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O que falar em esperanto quer dizer: Revisitando políticas prefigurativas, movimentos sociais e as novas esquerdas

What it means to speak Esperanto: Revisiting prefigurative politics, social movements and the new left

¿Qué significa hablar en esperanto? Revisitando políticas prefigurativas, movimientos sociales y las nuevas izquierdas

Resumo

Desde a primeira metade do século XX, um coletivo de esquerda de Paris organiza encontros semanais para debater política a partir de perspectivas progressistas diversas. Curiosamente, esses debates são realizados em esperanto, uma língua construída para combater rivalidades nacionalistas e estimular a comunicação internacional. A partir de uma etnografia desse grupo de debates, este artigo nos convida a repensar a forma como a antropologia tem usado o termo prefiguração como uma categoria classificatória para distinguir as práticas políticas da new left daquelas das velhas esquerdas. Examinando como o esperanto foi historicamente rotulado como um projeto universalista, mostro como a perspectiva da prefiguração nos permite salientar o uso cotidiano desta língua na criação de espaços horizontais de coprodução de conhecimento político entre ativistas. A partir disso, argumento que o uso de prefiguração como um atalho para distinguir e tipificar movimentos sociais não só é etnograficamente contraprodutivo, como também nos leva a negligenciar as convergências que novas e velhas esquerdas muitas vezes buscam construir para enriquecer seus diálogos e suas lutas coletivas.

Palavras-chave:
Prefiguração; Ativismo político; Movimentos sociais; Novas esquerdas; Esperanto

Abstract

Since the first half of the twentieth century, a left-wing collective in Paris has organized weekly meetings to debate politics from different progressive perspectives. Interestingly, these debates are held in Esperanto, a language created specifically to fight nationalist rivalries and stimulate international communication. Based on an ethnography of this debate group, this article invites us to rethink how anthropology has used the term prefiguration as a classificatory category to distinguish the political practices of the new left from those of the old left. Examining how Esperanto has historically been labeled as a universalist project, I show how the perspective of prefiguration enables us to highlight the ordinary use of this language in the creation of horizontal spaces for the co-production of political knowledge among activists. From this, I argue that the use of prefiguration as a shortcut to distinguish and typify social movements not only is ethnographically counterproductive, but also entails neglecting the convergences that the new and the old left often seek to build in order to enrich their dialogues and collective struggles.

Keywords:
Prefiguration; Political activism; Social movements; New left; Esperanto

Resumen

Desde la primera mitad del siglo XX, un colectivo de izquierda en París organiza encuentros semanales para debatir sobre política desde diferentes perspectivas progresistas. Curiosamente, estos debates se llevan a cabo en esperanto, un idioma construido para combatir las rivalidades nacionalistas y estimular la comunicación internacional. A partir de una etnografía de este grupo de debates, este artículo nos invita a repensar cómo la antropología ha utilizado el término prefiguración como categoría clasificatoria para distinguir las prácticas políticas de la new left de las de la vieja izquierda. Examinando cómo históricamente el esperanto ha sido etiquetado como un proyecto universalista, muestro cómo la perspectiva de la prefiguración nos permite resaltar el uso cotidiano de esa lengua en la creación de espacios horizontales para la coproducción de conocimiento político entre activistas. A partir de esto, sostengo que el uso de la prefiguración como atajo para distinguir y tipificar movimientos sociales no solo es etnográficamente contraproducente, sino que también implica descuidar las convergencias que las nuevas y viejas izquierdas muchas veces buscan construir para enriquecer sus diálogos y luchas colectivas.

Palabras clave:
Prefiguración; Activismo político; Movimientos sociales; Nuevas izquierdas; Esperanto

Introdução

Em junho de 2012, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (RIO+20), o então presidente do Uruguai, José Mujica, fez um discurso sobre como as longas jornadas de trabalho e os padrões de consumo da sociedade contemporânea comprometem a felicidade humana. Nesse discurso, Mujica argumentou que priorizar o consumo faz com que nos esqueçamos do que temos de mais valioso, que é a nossa relação com um meio ambiente abundante e provedor. Esse argumento, no entanto, teria passado despercebido por um grupo de ativistas políticos progressistas de Paris, na França, se não fosse por um artigo de opinião - escrito em esperanto - sobre Mujica e seu discurso na RIO+20.

O artigo de opinião em questão (Fernández 2016FERNÁNDEZ, Miguel. 2016. “Parolado far Nuntempa Sokrato”. Sennaciulo 1335-1336 (9-10):17-18.) havia sido publicado na revista bimestral da Sennacieca Asocio Tutmonda (SAT, Associação Mundial Apátrida), um coletivo de falantes de esperanto que usa esta língua para debater sobre perspectivas políticas progressistas. Ao ler este artigo, Pascal,1 1 Todos os nomes são pseudônimos, para preservar a identidade de meus interlocutores. um funcionário do Ministério da Agricultura da França, foi a uma reunião organizada na sede da SAT-Amikaro - sucursal francófona da SAT no 13 ème arrondissement de Paris - com o objetivo de discutir o conteúdo do artigo. Ao chegar à associação em uma sexta-feira à noite em setembro de 2016, ele se juntou aos participantes da babilrondo - o círculo semanal de debates organizado pela SAT-Amikaro. Cumprimentando em esperanto seus amigos e demais presentes, Pascal tirou o casaco, se apoiou na longa mesa em torno da qual a discussão se desenrolava, empunhou um exemplar da revista e disse,2 2 Salvo indicação em contrário, todas as citações referem-se a falas originalmente em esperanto, traduzidas por mim para o português. em um tom entusiasmado: “Infelizmente, a gente não ouve muito sobre política latino-americana na grande mídia francesa, e é por isso que precisamos ter esse tipo de debate aqui!”. Sondando a reação das doze pessoas à volta, ele complementou: “Se não fosse por este artigo em esperanto sobre a RIO+20, eu não saberia nada sobre o Mujica! Por que não discutimos mais sobre esses temas?”. Ao nos exortar a debater essas questões, seu "nós" não se referia à mídia francesa, mas ao "nós" reunidos semanalmente na SAT-Amikaro para discutir questões como as eleições francesas, energia nuclear, leis trabalhistas e os conflitos entre Irã e EUA enquanto compartilhávamos queijos, biscoitos, vinhos orgânicos e frutas trazidas pelos próprios participantes.

Fundada em 1921, a associação SAT se propõe a construir um fórum plural, transnacional e multilíngue para discussões políticas, usando o esperanto como língua-ponte em seus debates presenciais, assembleias on-line e publicações - as quais incluem revistas, livro, panfletos e DVDs. Sem liderar a organização de protestos nem de ocupações, a SAT e suas atividades apresentam um cunho primordialmente educacional, buscando estimular a troca de ideias sobre política. Sem se preocupar em definir o que o caráter político das atividades da associação engloba, seus membros operacionalizam em suas práticas e em seus debates uma acepção abrangente de política que envolve repensar relações de poder na sociedade, formas partidárias e apartidárias de participação em processos sociais organizacionais, democratização da comunicação e do acesso à informação e inclusão de minorias de todos os tipos em processos de tomadas de decisão. A SAT-Amikaro, por outro lado, foi criada em 1945 para aproximar proletários e ativistas de esquerda em países francófonos que buscavam um espaço transnacional no qual pudessem expressar visões opostas ao nacionalismo que impulsionou a então recém-terminada Segunda Guerra Mundial.

O esperanto, por sua vez, é uma língua construída no final do século XIX, no Império Russo, com o intuito de estimular a compreensão mútua entre pessoas de origens étnicas, nacionalidades e línguas maternas diferentes. A ideologia linguística (Silverstein 1979SILVERSTEIN, Michael. 1979. “Language Structure and Linguistic Ideology”. In: P. Clyne, W. Hanks & C. Hofbauer (orgs), The Elements: A Parasession on Linguistic Units and Levels. Chicago: Chicago Linguistic Society. pp. 193-247.) por trás do esperanto pressupõe que o uso de uma língua nacional hegemônica (como o inglês, o francês ou o mandarim) na comunicação internacional produz hierarquias, nas quais os falantes nativos de tais línguas se encontram em uma posição comunicativa privilegiada. Nesta perspectiva, aprender e usar o esperanto significa se deslocar de sua zona de conforto linguístico para conversar em uma língua que não é a primeira língua de ninguém e que, portanto, pode ser a segunda ou a terceira língua de qualquer um. Questionando o consenso pós-político sobre o uso de línguas nacionais hegemônicas na comunicação internacional, falantes e ativistas propõem o esperanto como uma ferramenta antinacionalista que cria espaços comunicativos mais inclusivos, igualitários e colaborativos, nos quais pessoas de diferentes origens nacionais e linguísticas podem se expressar em pé de igualdade.

Desde o seu lançamento, em 1887, o esperanto foi amplamente rotulado por historiadores, jornalistas e por seus primeiros falantes como uma “língua universal”. No entanto, depois de anos sem substituir o francês e o inglês na comunicação internacional e sem congregar mais do que alguns milhões de falantes, o esperanto foi relegado ao segundo plano. Como consequência, os ativistas a favor da promoção da língua acabaram vistos como apoiadores de uma utopia sem futuro. Diante disso, um aparente paradoxo emerge ao se sobreporem duas imagens do esperanto: enquanto um fracasso e enquanto um elemento desencadeador de trocas e discussões entre ativistas. Uma questão, portanto, se impõe: qual é a relevância do esperanto na atualidade que justifica o seu uso em debates e práticas políticas? Inspirado na questão “o que falar quer dizer?”, levantada por Pierre Bourdieu (2008)BOURDIEU, Pierre. 2008 [1982]. A Economia das Trocas Linguísticas: O que Falar Quer Dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo., o que falar em esperanto quer dizer para além do que é de fato falado em esperanto?

Para explorar estas questões, este artigo - resultado do primeiro estudo etnográfico de longo prazo sobre falantes de esperanto3 3 Minha inserção na SAT-Amikaro - assim como em outras associações de esperanto e coletivos progressistas em Paris - se deu como parte do meu trabalho de campo sobre pluralidade linguística e ativismo político na França. A pedido dos meus interlocutores, a língua que mais usei em entrevistas e ao longo da observação participante foi o esperanto, apesar de eu também ser fluente em francês. - nos convida a pensar os conceitos de universalismo e prefiguração como pontos de partida para revisitarmos alguns aspectos fundamentais de movimentos sociais e práticas políticas de esquerda.

Os movimentos sociais comumente rotulados como “tradicionais” ou, alternativamente, como constituintes das “velhas esquerdas” - surgidos no bojo da Revolução Industrial, institucionalizados em torno de partidos políticos e sindicatos, e originalmente ancorados em demandas trabalhistas e de origem econômica - estimularam as ciências sociais a pensar ativismo político a partir das teorias socialistas e comunistas sobre mudança social e revolução (Boggs 1977BOGGS, Charles. 1977. “Marxism, Prefigurative Communism and the Problem of Workers’ Control”. Radical America, 6:99-122.). De acordo com esta perspectiva, o sucesso de determinada mobilização está associado ao alcance efetivo e universal de um objetivo determinado (Maeckelbergh 2011MAECKELBERGH, Marianne. 2011. “Doing is Believing: Prefiguration as Strategic Practice in the Alterglobalization Movement”. Social Movement Studies, 10 (1):1-20.). Nesse sentido, por exemplo, o socialismo ou o comunismo se tornariam efetivamente bem-sucedidos quando a revolução se consumasse e mudasse o modo de produção em escala nacional - ou, ainda melhor, transnacional.

No entanto, o surgimento de “novos movimentos sociais” (Calhoun 1993CALHOUN, Craig. 1993. “’New Social Movements’ of the Early Nineteenth Century”. Social Science History, 17 (3):385-427.) nos EUA e na Europa a partir dos anos 1960 impôs uma reconsideração de tal paradigma universalista. As chamadas new left (novas esquerdas; ver Epstein 1991EPSTEIN, Barbara. 1991. Political Protest and Cultural Revolution: Nonviolent Action in the 1970s and 1980s. Berkeley: University of California Press. e Polletta 2002POLLETTA, Francesca. 2002. Freedom is an Endless Meeting: Democracy in American Social Movements. Chicago: Chicago University Press.) trouxeram para as agendas políticas causas relativas não só a questões econômicas e de classe, mas também a direitos civis, ética e formas alternativas de habitar o mundo. Estas incluem feminismo, ambientalismo, movimentos LGBT+, os movimentos negros, e ainda movimentos contra a globalização neoliberal e por uma comunicação internacional mais justa. Questionando as formas marxistas e social-democratas de ação política, tais formas de ativismo não procuram necessariamente mobilizar todos os meios disponíveis para alcançar uma causa ou objetivo preestabelecido orientado para o futuro. Em vez disso, visam criar uma sociedade mais igualitária, horizontal e inclusiva no presente. Tais formas de se fazer política de base - chamadas práticas prefigurativas - buscam igualar os meios e os fins do ativismo. Assim, alcançar essa sociedade horizontal requer a construção de relações horizontais entre os ativistas, de modo a questionar na prática as hierarquias sociais cotidianas e, assim, prefigurar a horizontalidade no próprio fazer ativista. No entanto, ao consolidar esse sentido, o conceito de prefiguração acaba por se tornar uma categoria classificatória, sendo usada por cientistas sociais como um rótulo para distinguir as novas e as velhas esquerdas.

Tomando como objeto empírico um grupo de debates políticos em esperanto que se reúne semanalmente em Paris, este artigo propõe que consideremos como o uso de prefiguração como uma categoria classificatória tem limitado a visibilidade da horizontalidade, da heterogeneidade e do caráter experimental cotidiano presentes em muitas práticas políticas das esquerdas ditas “velhas” ou “tradicionais” na atualidade. O percurso desse exercício de questionamento etnográfico-teórico se inicia com um mapeamento do processo de mise en discours (discursificação; ver Foucault 1976FOUCAULT, Michel. 1976. Histoire de la Sexualité, Volume 1: La Volonté de Savoir. Paris: Gallimard.) do esperanto, analisando como esta língua foi historicamente associada a um paradigma universalista que subordinava o sucesso do esperanto ao seu uso como uma língua franca global.

Em seguida, distanciando-me deste paradigma, recorro ao material etnográfico que obtive durante 13 meses de observação participante, entrevistas e pesquisa em arquivos (realizadas em francês e em esperanto) na França, em 2016-2017. A partir disso, argumento que as perspectivas de falantes de esperanto sobre suas práticas político-linguísticas estão estreitamente relacionadas às práticas comumente elencadas pelo paradigma prefigurativo. Ao explorar a forma como tais debates políticos mobilizam a língua para criar espaços horizontais de aprendizagem e coprodução de conhecimento, busco contribuir para a antropologia e a sociologia dos movimentos sociais e das práticas políticas a partir de um foco naquilo que o esperanto possibilita aos seus falantes - como, por exemplo, ter acesso a informações sobre Mujica e política latino-americana na França - ao invés de focar no que falantes da língua supostamente reivindicam para um futuro utópico.

Em última análise, as questões que norteiam a discussão que se segue são: o que os movimentos sociais ganham e perdem com um foco em práticas prefigurativas - e o que a antropologia tem a ganhar e a perder com uma mudança de abordagem para além dos paradigmas universalista e prefigurativo? Por fim, como uma reconceptualização de prefiguração pode nos proporcionar uma nova perspectiva sobre outros movimentos sociais de esquerda?

Tornando-se a língua universal

O final do século XIX e o início do século XX testemunharam avanços científicos e tecnológicos consideráveis no Ocidente. As décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial foram marcadas pela invenção do telefone - que gradualmente substituiu o telégrafo -, o desenvolvimento das locomotivas elétricas e a diesel, o voo do primeiro avião motorizado e a popularização dos serviços postais e das rotas marítimas internacionais (Wenzlhuemer 2010WENZLHUEMER, Roland. 2010. “Globalization, Communication and the Concept of Space in Global History”. Historical Social Research/Historische Sozialforschung, 35 (1):19-47.; Müller 2016MÜLLER, Simone. 2016. Wiring the World: The Social and Cultural Creation of Global Telegraph Networks. New York: Columbia University Press.). Paralelamente, o imperialismo e o neocolonialismo expandiram a hegemonia europeia para os continentes africano e asiático, atingindo seu ápice no período entre 1875 e 1914 (Hobsbawm 1989HOBSBAWM, Eric. 1989. The Age of Empire, 1875-1914. New York: Vintage Books.). Em meio a esse cenário de expansão europeia e de uma crescente circulação internacional de pessoas, bens e ideias, uma questão se impunha: em qual língua as pessoas se comunicariam em um mundo cada vez mais integrado?

A celebração do desenvolvimento tecnológico e da crescente curiosidade das classes médias europeias em relação à diversidade do mundo além-mar ocupou o centro das atenções nas Exposições Universais. Realizadas regularmente a partir de 1851, essas exposições contavam com pavilhões que demonstravam o que cada país tinha a oferecer ao mundo em termos de culturas e tecnologias (Bernal 1965BERNAL, John Desmond. 1965. Science in History, Volume 2: The Scientific and Industrial Revolution. London: Penguin Books.; Benedict 1983BENEDICT, Burton. 1983. The Anthropology of World’s Fairs: San Francisco’s Panama Pacific International Exposition of 1915. Berkeley e London: Lowie Museum of Anthropology e Scolar Press.). Se as concepções de modernidade e progresso vigentes na época se ancoravam na promoção de uma humanidade mais interconectada, em quais línguas esses encontros transnacionais deveriam ser realizados? Quando jornalistas de diferentes países tirassem o telefone do gancho para compartilhar notícias ou quando viajantes cruzassem fronteiras em trens a diesel, por meio de qual idioma eles se compreenderiam? Um reconhecimento central desta questão se deu com a criação da Delegação para a Adoção de uma Língua Auxiliar Internacional, no âmbito da Exposição Universal de Paris de 1900 (Couturat et al. 1910COUTURAT, Louis; JESPERSEN, Otto; LORENZ, Richard; VON HADERMUR, Leopold Pfaundler & OSTWALD, Wilhelm. 1910. International Language and Science: Considerations on the Introduction of an International Language into Science. London: Constable and Company Limited.; Forster 1982FORSTER, Peter. 1982. The Esperanto Movement: Contributions to the Sociology of Language. The Hague: Mouton.:113-127).

Enquanto Estados-nações e empresas buscavam universalizar suas culturas e tecnologias, diversos indivíduos e grupos criavam códigos universais para a comunicação além de fronteiras nacionais. Na virada do século XX, várias propostas surgiram nesse sentido, principalmente incentivando o uso de línguas nacionais como o francês e o inglês para a comunicação internacional. No entanto, o uso destas como línguas francas frequentemente esbarra na resistência de nacionalistas e anti-imperialistas que se negam a usar a língua hegemônica de outro Estado-nação (Phillipson 1992PHILLIPSON, Robert. 1992. Linguistic Imperialism. Oxford: Oxford University Press .; Eco 1995ECO, Umberto. 1995. The Search for the Perfect Language. Oxford e Cambridge MA: Blackwell Publishers Ltd .:333). Diante desse empecilho, uma proposta alternativa ganhou destaque: e se a comunicação internacional se baseasse em uma língua construída, livre de nacionalismos? Em meio à proliferação de centenas de projetos de línguas - no período rotulado como "a batalha das línguas artificiais" (Garvía 2015GARVÍA, Roberto. 2015. Esperanto and Its Rivals: The Struggle for an International Language. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.) - o Esperanto se sobressaiu, tendo congregado mais de 2 milhões de falantes já nas primeiras décadas do século XX e perdurando até os dias atuais.

Construído por Ludwik Lejzer Zamenhof - um médico judeu que vivia no Império Russo -, o esperanto se baseia em línguas românicas, germânicas e eslavas. Não pertencendo a nenhum grupo nacional ou étnico, ele foi concebido como um instrumento para se contornarem rivalidades nacionalistas. A gramática, o vocabulário básico e os primeiros textos escritos na língua foram publicados em 1887. À medida que este livreto original era traduzido e republicado em russo, francês, inglês, alemão e polonês (Zamenhof 1905ZAMENHOF, Ludwik Lejzer. 1905. Fundamento de Esperanto. Paris: Hachette & Compagnie), o esperanto se difundia pela Europa Ocidental. A língua então ganhou popularidade principalmente na França, onde intelectuais e membros da burguesia a perceberam como um aliado para a promoção da ciência e do comércio em nível transnacional (De Beaufront 1898DE BEAUFRONT, Louis. 1898. “Ce Que Nous Voulons”. L’Espérantiste, 1898.; Couturat et al. 1910COUTURAT, Louis; JESPERSEN, Otto; LORENZ, Richard; VON HADERMUR, Leopold Pfaundler & OSTWALD, Wilhelm. 1910. International Language and Science: Considerations on the Introduction of an International Language into Science. London: Constable and Company Limited.).

As principais arenas nas quais esta língua afirmou sua relevância foram os debates regulares em sedes de associação de esperanto sobre temas políticos, científicos e comerciais, bem como em encontros internacionais anuais. Seja para a promoção da paz, da ciência ou dos negócios, o esperanto foi rapidamente adicionado à infinidade de invenções modernas com ambições universalistas e visto “como um telégrafo, por meio do qual qualquer mensagem poderia ser transmitida” (Kiselman 2008KISELMAN, Christer. 2008. “Esperanto: Its Origins and Early History”. In: A. Pelczar (org.), Prace Komisji Spraw Europejskich PAU. Kraków: Polska Akademia Umiejetnosci. pp. 39-56.:53, tradução minha). Após o encerramento das atividades da Delegação para a Adoção de uma Língua Auxiliar Internacional, em 1907, outras instituições assumiram o papel de debater a comunicação internacional, criando arenas nas quais o esperanto lutaria por reconhecimento e legitimação. Uma delas foi uma comissão (criada em 1922) da Liga das Nações para discutir o ensino de uma língua internacional nos currículos escolares (Nitobe 1998NITOBE, Inazô. 1998. “Esperanto and the Language Question at the League of Nations”. In: M. Fettes & S. Bolduc (orgs), Al Lingva Demokratio/ Towards Linguistic Democracy/ Vers La Démocratie Linguistique. Rotterdam: Universala Esperanto-Asocio. pp. 62-78.).

Além de ser usada em periódicos, cartas e cartões-postais, essa língua também estabeleceu sua presença por meio dos Universalaj Kongresoj (Congressos Universais de Esperanto), organizados anualmente para reunir falantes de todo o mundo. À medida que esses congressos - assim como as Exposições Universais - forjavam a imagem de um mundo cada vez mais interconectado e internacionalista (Harvey 1996HARVEY, Penelope. 1996. Hybrids of Modernity: Anthropology, the Nation State and the Universal Exhibition. London e New York: Routledge.), os futuros possíveis que se desenhavam para o Ocidente também se expandiriam para o Oriente e para o Sul Global. Esta perspectiva expansionista - que se aplicava igualmente a tecnologias, visões de mundo e invenções linguísticas europeias - fez nascer a percepção de que o esperanto apenas alcançaria seu potencial efetivo ao se consolidar como língua franca global. Tal imagem persiste até os dias atuais - presente, por exemplo, na forma como enciclopédias e dicionários o definem como "uma língua artificial inventada para uso universal" (Oxford English Dictionary 2020OXFORD ENGLISH DICTIONARY. 2020. Verbete Esperanto. Oxford: Oxford University Press . Disponível em: Disponível em: https://www.oed.com/view/Entry/64403?redirectedFrom=esperanto#eid . Acesso em 12/02/2020.
https://www.oed.com/view/Entry/64403?red...
; tradução minha).

A derrocada do universalismo

Zamenhof e os primeiros falantes da língua buscaram consolidá-la por meio da construção de um corpus literário - composto por obras traduzidas e originalmente escritas em esperanto - e de uma comunidade de fala (Schor 2016SCHOR, Esther. 2016. Bridge of Words: Esperanto and the Dream of a Universal Language. New York: Metropolitan Books/Henry Holt and Company.). Conforme a língua se propagava pela Europa, estes se tornaram os objetivos principais do movimento esperantista, composto por falantes e apoiadores responsáveis ​​por ensinar a língua, produzir conteúdos, organizar encontros e atrair novos apoiadores.

Diversos pesquisadores (entre os quais Forster 1982FORSTER, Peter. 1982. The Esperanto Movement: Contributions to the Sociology of Language. The Hague: Mouton.; Garvía 2015GARVÍA, Roberto. 2015. Esperanto and Its Rivals: The Struggle for an International Language. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.; Lins 2016LINS, Ulrich. 2016. Dangerous Language: Esperanto under Hitler and Stalin. London: Palgrave Macmillan. e Schor 2016SCHOR, Esther. 2016. Bridge of Words: Esperanto and the Dream of a Universal Language. New York: Metropolitan Books/Henry Holt and Company.) analisaram as maneiras pelas quais o esperanto ganhou força no início do século XX por meio do discurso universalista: pacifistas e tolstoianos4 4 Pacifistas inspirados pelas perspectivas filosóficas do romancista russo Lev Tolstoy. na Europa Oriental, assim como intelectuais e burgueses na Europa Ocidental, viram essa língua como uma forma de promover suas ideias, atividades e interesses. No entanto, o início da Primeira Guerra Mundial mudou esse cenário: a percepção europeia de progresso e modernidade sintetizada pelas Exposições Universais entrou em colapso. Com isso, a percepção crescente do universalismo como uma “coisa do passado” também passou a ser usada para caracterizar o esperanto.

A partir de 1914, esta língua encontrou um novo nicho nas classes trabalhadoras e em coletivos anarquistas, comunistas e pacifistas. Enquanto a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais foram marcadamente motivadas pelo nacionalismo excludente que fortalecia cada vez mais a aversão ao estrangeiro, esses grupos contrários à guerra encontraram no esperanto uma ferramenta internacionalista que reforçava suas identidades não enquanto cidadãos de Estados-nações rivais, mas enquanto camaradas na luta de classes. Com isso, o universalismo do esperanto foi progressivamente tomando forma de internacionalismo. Por um lado, os nacionalismos evidenciaram as limitações do apelo universalista de ideias vindas de uma Europa cada vez mais fragmentada. Por outro lado, o esperanto passou a figurar não mais como uma língua que se pretendia falada universalmente, mas como um recurso para a criação de fóruns multilíngues por meio dos quais grupos específicos - como proletários e ativistas engajados em causas progressistas - poderiam debater suas agendas.

Em 1945, tomando os Estados-nações como unidades básicas de seu funcionamento deliberativo, a Organização das Nações Unidas (ONU) consolidou a transição de um projeto universalista do mundo como uma família de indivíduos - todos compartilhando da mesma humanidade - para um ideal internacionalista do mundo como uma família de Estados-nações (Malkki 1994).5 5 Isso se torna ainda mais evidente quando pensamos no caso de apátridas e refugiados, aos quais o estatuto de seres humanos é frequentemente negado por eles não serem possuidores de uma nacionalidade ou passaporte (Jansen 2009). A partir disso, em 1954, a Unesco e a ONU reconheceram as convergências entre suas propostas e as práticas do movimento esperantista, o que culminou em um reconhecimento oficial, por parte desses organismos internacionais, do valor dessa língua (Forster 1982FORSTER, Peter. 1982. The Esperanto Movement: Contributions to the Sociology of Language. The Hague: Mouton.:242-248).

Posteriormente, a Guerra Fria deu ao esperanto a oportunidade de se apresentar como uma alternativa ao inglês e ao russo, as duas línguas hegemônicas concorrentes em meio às tensões entre os EUA e a União Soviética. Entretanto, a queda do Muro de Berlim significou o declínio desse argumento sobre a relativa neutralidade política do esperanto.

Embora ocasiões políticas específicas possam fornecer o contexto para uma causa ganhar visibilidade e reunir apoiadores (Marullo & Meyer 2004MARULLO, Sam & MEYER, David S. 2004. “Antiwar and Peace Movements”. In: D. Snow, S. Soule & H. Kriesi(orgs), The Blackwell Companion to Social Movements. Oxford e Cambridge MA: Blackwell Publishers Ltd . pp. 641-665.), a relativa ausência de tais oportunidades é um dos fatores que tornam difícil para o esperanto alcançar resultados mais satisfatórios e duradouros. Diferentemente de conflitos armados, emergências humanitárias ou aquecimento global - os quais exigem uma mobilização rápida para resolver questões apresentadas como urgentes - uma causa ligada à comunicação internacional mais igualitária dificilmente exigirá uma resposta imediata. Assim, a relativa falta de ocasiões críticas para mobilização em torno desta língua deu a ela escassas ocasiões de sucesso efêmero, com o movimento esperantista dificilmente se enquadrando no rótulo típico-ideal de "movimento social bem-sucedido" (ver Goldstone 1980GOLDSTONE, Jack. 1980. “The Weakness of Organization: A New Look at Gamson’s The Strategy of Social Protest”. American Journal of Sociology, 85:1017-1042.; Buechler 2004BUECHLER, Steven M. 2004. “The Strange Career of Strain and Breakdown Theories of Collective Action”. In: D. Snow, S. Soule & H. Kriesi (orgs), The Blackwell Companion to Social Movements. Oxford e Cambridge MA: Blackwell Publishers Ltd. pp. 47-66.:54-56).

O paradigma universalista - o qual salienta o insucesso das tentativas de consolidação do esperanto - é também reforçado pela forma como muitos sociólogos vinculam a vitalidade e o “sucesso” desta língua à sua institucionalização. Nikola Rašić (1994RAŠIĆ, Nikola. 1994. La Rondo Familia. Sociologiaj Esploroj en Esperantio. Pisa: Edistudio.), por exemplo, autor de um abrangente levantamento estatístico sobre os falantes da língua, mostra que muitas associações de esperanto na Europa perderam membros ao longo do século XX. A partir disso, ele argumenta que esse declínio na adesão - assim como a crescente porcentagem de membros de idade mais avançada em comparação com os mais jovens - compromete não só a contínua existência dessas associações, como também põe em xeque o futuro da língua. Seguindo a mesma lógica, Peter Forster (1982FORSTER, Peter. 1982. The Esperanto Movement: Contributions to the Sociology of Language. The Hague: Mouton.) fez uma pesquisa entre membros da Associação de Esperanto da Grã-Bretanha nos anos 1970 baseada em arquivos, entrevistas e levantamentos estatísticos. Um dos seus argumentos centrais é que, no auge do discurso universalista, os membros desta associação julgavam que a língua estava prestes a alcançar seu ápice e demonstravam imenso entusiasmo em falá-la e promovê-la. No entanto, nos anos marcados pelo declínio do universalismo, a relevância e a atemporalidade do esperanto já começavam a ser questionadas: “já em 1936 a pergunta ‘o esperanto ainda existe? Eu nunca ouvi falar sobre isso’ é sugerida como lugar-comum" (Forster 1982FORSTER, Peter. 1982. The Esperanto Movement: Contributions to the Sociology of Language. The Hague: Mouton.:277, tradução minha).

Além disso, a ênfase de historiadores na relevância pregressa do esperanto contribui para disseminar uma imagem desta língua como uma anacronia, uma “coisa do passado”. O notável levantamento histórico realizado por Ulrich Lins (2016LINS, Ulrich. 2016. Dangerous Language: Esperanto under Hitler and Stalin. London: Palgrave Macmillan., 2017LINS, Ulrich. 2017. Dangerous Language: Esperanto and the Decline of Stalinism. London: Palgrave Macmillan .), por exemplo, analisa inúmeras ocasiões nas quais o esperanto foi percebido como um inimigo do Estado, quando falantes da língua eram perseguidos e presos por regimes totalitários no continente europeu. Por motivos análogos, os governos chinês e japonês passaram a encarar o esperanto como uma ameaça no início do século XX, com a língua sendo associada ao anarquismo e vista como uma forma de oposição aos valores nacionais tradicionais (Müller & Benton 2006MÜLLER, Gotelind & BENTON, Gregor. 2006. “Esperanto and Chinese Anarchism 1907-1920: The Translation from Diaspora to Homeland”. Language Problems and Language Planning, 30 (1):45-73.; Rapley 2013RAPLEY, Ian. 2013. “When Global and Local Culture Meet: Esperanto in 1920s Rural Japan”. Language Problems and Language Planning, 37 (2):179-196.). Em contrapartida, os falantes da língua no século XXI raramente são perseguidos por governos ou considerados uma ameaça à ordem vigente, de modo a dificilmente serem encarados como “atores coletivos com o potencial de desestabilizar os arranjos políticos existentes” (Tilly 1999TILLY, Charles. 1999. “From Interactions to Outcomes in Social Movements”. In: M. Giugni, D. McAdam & C. Tilly (orgs), How Social Movements Matter. Minneapolis: University of Minnesota Press . pp. 253-270.:263, tradução minha).

A definição convencional do esperanto como uma “língua universal” culminou na percepção de que seu sucesso está atrelado ao seu amplo uso na comunicação internacional em escala global:

Embora o esperanto tenha prevalecido no campo abarrotado e turbulento das línguas artificiais, ele fracassou em se tornar a língua auxiliar internacional que muitos esperavam. O movimento atingiu seu ápice em meados da década de 1920, mas, apenas dez anos depois, as perspectivas do esperanto eram bastante desoladoras. Ele derrotou as línguas artificiais rivais, mas perdeu a guerra contra as línguas naturais - principalmente contra o inglês - na tentativa de se tornar a língua franca do mundo (Garvía 2015GARVÍA, Roberto. 2015. Esperanto and Its Rivals: The Struggle for an International Language. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.:152, tradução minha).

No entanto, tal percepção de fracasso parte do pressuposto de que a história do esperanto é necessariamente a história das suas tentativas de universalização. Mas será que a maioria de seus falantes estava (e está) de fato travando essa batalha?

O que falantes de esperanto têm a dizer

Em uma sexta-feira chuvosa em outubro de 2016, essas questões relativas ao sucesso ou ao fracasso do esperanto pareciam completamente irrelevantes para as 17 pessoas reunidas para o debate semanal na sede da associação SAT-Amikaro, em Paris. Tendo a cada semana um tema diferente, o debate daquela noite seria sobre “trabalho: ter um emprego hoje significa o mesmo que há cem anos? Ainda há proletários no mundo a serem unidos? Ainda existe trabalho escravo?”.

À medida que os participantes chegavam, se cumprimentavam e se sentavam nas antigas cadeiras de escritório organizadas ao longo de uma extensa mesa, as conversas foram lentamente transitando de um quebra-gelo sobre a chuva para o tema do debate. Girando timidamente em torno da divisão informal de trabalho na SAT-Amikaro e das atividades que precisavam ser realizadas para manter a associação funcionando, o debate se desenvolveu de uma forma mais abstrata com a participação de Idris, um cientista da computação originário da Tunísia, que argumentou que "nada é trabalho". Na perspectiva dele, trabalhar para uma empresa, ajudar pessoas na rua e realizar tarefas domésticas fazem igualmente parte do nosso cotidiano e devem ser vistas como atividades comuns, não como obrigações - portanto, não como trabalho.

Apesar do tom confiante e entusiasmado de Idris, seu ponto de vista foi radicalmente criticado por Valentin. Tendo crescido na antiga Iugoslávia antes de se mudar para os subúrbios de Paris, Valentin nunca teve acesso ao ensino superior e disse não ter entendido as nuances filosóficas do argumento de Idris. No entanto, sua experiência de muitos anos como trabalhador braçal em cargos precários e sem estabilidade profissional lhe mostrou que o trabalho não poderia ser romantizado daquela maneira. Abanando a mão com um gesto de desagrado, Valentin falou alto, expressando seu descontentamento: “seja realista! Eu não vim aqui para ouvir isso! Se até hoje existe escravidão no mundo, como você pode realmente acreditar que trabalho não é obrigação?”.

Tentando conciliar as duas perspectivas da discussão, Marcel, um contador aposentado, concordou parcialmente com Idris, mas inverteu seu argumento. Para Marcel, o trabalho pode ser - mas não necessariamente é - exaustivo, abusivo e injustamente remunerado. Nesse sentido, todas as atividades que desempenhamos cotidianamente podem ser consideradas trabalho:

Mesmo sendo aposentado, eu sou o tesoureiro da associação atualmente e considero isso um trabalho. Tudo o que a gente faz é trabalho, e isso não significa que trabalhar seja essencialmente bom ou ruim. O trabalho pode ser uma coisa ruim se a gente trabalhar só por dinheiro ou sem ver propósito no que a gente faz, ou ainda se formos explorados por grandes corporações. E são esses os casos que obrigam a gente a se unir e a lutar contra o neoliberalismo e contra as injustiças. Mas o que me conforta é que existem formas alternativas de trabalho atualmente. Existe esse sistema hoje em dia chamado SEL, vocês já ouviram falar dele? Significa système d'echanges locaux6 6 Marcel usou esta expressão em francês. [sistema de trocas locais]. No SEL, o trabalho de cada participante é remunerado com tempo, não com dinheiro. Em vez de usar euros, os minutos são a nossa moeda de troca, e as qualificações das pessoas são reconhecidas não a partir de diplomas, mas das suas habilidades para realizar tarefas e ajudar outras pessoas.

Marcel continuou a explicar como funcionam os sistemas de trocas locais, dizendo que uma pessoa pode pintar uma parede, cortar o cabelo de outra ou ajudar alguém a transportar uma carga pesada durante uma hora e, em troca, ter direito a uma hora de aula de francês ou matemática, por exemplo. Para Marcel, enquanto a sociedade nos convence de que as pessoas sem diplomas são desqualificadas, o SEL evidencia o valor de cada um. Essa explicação fez Valentin sorrir, relembrando a "boa e velha solidariedade" que ele vivenciou durante os tempos do Marechal Tito na Iugoslávia. Idris, que tinha ouvido falar do SEL, mas não sabia sobre o seu funcionamento, fez várias perguntas sobre como o trabalho é combinado e calculado.

O debate que se seguiu girou em torno de como o SEL remunera proporcionalmente o trabalho de todos - como frisou Marcel, “do operário ao médico” -, uma vez que essas iniciativas de base são fundadas em trocas igualitárias do tempo dedicado à realização de cada atividade. Diante do interesse de Pascal (o participante que elogiou Mujica na descrição etnográfica que abriu este artigo), Marcel aproveitou a oportunidade para compartilhar suas experiências como socialista libertário, falando sobre como o SEL constitui a base do funcionamento da comuna na qual ele e sua esposa vivem, onde os moradores cultivam alimentos, cozinham, fazem a manutenção da casa e tomam decisões coletivamente.

Alguns participantes tomavam notas, enquanto outros faziam perguntas e comentários. Enquanto isso, Gilbert e Jeannine, respectivamente um funcionário dos correios e uma dona de casa aposentada, murmuravam com entusiasmo entre si e comigo (que estava sentado ao lado deles na longa mesa) sobre como esses sistemas de trocas poderiam tornar a União Europeia um espaço mais solidário. Defensores ferrenhos do federalismo europeu, Gilbert e Jeannine frequentemente usavam esses debates para pensar sobre integração europeia.

Diferentemente de Gilbert e Jeannine, os outros participantes não se consideravam alinhados ao federalismo: Marcel se orgulhava das suas práticas libertárias, do seu antinacionalismo e da sua participação ativa na Attac - uma associação de ativistas que se opõem à globalização neoliberal e aos seus desdobramentos econômicos e ambientais. Valentin, por sua vez, se identificava como comunista e lembrava com nostalgia do regime vigente na Iugoslávia de Tito mas, desde que o país se dissolveu e ele se mudou para a França, decidiu não se vincular a partidos políticos. Enquanto isso, Pascal, morador do abastado 15 ème arrondissement de Paris, era co-coordenador de um projeto na sua vizinhança que estimulava cidadãos franceses a oferecerem suporte a refugiados na busca por asilo e emprego. Por fim, Idris participava assiduamente de iniciativas a favor de direitos linguísticos e de uma comunicação mais inclusiva. Entre elas, desde que aprendeu esperanto, ele passou a desenvolver um sistema de langue parlé complété (palavra complementada) para a língua, a fim de ajudar dois deficientes auditivos de Paris a se comunicarem melhor em francês e em esperanto.

Tendo começado às 18h30, o debate se estendeu por mais de quatro horas, alternando entre discussões sérias e conversas informais sobre temas cotidianos. No entanto, contrariando o histórico do movimento esperantista e deixando de lado o discurso universalista apresentado nas seções anteriores, nada nesse debate - inteiramente feito em esperanto - foi sobre o esperanto. Apesar de os participantes estarem discutindo ativismo político, eles não estavam discutindo ativismo a favor da língua nem pensando em estratégias para promovê-la: eles estavam simplesmente falando a língua. Se todos os participantes naquela noite falavam francês fluentemente e a maioria era francês, por que não simplesmente debater em francês? Como o paradigma que rotula o esperanto como um projeto universalista explica por que as pessoas vão a uma associação de esperanto para debater sobre trabalho e economia solidária? Por que não discutir o mesmo assunto em outro movimento social ou associação - ou mesmo na comuna de Marcel?

A fala como uma prática política

A SAT (Associação Mundial Apátrida) e a SAT-Amikaro (sucursal francófona da SAT) são associações apartidárias que têm por objetivo encorajar o diálogo entre apoiadores de diversas causas, perspectivas, partidos políticos e movimentos progressistas, usando o esperanto para incluir pessoas de múltiplas origens nacionais e linguísticas nessa convergência de lutas. Por isso, as atividades dessas associações são orientadas para questões e temas que possam atrair participantes com esses perfis e que girem em torno de uma percepção ampla e flexível sobre o que o termo política possa vir a abranger.

Nas terças e quintas-feiras à tarde, durante as aulas de esperanto de nível intermediário na SAT-Amikaro, Dominique (o voluntário responsável por este curso) ensinava gramática, vocabulário e pronúncia e, em seguida, pedia que seus alunos revisassem textos de cerca de uma página, a fim de identificarem erros ortográficos e gramaticais propositalmente adicionados a eles. Tais textos - publicados em revistas e periódicos em esperanto - invariavelmente tratavam do que Dominique chamava de “questões políticas”, o que incluía desigualdade social, racismo, liberdade de expressão e controvérsias religiosas.

Se, a princípio, o esperanto constitui o cerne das atividades da SAT-Amikaro, a língua rapidamente perde centralidade diante do conteúdo das discussões políticas em questão. Entre os sete alunos do curso de Dominique, com preponderância masculina e idades entre 24 e 80 anos, seis se identificavam com o Partido Comunista Francês ou com associações, ONGs e movimentos sociais ligados à luta por justiça social. Enquanto três destes alunos eram oriundos das classes populares e não tinham tido nenhum contato com línguas estrangeiras antes de começarem a estudar esperanto, os demais advinham das classes médias parisienses. Ao trazer artigos sobre tópicos controversos para a sala de aula, Dominique usava o entusiasmo de seus alunos em participar dessas discussões como uma motivação para que eles se aventurassem na prática da língua e, assim, a aprendessem mais rapidamente.

Enquanto os cursos às terças e quintas-feiras eram voltados para iniciantes e intermediários, os debates das sextas-feiras eram abertos a qualquer interessado, embora a maioria dos participantes assíduos fosse fluente ou quase fluente em esperanto. No entanto, tanto as aulas quanto os debates proporcionavam aos participantes espaços seguros para eles aprenderem a língua enquanto aprendiam sobre perspectivas políticas de esquerda.

Tais práticas de debate político e aprendizagem informal estão alinhadas com as estratégias comunicativas de ação direta amplamente empregadas por ativistas que lutam contra a globalização neoliberal, principalmente desde as mobilizações contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle (EUA), em 1999. Enquanto muitos antropólogos (como Graeber 2009GRAEBER, David. 2009. Direct Action: An Ethnography. Oakland e Edinburgh: AK Press., 2010GRAEBER, David. 2010. “The Rebirth of Anarchism in North America, 1957-2007”. Historia Actual Online, 21:123-131. e Maecklebergh 2011MAECKELBERGH, Marianne. 2011. “Doing is Believing: Prefiguration as Strategic Practice in the Alterglobalization Movement”. Social Movement Studies, 10 (1):1-20.) têm explorado as práticas políticas por meio das quais tais mobilizações se opõem às desigualdades e injustiças aprofundadas pela globalização, outros pesquisadores focam suas análises nas estratégias comunicativas que tais ativistas empregam para tornar essas mobilizações mais democráticas. Nesse sentido, ao analisarem o movimento Occupy Slovenia em 2011, Maple Razsa e Andrej Kurnik (2012RAZSA, Maple & KURNIK, Andrej. 2012. “The Occupy Movement in Žižek’s Hometown: Direct Democracy and a Politics of Becoming”. American Ethnologist, 39 (2):238-258.) descrevem etnograficamente os processos de debate e tomada de decisões entre os ativistas que ocupavam uma das praças centrais da capital eslovena. Motivados por uma descrença na política representativa levada a cabo por partidos políticos e eleições, os ativistas do Occupy Slovenia buscavam formas de desconcentrar o poder e dar voz aos presentes na praça pública a partir de uma tática de comunicação inclusiva. Esta ganhava materialidade por meio da formação de workshops descentralizados, os quais funcionavam como espaços para que qualquer pessoa ou grupo marginalizado pudesse se expressar e coordenar sua ação política dentro do escopo do Occupy independente do apoio da maioria.

Teivo Teivainen (2016TEIVAINEN, Teivo. 2016. “Occupy Representation and Democratise Prefiguration: Speaking for Others in Global Justice Movements”. Capital and Class, 40 (1):19-36.) também contribui para essa discussão ao examinar práticas de ativistas que se opõem à forma como políticos representam seus eleitores e “falam por eles”. Analisando etnograficamente os Fóruns Sociais Mundiais e o Occupy Wall Street, Teivainen mostra como a rejeição à democracia representativa também se manifesta nas assembleias gerais de tais mobilizações. Essas assembleias se afirmam como órgãos decisórios: sem terem uma liderança definida e sem representarem a voz de nenhum coletivo específico, essas mobilizações abrem espaço para que qualquer interessado fale ao microfone em meio a uma assembleia de pessoas abertas ao intercâmbio de ideias. À medida que mais ativistas trazem mais ideias - de críticas ao neoliberalismo e propostas ambientalistas à narração de experiências profícuas de outros movimentos sociais - a praça pública se afirma como um espaço de aprendizagem dialógica, por meio do qual indivíduos extraem ideias e práticas a serem compartilhadas e prefiguradas para além daquele espaço.

Na SAT-Amikaro, ao afirmarem a sede da associação como um laboratório para a troca e a experimentação de ideias, os participantes dos debates usam a língua como um ponto de partida comum para criar um espaço de colaboração sem que compartilhem necessariamente as mesmas perspectivas sobre os temas tratados. O uso dessa língua em particular define o frame (Bateson 1972BATESON, Gregory. 1972. Steps to an Ecology of Mind: Collected Essays in Anthropology, Psychiatry, Evolution and Epistemology. New York: Ballantine Books.:177-193) do debate, no qual hierarquias são temporariamente suspensas e dão lugar à valorização da diversidade, de modo a incluir portadores de títulos de doutorado e trabalhadores braçais, socialistas libertários e federalistas, franceses e imigrantes ilegais, fluentes e não tão fluentes em esperanto. Esse frame estimula um processo colaborativo de aprendizagem, no qual se busca que cada um participe não como se estivesse confinado à sua posicionalidade ou como representante das agendas políticas que defende, mas enquanto indivíduo que pensa autonomamente a partir de suas experiências e formas leigas de conhecimento prévio.

Um debate semelhante em um partido político ou sindicato estaria sujeito ao reconhecimento de determinada agenda, a ser respeitada por todos aqueles envolvidos na discussão. Em um espaço acadêmico, por sua vez, tal debate deveria necessariamente vir acompanhado de sofisticadas referências a Marx, Foucault ou Deleuze. Recorrendo a meios de comunicação de massa, como a televisão ou o rádio, essas mesmas pessoas consumiriam informação, sem seres ouvidas, em um processo de aprendizagem de mão única. Nas redes sociais, tal debate rapidamente se converteria em um espaço para intolerâncias e discursos de ódio. Em contrapartida, o que esta etnografia e as entrevistas com Marcel, Jeannine e Idris revelam é que falar esperanto e frequentar a babilrondo foi a maneira que essas pessoas encontraram de substituir parcialmente a forma hegemônica capitalista do consumo de conhecimento pela forma não hegemônica da troca - do diálogo que permite que todos se expressem e aprendam em um processo dialógico de coprodução de conhecimento.

De maneiras análogas àquelas empregadas pelas mobilizações contra a globalização neoliberal, os falantes de esperanto incorporam mídias em suas práticas de uma forma crítica, questionando a capacidade dos jornalistas de “falar por eles”. Ao trazerem artigos de jornais e revistas, trechos de reportagens de televisão e vídeos do YouTube para o debate, os frequentadores das babilrondoj acumulam diversas fontes de informações. Dessa maneira, eles somam as notícias e os conhecimentos que adquirem em esperanto a outros aos quais eles têm acesso regularmente por meio de outras línguas - como é o caso de Idris, que diariamente se atualiza por meio de jornais, blogs e postagens em redes sociais em francês, árabe, inglês e esperanto. Recorrendo à terminologia de Deleuze e Guattari (1987DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. 1987. A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia. Minneapolis: University of Minnesota Press.), as trocas comunicativas mediadas pelo esperanto facilitam a proliferação de possibilidades e multiplicidades: ao adicionar uma camada de comunicação ad hoc, direta e afetiva aos relatos mais impessoais obtidos pela mediação de jornalistas, essa língua permite, por exemplo, que essas pessoas aprendam sobre política latino-americana e sobre a participação de Mujica na conferência RIO+20, ou ainda discutam sobre trabalho e economia solidária, em reflexões às quais talvez não tivessem acesso se não fosse por esse frame.

Em última análise, no bojo de mobilizações como Nuit debout (que teve seu auge em Paris em 2016) e Gilet jaunes (que ganhou força a partir de 2018) - movimentos nos quais membros da SAT-Amikaro participaram maciçamente -, falantes de esperanto tomam essa língua não nacional como um ponto de partida para resistir ao consenso pós-político (Mouffe 1993MOUFFE, Chantal. 1993. The Return of the Political. London e New York: Verso.) sobre o uso de línguas nacionais para a comunicação internacional. Tanto na Nuit debout quanto com os Gilets jaunes, os debates organizados e os cartazes confeccionados pelos ativistas costumam ser feitos em francês ou inglês, o que faz com que aqueles que não são fluentes nessas línguas - ou que possuem alguma deficiência comunicativa, auditiva ou de fala - acabem excluídos da discussão e da ação política. Ao trazerem o esperanto para o debate, membros da SAT-Amikaro convidam grupos mais amplos de ativistas a repensarem a forma como o uso de uma determinada língua tanto permite diálogos quanto marginaliza certos grupos. Enfatizando como essas marginalizações são paradoxais em mobilizações organizadas em torno da igualdade e da inclusão, o esperanto se apresenta não como “a solução” para os problemas de comunicação internacional, mas como um elemento desencadeador de reflexões sobre como a justiça social também depende da justiça linguística (Van Parijs 2011VAN PARIJS, Philippe. 2011. Linguistic Justice for Europe and for the World. Oxford: Oxford University Press .).

Assim, a contribuição específica do esperanto para a coprodução de conhecimento e a aprendizagem horizontal reside em sua ideologia linguística, a qual fomenta o uso mais igualitário, inclusivo e colaborativo de línguas e meios de comunicação. No caso de Idris, participar dos debates na SAT-Amikaro por mais de cinco anos atraiu a sua atenção para os direitos linguísticos de pessoas com deficiências, o que o levou a estudar a língua de sinais francesa e a buscar tornar o esperanto mais acessível para deficientes auditivos. Enquanto isso, o contato de Pascal com o esperanto o incentivou a dar atenção às línguas minoritárias faladas por muitos dos refugiados que ele apoia, à medida que estes se sentem isolados por não conseguirem desenvolver relações sociais significativas em francês durante seus primeiros meses na França.

Por isso, o esperanto é a língua usada em todas as atividades na SAT-Amikaro mesmo quando seus participantes também sabem falar francês. Como nem todos são falantes nativos de francês - o que, no debate apresentado acima, incluiu Valentin, Idris e eu -, discutir em esperanto os aproxima do que seria um diálogo igualitário e inclusivo. Como o esperanto não é a primeira língua de ninguém (Miner 2011MINER, Ken. 2011. “The Impossibility of an Esperanto Linguistics”. Inkoj, Interlingvistikaj Kajeroj, 2 (1):26-51.), falá-lo exige que todos passem formalmente por um processo equiparável de aprendizagem. Nesse sentido, a ausência de pessoas que o tenham como primeira língua desafia a hierarquia que situa o falante nativo como a autoridade central em questões linguísticas (Chomsky 2006CHOMSKY, Noam. 2006. Language and Mind. Cambridge: Cambridge University Press.; Fiedler 2012FIEDLER, Sabine. 2012. “The Esperanto Denaskulo: The Status of the Native Speaker of Esperanto Within and Beyond the Planned Language Community”. Language Problems and Language Planning, 36 (1):69-84.). Isto, por sua vez, ajuda a horizontalizar os frames estabelecidos pelo esperanto e a tornar tais espaços mais acolhedores também para aqueles que não se sentem confiantes em relação à sua proficiência na língua.

Curiosamente, a língua discursificada como "universal" parece atingir o ápice de sua relevância política em espaços numericamente limitados, como a sede de uma associação no 13 ème arrondissement de Paris.

Jamais fomos universais

Se o esperanto parece ganhar expressão na criação de espaços inclusivos de aprendizagem horizontal, como esse uso pode fazê-lo avançar como uma língua universal? Evidenciando a dissonância entre, por um lado, a discursificação do esperanto enquanto projeto universalista e, por outro, o uso regular da língua, proponho o conceito de prefiguração para examinar o que falar em esperanto de fato quer dizer.

O conceito de prefiguração foi originalmente usado por Carl Boggs (1977BOGGS, Charles. 1977. “Marxism, Prefigurative Communism and the Problem of Workers’ Control”. Radical America, 6:99-122.) para descrever as lógicas e as práticas políticas das esquerdas não alinhadas ao leninismo e ao trotskismo. As formas leninistas e trotskistas de marxismo estatal, de acordo com Boggs, instituíam a revolução como a finalidade última de determinado movimento social, sendo alcançada apenas por meio de uma mobilização de ativistas baseada em uma organização hierarquizada. Desde a formulação original do conceito, prefiguração - e seus análogos, políticas ou práticas prefigurativas - tem sido amplamente usada por ativistas, filósofos e sociólogos estudando movimentos sociais para rotular coletivos e práticas políticas orientadas ao momento presente. Dessa maneira, ativistas inspirados pela prefiguração tomam a prática do ativismo como uma finalidade em si, e não como um meio para se alcançar futuramente outra finalidade superior ou externa à prática em questão.

Marianne Maeckelbergh (2009MAECKELBERGH, Marianne. 2009. The Will of the Many: How the Alterglobalisation Movement is Changing the Face of Democracy. London e New York: Pluto Press., 2011MAECKELBERGH, Marianne. 2011. “Doing is Believing: Prefiguration as Strategic Practice in the Alterglobalization Movement”. Social Movement Studies, 10 (1):1-20.) explica que prefiguração se refere primordialmente a tentativas de construir, no presente, relações sociais alternativas. Maeckelbergh participou como ativista e etnógrafa em diversas mobilizações contra a globalização neoliberal nos anos 2000, principalmente na Europa, como protestos e acampamentos que se opunham às reuniões de cúpula do G8 e da OTAN. Por meio de sua observação participante, ela acompanhou como essas mobilizações reúnem de ativistas anticapitalismo e a favor de direitos trabalhistas a veganos e defensores dos direitos dos animais. A partir disso, Maeckelbergh nos fornece elementos para repensar alguns dos contrastes centrais entre as chamadas novas esquerdas e aquelas que, por oposição, passam a ser rotuladas velhas esquerdas. As últimas consistem em movimentos sociais organizados, partidos políticos de esquerda e sindicatos, os quais congregam ativistas em torno de um mesmo aspecto identitário ou causa política - como a causa operária, questões trabalhistas ou problemas sociais estruturais (Calhoun 1993CALHOUN, Craig. 1993. “’New Social Movements’ of the Early Nineteenth Century”. Social Science History, 17 (3):385-427.; Maeckelbergh 2009MAECKELBERGH, Marianne. 2009. The Will of the Many: How the Alterglobalisation Movement is Changing the Face of Democracy. London e New York: Pluto Press.:93).7 7 Para uma abordagem etnográfica sobre novas e velhas esquerdas no movimento estudantil estadunidense nos anos 1960, ver também Polletta (2002: capítulo 5). Dessa maneira - como no caso dos movimentos operários ao redor do mundo ou no caso paradigmático da Revolução Russa de 1917 -, ativistas trabalham por objetivos claros, têm agendas sólidas e visam à universalização de suas causas e reformas macropolíticas.

Por outro lado, a chamada new left e suas mobilizações inspiradas na prefiguração reúnem organizações religiosas, ambientalistas, defensores da igualdade de gênero, membros do movimento negro, estudantes e ativistas esquerdistas que não necessariamente lutam pelas mesmas agendas. Apesar de não terem um objetivo comum, tais ativistas compartilham de uma insatisfação generalizada com a globalização neoliberal, manifestando suas demandas não em uma revolução macropolítica, mas em uma convergência de lutas que ganha materialidade em práticas mundanas. Em sintonia com isso, esses ativistas tendem a deixar deliberadamente a definição de política em aberto. Ao não definirem política de forma unívoca, eles fazem com que qualquer prática venha a ser potencialmente política (ou politizada), por meio de formas de ativismo que se abstém de institucionalizar ou territorializar causas específicas (Fians 2022FIANS, Guilherme. 2022. “Prefigurative Politics”. Cambridge Encyclopedia of Anthropology, 1:1-18. ).

Enquanto movimentos trabalhistas e sindicais se endereçam a empresários e governos com reivindicações de reforma ou revolução, os movimentos baseados na prefiguração desenvolvem uma estratégia de “faça você mesmo”. Diante de agendas tão díspares, eles se utilizam da diversidade dos manifestantes para criar arenas - dos debates em espaços públicos durante o Occupy Wall Street à criação de ecovilas e sociedades alternativas (Casey et al. 2020CASEY, Katherine; LICHROU, Maria & O’MALLEY, Lisa. 2020. “Prefiguring Sustainable Living: An Ecovillage Story”. Journal of Marketing Management, 36 (17-18):1658-1679.) - nas quais ativistas trocam experiências, aprendem uns com os outros e recriam constantemente suas práticas cotidianas. Isto inclui, por exemplo, workshops nos quais feministas orientam anarquistas a defenderem seus pontos de vista usando linguagem neutra e nos quais operários aconselham ambientalistas de classe média sobre como falar sobre vegetarianismo de uma maneira mais didática e atraente às classes trabalhadoras.

Nesse sentido, Luke Yates (2015)YATES, Luke. 2015. “Rethinking Prefiguration: Alternatives, Micropolitics and Goals in Social Movements”. Social Movement Studies, 14 (1):1-21. identifica como esses experimentos coletivos baseados em práticas prefigurativas envolvem democracia de base, ação direta e a criação de relações micropolíticas de poder alternativas. Ao montar barracas em uma praça pública ocupada, servir comida aos participantes, protegê-los da ação da polícia, organizar discussões e manter o local limpo, as práticas prefigurativas permitem a construção de relações sociais e de poder autônomas no nível local, agindo no presente, sem depender de uma conquista macropolítica orientada ao futuro - como uma revolução ou a universalização de uma causa.

Na antropologia, o debate sobre prefiguração ganhou visibilidade por meio do trabalho de David Graeber. Acompanhando e participando ativamente de mobilizações (principalmente nos EUA) contra reuniões de cúpula da Organização Mundial do Comércio, do G8, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, Graeber (2002GRAEBER, David. 2002. “The New Anarchists”. New Left Review, 13:61-73., 2009GRAEBER, David. 2009. Direct Action: An Ethnography. Oakland e Edinburgh: AK Press.:xvii) afirma que as revoluções ao longo do século XXI serão cada vez mais influenciadas por imperativos e práticas advindos do anarquismo. O que Graeber apresenta como “anarquismo” toma a prefiguração por base, como uma estratégia que pre-figura nos acampamentos à la Occupy Wall Street uma amostra mundana de como a transformação social e a democracia podem se materializar como formas alternativas de se reconstruir o mundo e a sociedade.

Em anos recentes, principalmente a partir da influência de Graeber, o conceito de prefiguração tem sido usado para categorizar movimentos sociais organizados em torno de redes autônomas e horizontais de ativistas, sem uma liderança formal, que giram em torno de agendas amplas e que tomam a experimentação social como prática central. É nesse sentido que o foco em práticas prefigurativas tem servido de base para a análise de mobilizações como Occupy (Graeber 2009GRAEBER, David. 2009. Direct Action: An Ethnography. Oakland e Edinburgh: AK Press.; Razsa & Kurnik 2012RAZSA, Maple & KURNIK, Andrej. 2012. “The Occupy Movement in Žižek’s Hometown: Direct Democracy and a Politics of Becoming”. American Ethnologist, 39 (2):238-258.; Murray 2014MURRAY, Daniel. 2014. “Prefiguration or Actualization? Radical Democracy and Counter-Institution in the Occupy Movement”. Berkeley Journal of Sociology, 58:1-12.; Teivainen 2016TEIVAINEN, Teivo. 2016. “Occupy Representation and Democratise Prefiguration: Speaking for Others in Global Justice Movements”. Capital and Class, 40 (1):19-36.), movimentos feministas e estudantis nos EUA (Polletta 2002POLLETTA, Francesca. 2002. Freedom is an Endless Meeting: Democracy in American Social Movements. Chicago: Chicago University Press.), Nuit debout na França (Kokoreff 2016KOKOREFF, Michel. 2016. Nuit debout sur place. Petite ethnographie micropolitique. Les Temps Modernes, 691 (5):157-176.), 15M na Espanha (Flesher Fominaya 2020FLESHER FOMINAYA, Cristina. 2020. Democracy Reloaded: Inside Spain's Political Laboratory from 15-M to Podemos. Oxford: Oxford University Press.), e ainda as práticas de consumo consciente e as experimentações sustentáveis de ecovilas (Casey et al. 2020CASEY, Katherine; LICHROU, Maria & O’MALLEY, Lisa. 2020. “Prefiguring Sustainable Living: An Ecovillage Story”. Journal of Marketing Management, 36 (17-18):1658-1679.). No Brasil, alguns dos usos notáveis desse conceito ainda pouco explorado no país estão registrados na pesquisa recente de Íris Nery do Carmo (2019CARMO, Íris Nery do. 2019. “O Rolê Feminista: Autonomia e Política Prefigurativa no Campo Feminista Contemporâneo”. Cadernos Pagu, 57:1-42.) sobre a valorização da horizontalidade e da autonomia entre jovens feministas e no trabalho de Pablo Ortellado (2013ORTELLADO, Pablo. 2013. “Os Protestos de Junho entre o Processo e o Resultado”. In: E. Judensnaider, L. Lima, M. Pomar & P. Ortellado, Vinte Centavos: A Luta contra o Aumento. São Paulo: Veneta. pp. 227-237.) - o qual critica o caráter prefigurativo das Jornadas de Junho de 2013, argumentando que o foco dos ativistas no processo presente acabou por minar a luta pelas finalidades das manifestações.

No entanto, ao usar o termo prefiguração para salientar a originalidade e a singularidade das mobilizações da new left, tais autores acabam por consolidar o uso de prefiguração como uma categoria classificatória. Assim, este termo passou a ser amplamente usado para estabelecer uma contraposição drástica entre as novas e as velhas esquerdas, tornando-se um rótulo que define quais movimentos são prefigurativos e quais não são. Dessa maneira, esse conceito passa a alimentar um grande divisor que faz desaparecer as convergências entre as novas esquerdas e as demais formas de ativismo político, culminando, dessa maneira, em um uso analítico de prefiguração que limita fatalmente a riqueza e a potencialidade do termo. Ao serem descritas e adentrarem o debate acadêmico, as práticas prefigurativas (que se pretendem inclusivas e diversas) acabam por assumir espaços delimitados que excluem outras práticas (não prefigurativas) de ativismo.

Apesar de diversos pesquisadores terem usado esse conceito como uma categoria classificatória, os próprios escritos de Graeber parecem apontar para a direção oposta. Analisando a crescente adoção de práticas prefigurativas e anarquistas por uma ampla gama de ativistas, Graeber (2002GRAEBER, David. 2002. “The New Anarchists”. New Left Review, 13:61-73.:72, 2010GRAEBER, David. 2010. “The Rebirth of Anarchism in North America, 1957-2007”. Historia Actual Online, 21:123-131.) delineia o que ele chama de “anarquistas com A maiúsculo” e “anarquistas com a minúsculo” (capital-A e small-a anarchists). Enquanto os primeiros tendem a atuar dentro de grupos anarquistas, os últimos mobilizam práticas caracteristicamente anarquistas apesar de não se conceberem enquanto anarquistas - ou mesmo enquanto ativistas. Se tais práticas não se limitam a anarquistas, por que, ao invés de concebermos prefiguração como uma categoria classificatória, não a usamos como uma perspectiva para ressaltar a diversidade e a horizontalidade inerentes a diversas práticas e movimentos que não são necessariamente classificados como prefigurativos?

De volta aos debates em esperanto na França, os participantes da discussão usam o esperanto como ponto de partida para questionar certos aspectos - no caso, aspectos linguísticos, comunicativos, educacionais e, portanto, de diversas maneiras, políticos - da organização social. As práticas alternativas com as quais eles experimentam via esperanto ao discutirem política latino-americana e economia solidária não envolvem ocupar praças públicas nem propor uma divisão do trabalho radicalmente nova. Como a SAT e a SAT-Amikaro são associações de cunho educacional, suas ações políticas não culminam em protestos ou manifestações. No entanto, os falantes de esperanto baseiam suas práticas na aprendizagem horizontal como forma de criar ambientes nos quais todos possam participar da conversa em relativa igualdade de condições, independentemente de origem nacional, conhecimentos sobre um determinado tema, nível educacional, classe social, língua materna, deficiência comunicativa e postura política. Por não ser a primeira língua de ninguém, o esperanto desempenha o papel de criar um espaço que não pertence a ninguém e que, portanto, pode ser ocupado por qualquer pessoa - desde que todos os interessados ​​passem pelo processo de aprendizagem da língua.8 8 Certamente, esse processo não é o mesmo para todos. Uma vez que o esperanto está enraizado em línguas europeias, falantes nativos de certas línguas tendem a ter mais facilidade de aprendê-lo. No entanto, o que importa nesse sentido é que a necessidade de se aprender (em vez de adquirir) a língua torna todos os seus falantes cientes dos obstáculos que devem ser enfrentados para se comunicarem. Assim, ao fazer política - amplamente definida - à medida que aprendem uns com os outros sobre política, falantes de esperanto não estão fazendo reivindicações voltadas para o futuro ou lutando pelo uso do esperanto como língua franca global. Em vez disso, estão prefigurando formas mundanas de comunicação alternativa em pequena escala.

Embora a SAT-Amikaro não seja representativa do movimento esperantista mais amplo, seu grupo de debates analisado nesta etnografia não é o único espaço no qual o esperanto ganha expressão em consonância com práticas prefigurativas. Como analiso em outra publicação (Fians 2021FIANS, Guilherme. 2021. Esperanto Revolutionaries and Geeks: Language Politics, Digital Media and the Making of an International Community. Cham: Palgrave Macmillan.), o movimento esperantista tem se consolidado recentemente em espaços on-line, se tornando particularmente popular entre jovens poliglotas e geeks apaixonados por tecnologias digitais. Entre estes grupos, o esperanto é frequentemente interpretado a partir da perspectiva dos movimentos de software livre (Coleman 2013COLEMAN, E. Gabriella. 2013. Coding Freedom: The Ethics and Aesthetics of Hacking. Princeton: Princeton University Press.). Como a ideologia linguística do esperanto e a ausência de uma autoridade linguística rígida permitem que seus falantes contribuam continuamente para o desenvolvimento e a atualização da língua (principalmente em termos de vocabulário), muitos ativistas percebem o esperanto como uma língua humana de código aberto, vinculando-o à liberdade de código reivindicada pelo ativismo on-line de geeks e hackers.

Estes argumentos podem levar o leitor a crer que, ao longo de seus 135 anos, o esperanto progressivamente renunciou a seus objetivos universalistas de desempenhar um papel crucial na comunicação internacional e na promoção da paz. No entanto, análises historiográficas e sociológicas de aspectos relativamente negligenciados na história mais difundida do esperanto atestam que práticas prefigurativas estiveram presentes desde os primórdios desta língua. Peter Forster (1982FORSTER, Peter. 1982. The Esperanto Movement: Contributions to the Sociology of Language. The Hague: Mouton.:159) e Ulrich Lins (2016LINS, Ulrich. 2016. Dangerous Language: Esperanto under Hitler and Stalin. London: Palgrave Macmillan.:49) nos lembram que, durante a Primeira Guerra Mundial, associações de esperanto na Suíça aproveitaram a neutralidade do país para triangular correspondências trocadas entre países rivais. Quem não pudesse se comunicar diretamente devido à censura ou aos bloqueios entre países inimigos poderia enviar suas cartas em qualquer idioma para associações de esperanto sediadas na Suíça, que as encaminhariam ao destinatário final e as traduziriam para outro idioma, se necessário. Anne-Sophie Markov (1999)MARKOV, Anne Sophie. 1999. Le Mouvement International Des Travailleurs Espėrantistes 1918-1939. Dissertação de Mestrado em História, Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines, França., por sua vez, descreve como membros de sindicatos e outras instâncias do movimento operário usaram o esperanto durante o período das guerras mundiais para construir redes internacionais de proletários que trocavam informações sobre condições de trabalho e que se recusavam a lutar uma guerra que não dizia respeito às suas demandas. Apesar de serem comumente classificados entre os movimentos sociais da “velha esquerda”, que lutavam pela universalização da língua e pela luta de classes internacional (respectivamente), os movimentos esperantista e operário também abriam espaços menos institucionalizados para iniciativas individuais, horizontais e experimentais. Estas não visavam necessariamente à concretização de ambiciosas revoluções linguísticas e políticas. No entanto, possibilitavam amostras concretas, em pequena escala, de como a comunicação horizontal e inclusiva poderia se realizar na prática mundana, por meio da troca de correspondências e da criação de redes progressistas transnacionais.

Além disso, nos congressos de esperanto realizados anualmente, não era difícil encontrar pessoas que narravam com entusiasmo sobre como escaparam de regimes totalitários após terem pedido vistos especiais para participar de encontros internacionais de esperanto. Muitos destes permaneceram no exterior ilegalmente e encontraram abrigo com outros falantes da língua. Uma destas narrativas se refere a George Soros, o qual, juntamente com sua família, aproveitou a ocasião do Congresso Universal de Esperanto de 1947, na Suíça, para escapar da perseguição aos judeus na Hungria (Tonkin 1999TONKIN, Humphrey. 1999. “Antaŭparolo”. In: T. Schwartz, Modernaj Robinzonoj en la Siberia Praarbaro. Berkeley: Eldonejo Bero. pp. i-ix.:ix; Okrent 2009OKRENT, Arika. 2009. In the Land of Invented Languages: Esperanto Rock Stars, Klingon Poets, Loglan Lovers, and the Mad Dreamers Who Tried to Build a Perfect Language. New York: Spiegel & Grau.:113).

Bruno Latour (1994)LATOUR, Bruno. 1994 [1991]. Jamais Fomos Modernos. Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34. argumenta que jamais fomos modernos, afirmando que a separação entre natureza e sociedade elencada como principal elemento caracterizador da modernidade nunca ocorreu de fato. Isto não significa que devamos negligenciar a constituição moderna, mas sim que a modernidade deve ser analisada como um discurso que esconde as maneiras pelas quais a natureza e a sociedade são mutuamente constitutivas. Por meio de um argumento distinto, mas chegando a uma conclusão não tão diferente, o esperanto nunca foi primária e unicamente universalista - nem universal. Concentrar-nos nos discursos universalistas originalmente associados a esta língua nos faz negligenciar as formas como seus falantes e apoiadores dão sentido a ela por meio de práticas cotidianas orientadas ao momento presente. De facilitar a comunicação internacional por correspondência durante a guerra a promover espaços horizontais de coprodução de conhecimento político, as práticas dos falantes de esperanto têm historicamente combinado elementos prefigurativos e universalistas, com os primeiros sendo responsáveis por tornar a língua efetivamente operacional, independentemente de seu uso global.

Considerações finais

Quantas pessoas falam esperanto no mundo? Com a popularização de tecnologias digitais e de cursos de línguas on-line, o esperanto se tornou mais ou menos difundido do que, digamos, há trinta anos? Estas são questões que interessam a associações de esperanto, organizadores de congressos e editoras, que dependem de taxas de adesão, frequência e compras para justificar a continuação de suas atividades. No entanto, estas não estão entre as preocupações de Pascal, Jeannine, Idris ou Marcel: para o que eles fazem com o esperanto, uma participação numerosa no grupo de debates não é tão importante quanto a qualidade de suas discussões e a importância do que eles aprendem.

Abordar o movimento esperantista a partir do paradigma universalista tem levado historiadores e cientistas sociais a pensar esta língua como um projeto quixotesco que falhou em atingir seus objetivos. No entanto, um olhar mais atento às práticas cotidianas levadas a cabo por meio do uso da língua revela um cenário diferente, no qual este movimento se coloca para além da dicotomia fracasso versus sucesso e ganha relevância - uma relevância muito mais modesta, no caso - em espaços micropolíticos mundanos. Nestes, o esperanto desponta como uma ferramenta que (re)politiza o papel desempenhado pelas línguas, por meio de uma ideologia linguística que convida seus falantes a tornar a comunicação internacional mais inclusiva e colaborativa. Portanto, ao analisar o esperanto por meio de um foco nas práticas prefigurativas que o configuram rotineiramente, este artigo argumenta que, mais do que uma causa político-linguística, o esperanto ganha contornos de uma língua como qualquer outra, falada ordinariamente e responsável por mediar trocas entre membros de sua comunidade de fala.

A partir dessa etnografia, este artigo argumentou que considerar universalismo e prefiguração não como categorias classificatórias, mas como perspectivas analíticas nos permite estar mais abertos a reconhecer os entrelaçamentos entre práticas que estão presentes não só nas novas esquerdas (new left), mas também nas mobilizações dos partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais verticalizados associados às velhas esquerdas. Em última análise, em diferentes medidas, tanto as novas quanto as velhas esquerdas investem nas finalidades de suas práticas políticas assim como no processo por meio do qual estas se desenvolvem. Assim, insistir no uso do termo prefiguração como um atalho para tipificar movimentos sociais não só é etnograficamente contraprodutivo, como também implica negligenciar as convergências e as coalizações que novas e velhas esquerdas muitas vezes buscam construir para enriquecer seus diálogos e suas lutas coletivas.

Ao sugerir uma nova maneira de analisar o movimento esperantista, busquei mostrar que, no uso efetivo desta língua, o que importa não é substituir o inglês ou conquistar o mundo, mas deixar o diálogo fluir. Nesses moldes, partir desta perspectiva analítica para o estudo de outros movimentos - pacifistas, feministas, ambientalistas, antifascistas, trabalhistas, contra a globalização neoliberal, a favor da diversidade sexual, entre outros - serve como um convite para considerarmos que talvez a relevância desses movimentos esteja justamente na forma como esses movimentos movem seus ativistas enquanto se dirigem a uma suposta revolução ou à universalização de suas causas. Tais finalidades últimas, por fim, parecem de importância secundária diante de tudo que o processo por si mesmo é capaz de produzir, ensinar e prefigurar.

Agradecimentos

O autor agradece ao Institute for Transnational and Spatial History da University of St Andrews e ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Piauí, onde teve a oportunidade de apresentar, discutir e aprimorar alguns aspectos desta pesquisa. O autor agradece ainda a Pedro Silva Rocha Lima e a Diego Valdivieso Sierpe, assim como aos pareceristas anônimos, pelos comentários feitos a versões anteriores deste manuscrito.

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  • 1
    Todos os nomes são pseudônimos, para preservar a identidade de meus interlocutores.
  • 2
    Salvo indicação em contrário, todas as citações referem-se a falas originalmente em esperanto, traduzidas por mim para o português.
  • 3
    Minha inserção na SAT-Amikaro - assim como em outras associações de esperanto e coletivos progressistas em Paris - se deu como parte do meu trabalho de campo sobre pluralidade linguística e ativismo político na França. A pedido dos meus interlocutores, a língua que mais usei em entrevistas e ao longo da observação participante foi o esperanto, apesar de eu também ser fluente em francês.
  • 4
    Pacifistas inspirados pelas perspectivas filosóficas do romancista russo Lev Tolstoy.
  • 5
    Isso se torna ainda mais evidente quando pensamos no caso de apátridas e refugiados, aos quais o estatuto de seres humanos é frequentemente negado por eles não serem possuidores de uma nacionalidade ou passaporte (Jansen 2009JANSEN, Stef. 2009. “After the Red Passport: Towards an Anthropology of the Everyday Geopolitics of Entrapment in the EU’s ‘Immediate Outside’”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 15:815-832.).
  • 6
    Marcel usou esta expressão em francês.
  • 7
    Para uma abordagem etnográfica sobre novas e velhas esquerdas no movimento estudantil estadunidense nos anos 1960, ver também Polletta (2002POLLETTA, Francesca. 2002. Freedom is an Endless Meeting: Democracy in American Social Movements. Chicago: Chicago University Press.: capítulo 5).
  • 8
    Certamente, esse processo não é o mesmo para todos. Uma vez que o esperanto está enraizado em línguas europeias, falantes nativos de certas línguas tendem a ter mais facilidade de aprendê-lo. No entanto, o que importa nesse sentido é que a necessidade de se aprender (em vez de adquirir) a língua torna todos os seus falantes cientes dos obstáculos que devem ser enfrentados para se comunicarem.
  • Financiamento

    O autor agradece o apoio financeiro do Leverhulme Trust (RPG-2021-215).

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2021
  • Aceito
    04 Jan 2023
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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