórico solavanca seu argumento de que a ferida narcísica pela qual o sujeito negro é submetido se concretiza pelo fato de o corpo negro ser um corpo socialmente rejeitado. A estrutura psíquica de qualquer indivíduo solicita um modelo ideal a partir do qual o sujeito irá se constituir, que se pauta tanto na idealização dos pais, ou substitutos, quanto em ideais coletivos. Este modelo é compreendido, na psicanálise, como ideal de ego, que é da ordem do simbólico. “O ideal do ego é, portanto, a instância que estrutura o sujeito psíquico, vinculando-o à lei e à ordem. É o lugar do discurso” (:64SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.). Sendo o discurso social um discurso racista, o sujeito irá eleger o não negro, ou seja, o branco, como ideal de ego privilegiado.

O imaginário racista atua enquanto campo formativo de um ideal de ego branco, que institui, no sujeito negro, uma tensão entre o ego e o ideal do ego insuportável e insustentável. A psicanalista atesta que todos os sujeitos não psicóticos (neuróticos) sustentam sua estrutura psíquica sob o signo dessa tensão, e o ideal de ego almejado aparece como sempre inalcançável. No entanto, a dimensão superegoica, que bombardeia o ego de exigências, expectativas e punições, ocupa, na estrutura psíquica do sujeito negro, uma presença dilacerante e insuportável, na medida em que o ideal de ego branco produz uma defasagem que carrega consigo a concretude de uma insustentação. Insustentação esta que se faz visível pelos limites da própria materialidade da cor e do corpo negros. “É que o ideal do ego do negro, que é em grande parte constituído pelos ideais dominantes, é branco. E ser branco lhe é impossível” (:73SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.).

A violência racista opera em sua máxima efetivação através da dimensão superegoica, viabilizando a interiorização, pelo sujeito negro, das exigências e dos ideais reproduzidos no campo social e simbólico. Assim, este não precisa se submeter a experiências de discriminação recorrentes para se subjugar e se ver inferior diante do branco, não necessita do outro que emita a voz racista para experienciar o racismo, pois esta voz é internalizada a tal ponto que o racismo se presentifica mesmo na ausência do sujeito racista, o que faz com que o sujeito negro se sinta em dívida e em falha diante das expectativas dos outros e das próprias, ou faz com que se sinta impelido a se apresentar como o melhor em todas as atividades com as quais se compromete. “Ser o melhor! Na realidade, na fantasia, para se afirmar, para minimizar, compensar o ‘defeito’, para ser aceito. Ser o melhor é a consigna a ser introjetada, assimilada e reproduzida” (:72SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.). Isto não lhe garante, entretanto, a consecução do ideal. É o que a análise das histórias de vida de seus diferentes interlocutores, apresentada nos capítulos 4 e 5, irá elucidar. Muitos trechos destacados de seus entrevistados reforçam a percepção de uma condição psicopatológica melancólica, que acompanha os sentimentos de perda de autoestima, culpa, inferioridade, insegurança e angústia. “A distância entre o ideal e o possível cria um fosso vivido com efeito de autodesvalorização, timidez, retraimento e ansiedade fóbica” (:73SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.).

Entretanto, não se fixando em um diagnóstico ou nomeação de uma experiência de sofrimento psicossocial de um estrato populacional particular, a psicanalista apresenta, como conclusão da obra, uma saída alternativa à melancólica. Não havendo uma concepção positiva de si para se construírem laços identificatórios, o sujeito negro tende a associar-se a um modelo de identidade que reflete o ideal de brancura, dominante numa sociedade em que sobrevive o racismo antinegro. No entanto, é na ausência desta concepção positiva de negritude, na inexistência de uma identidade negra que se possa rejeitar ou afirmar, que o/a negro/a deve ater-se ao trabalho político e subjetivo de criar uma nova identidade, esta sim passível de viabilizar uma identificação positiva. Tornar-se negro/a é, portanto, uma saída possível ao sofrimento efeito do racismo, que exige, como condição de cura, a construção pelo/a negro/a de uma nova identidade que “lhe dê feições próprias” (:116SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.), que, pautada na desidentificação ao ideal de ego branco, permita que identificações positivas com a negritude emerjam como elementos sobre os quais se possa construir a si e, como efeito, sustentar facilitadores de transformação da história “individual e coletiva, social e psicológica” (:116SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.).

Referências bibliográficas

  • BICUDO, Virgínia L. 1945. Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo Dissertação de Mestrado em Ciência, Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.
  • KILOMBA, Grada. 2019. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano Rio de Janeiro: Cobogó.
  • SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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