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“A gente medica de acordo com a família”: a geriatria cuidando das demências

“We medicate according to the family”: geriatrics caring for dementia

"Nosotros medicamos según la familia": geriatría a cargo de la demencia

Resumo

A família e as relações familiares são um objeto de intervenção da geriatria quando a especialidade diagnostica e cuida das demências. Por meio de uma etnografia das práticas médicas, observo como as categorias “insuficiência familiar” e “sobrecarga da cuidadora” são diagnosticadas como parte do “conjunto” no qual se irá intervir. Tais diagnósticos orientam e movimentam as decisões terapêuticas de modo bastante amplo, modificando as escolhas sobre quais medicamentos utilizar e em qual quantidade. Famílias com tais diagnósticos podem experimentar maiores dosagens, o que as afasta do ideal de cuidado pretendido. Observo, ainda, o histórico do manejo dessa categoria por uma área que se pretende “biopsicossocial”.

Palavras-chave:
Geriatria; Demências; Família; Medicamentos

Abstract

The family and its relationships are objects of intervention for geriatrics when this medical specialty diagnoses and proceeds to care of dementia. Through an ethnography of medical practices, I observe how the categories of "family insufficiency" and "caregiver burden" are diagnosed as part of the "set" in which geriatrics seeks to intervene. Such diagnoses guide therapeutic decisions in a broad way, changing choices about which drugs to prescribe and in what quantity. Families subject to these diagnoses can receive higher dosages, an experience which may prevent those families from receiving what is understood to be ideal care. I also observe the history of handling this category by a scientific area that is intended to be “biopsychosocial”.

Keywords:
Geriatrics; Dementias; Family; Drugs

Resumen

La familia y las relaciones familiares son objeto de intervención de la geriatría cuando la especialidad diagnostica y atiende las demencias. A través de una etnografía de las prácticas médicas, observo cómo las categorías “insuficiencia familiar” y “sobrecarga del cuidador” son diagnosticadas como parte del “conjunto” en el que se intervendrá. Dichos diagnósticos orientan e influyen en las decisiones terapéuticas de manera muy amplia, modificando las elecciones sobre qué fármacos utilizar y en qué cantidad. Las familias con tales diagnósticos pueden experimentar dosis más altas, lo que los aleja del ideal de atención previsto. También observo la historia del manejo de esta categoría por un área que pretende ser “biopsicosocial”.

Palabras clave:
geriatría; demencias; familia; drogas

Introdução

Quando abri prontuários médicos, descobri um universo. Longas descrições sobre biografias, relações familiares, testes de memória, medicamentos e resultados de exames.1 1 Mol (2002) tem proposto os prontuários como elementos ricos para a etnografia, segui o conselho de utilizá-los assim. Letras, estilos de escrita e narrativa variados - uns mais detalhados, outros concisos. Cada consulta composta de um “questionário” preenchido, contendo informações abertas e fechadas. Ao final de cada questionário, um resumo: as “hipóteses diagnósticas”. Ali, apenas palavras-diagnósticos-suspeitas. Com alguma surpresa, li diagnósticos de “Doença de Alzheimer”, “osteoporose”, “pressão alta” ao lado de outros dois: “sobrecarga da cuidadora” e “insuficiência familiar’.

Estes últimos termos me eram conhecidos, eu os aprendi enquanto categorias para a geriatria em uma pesquisa sobre demências e modos de defini-las e cuidar delas. Trata-se de uma etnografia realizada em duas etapas. Por nove meses (entre 2016 e 2017), estive em um Centro multidisciplinar geriátrico de um hospital universitário especializado nas demências no Distrito Federal: presenciei consultas, reuniões de equipe, conversas de corredor, formação e acompanhamento de casos, fiz entrevistas, selecionei e li em sua inteireza dez prontuários. Em um segundo momento, dentre esses dez casos, aproximei-me por nove meses (durante 2018) de três famílias moradoras de diferentes regiões do Distrito Federal e entorno e passei a acompanhar e a participar de suas rotinas cotidianas, tanto em casa como na lida com médicos e instituições de saúde.

A surpresa foi observar as categorias “sobrecarga da cuidadora” e “insuficiência familiar” formalizadas internamente como diagnósticos. Logo muitas situações que vinha experimentando em campo fizeram sentido, desde a dinâmica das consultas até as decisões por utilizar um ou outro medicamento e em qual dosagem. Os geriatras e os profissionais de saúde do centro costumavam me dizer que diagnosticavam e tratavam do “conjunto”, ou seja, olhavam para todas as doenças, medicamentos, condições sociais e experiência relacional familiar para decidir o que fazer. Isso porque sua área, diferente do restante da medicina, tinha uma perspectiva holística. Assim, ao tratarem das demências, as relacionavam ao contexto como um todo: ao contexto “biopsicossocial”. Cada caso precisava ser observado a partir do conjunto de elementos que o formava. E as relações familiares eram fundamentais nesse conjunto.

O mapeamento da família e do cuidado familiar como parte do escopo da geriatria - especialmente quando em diálogo com uma área mais abrangente, a gerontologia - não é exatamente novo (Debert 1992DEBERT, Guita. 1992. “Família, Classe Social e Etnicidade: Um Balanço da Bibliografia sobre Experiência de Envelhecimento”. BIB. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, 33:33-50.). Um clássico da área, Lawrence Cohen (1992COHEN, Lawrence. 1992. “No aging in India: The uses of gerontology”. Culture, Medicine and Psychiatry, 16 (2):123-161. ), descreve como o discurso gerontológico indiano dos anos 1980-1990 pautou parte de suas críticas sociais a partir da “modernização” das famílias, que teriam deixado de atentar para seus idosos, orientando sua ação política para reformar essa entidade. Jesse Ballenger (2006BALLENGER, Jesse. 2006. “The biomedical deconstruction of senility and the persistent stigmatization of old age in the United States”. In: A. Leibing & L. Cohen (orgs.), Thinking about dementia: culture, loss, and the anthropology of senility. New Jersey: Rutgers University Press. pp. 106-122.) observa como tal discurso, nos EUA, ganhou maior força depois da Segunda Guerra e desenhou a “modernização” como a principal causa de alienação de redes sociais e familiares. Ambos os discursos compuseram conferências internacionais sobre envelhecimento no início dos anos 1980.

Guita Debert (1992DEBERT, Guita. 1992. “Família, Classe Social e Etnicidade: Um Balanço da Bibliografia sobre Experiência de Envelhecimento”. BIB. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, 33:33-50., 2012DEBERT, Guita. 2012. “Imigrantes, Estado e Família: o cuidado de idosos e suas vicissitudes”. In: H. Hirata & N. Guimarães (orgs.), Cuidado e Cuidadoras: as várias faces do trabalho de care. São Paulo: Atlas. pp. 216-233.) tem mapeado um movimento parecido entre gerontólogos e geriatras brasileiros, o qual forja dois modelos de envelhecimento: um saudável e no convívio social e outro marcado pela necessidade de cuidado e responsabilização familiar. O discurso do abandono familiar é compreendido como um dos principais elementos de manejo dessas relações. Simoni Guedes (2000GUEDES, Simoni. 2000. “A concepção sobre a família na geriatria e na gerontologia brasileiras: ecos dos dilemas da multidisciplinaridade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15 (43):69-82. ) argumenta que a agenda política da gerontologia compõe um olhar clínico sobre as relações familiares, organizando seu projeto político como uma intervenção de “cura” dessas relações. Tais perspectivas estão preocupadas com o discurso público e a agenda política e societária da gerontologia e geriatria. Pretendo, aqui, adicionar outra camada a essa reflexão, meu objetivo é articular de que forma a família é manejada como objeto clínico: enquanto um dos elementos das demências que se traduzem em intervenções de cuidado. Além disso, investigar como tais discursos públicos são incluídos (Mol 2002MOL, Annemarie. 2002. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press. ) em decisões clínicas sobre intervenção e diagnóstico de doenças que causam as demências.

João Biehl (2005BIEHL, João. 2005. Vita: life in a zone of social abandonment. London: University of California Press. ) defende que, no contexto do tratamento de doenças mentais pós-reforma psiquiátrica no Brasil, a reorientação para o cuidado interno às famílias e comunidades e o investimento precário em uma estrutura abrangente de serviços foram acompanhados pela intensificação do uso de medicamentos psicotrópicos, como calmantes, antidepressivos e antipsicóticos, os quais são utilizados para lidar com dilemas dos mais diversos, envolvendo pressões sociais, moralizações de relações familiares e papéis de gênero. O autor chama esse processo de “desbiologização da patologia”, algo que, em sua perspectiva, desloca o objeto médico psiquiátrico de doenças físicas para questões de outra ordem: sociológicas. Poderíamos, em uma analogia um tanto rápida, observar o fenômeno dos medicamentos na geriatria da mesma forma. Mas este me parece um caminho equivocado.

Proponho, então, outro caminho: investigar (i) de que modo a família é manejada como parte do escopo da geriatria e (ii) como esse escopo é manejado no momento de diagnosticar e tratar das demências. Quero entender de que forma a família é incluída nas decisões sobre o que tratar e qual a importância dessa categoria para a composição da especialidade - que, desde sua fundação, pretende incluir fatores da ordem social no processo de diagnóstico e cuidado. O diálogo com a perspectiva de Mol (2002MOL, Annemarie. 2002. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press. ) é, então, fortuito. A autora propõe que a etnografia se volte para a observação e a descrição das práticas e dos processos que manejam e compõem seus objetos de intervenção - as doenças, por exemplo. Não quero partir do pressuposto de que doença foi, em qualquer momento para essa especialidade, uma questão unicamente física, e que investimentos em tratamentos de questões sociais seja um deslocamento.

Farei tal investigação em duas etapas. Primeiro, situo a maleabilidade ontológica das demências e o lugar da geriatria nessa questão, procuro observar a geriatria compondo seus objetos na cena pública, o que faz sublinhando o papel da família. Observo, então, como a família é parte da montagem do próprio escopo da área, que se pretende “biopsicossocial” e “holística”. Em uma segunda etapa, discuto como essa centralidade da família é incluída em práticas cotidianas de feitura de diagnósticos de casos e seus “conjuntos”, e como a “sobrecarga da cuidadora” e a “insuficiência familiar” são diagnosticadas, tratadas e medicadas em relação às demências e outras doenças. Escolho narrar apenas um caso nesta segunda etapa. As conclusões e a atenção às categorias não são tiradas apenas dele, mas da etnografia como um todo. Contudo, a escolha de centrar a narrativa em uma experiência permite ter um maior conjunto de detalhes em conta. Tento levar a sério a fala de geriatras de que é preciso aplicar o que se sabe a cada caso, observar o conjunto de elementos sendo montado nesse caso. Dessa forma, ao chegar no manejo das categorias “sobrecarga da cuidadora” e “insuficiência familiar”, o caso de Horácio e Rosamaria - nomes fictícios - é acompanhado. Finalizo, então, argumentando que a família é um objeto relacionado às demências para a clínica geriátrica.

Geriatria e seu escopo

Diversidade ontológica das demências e o lugar da geriatria

As chamadas demências senis são entidades nomeadas e entendidas como “anormais” na literatura biomédica ocidental desde o século XVIII (Fox 1989FOX, Patrick. 1989. “From senility to Alzheimer Disease: the rise of the Alzheimer Disease Movement”. Milbank Quarterly, 67 (58):58-102. ). Contudo, os limites entre a normalidade e a patologia relativos ao envelhecimento são motivos de debate desde muito antes e, é justo dizer, nunca foram completamente pacificados (Fox 1989FOX, Patrick. 1989. “From senility to Alzheimer Disease: the rise of the Alzheimer Disease Movement”. Milbank Quarterly, 67 (58):58-102. ; Lock 2013LOCK, Margaret. 2013. The Alzheimer conundrum: entanglements of dementia and aging. New Jersey: Princeton University Press. ). Discussões sobre tipos, causas principais e abrangência epidemiológica de doenças que podem causar um conjunto de sintomas agregados no termo demência formam a história dessa condição para a biomedicina (Fox 1989FOX, Patrick. 1989. “From senility to Alzheimer Disease: the rise of the Alzheimer Disease Movement”. Milbank Quarterly, 67 (58):58-102. ; Lock 2013LOCK, Margaret. 2013. The Alzheimer conundrum: entanglements of dementia and aging. New Jersey: Princeton University Press. ). Assim, as demências passaram (e continuam passando) por consideráveis mudanças ontológicas, especialmente nesse último século. A entidade nomeada como Doença de Alzheimer (um tipo de doença que causa demência) tornou-se hegemônica ao campo desde os anos 1970, sendo amplamente considerada a doença que mais causa demências (Fox 1989FOX, Patrick. 1989. “From senility to Alzheimer Disease: the rise of the Alzheimer Disease Movement”. Milbank Quarterly, 67 (58):58-102. ; Lock 2013LOCK, Margaret. 2013. The Alzheimer conundrum: entanglements of dementia and aging. New Jersey: Princeton University Press. ).

Diagnosticar doenças que causam demências é narrado pela literatura como um processo complexo, cheio de controvérsias e etapas (Kitwood 1997KITWOOD, Tom. 1997. Dementia reconsidered: the person comes first. Buckinghan: Open University Press. ; Lock 2013LOCK, Margaret. 2013. The Alzheimer conundrum: entanglements of dementia and aging. New Jersey: Princeton University Press. ; Feriani 2017FERIANI, Daniela. 2017. “Pistas de um cotidiano assombrado: a saga do diagnóstico na doença de Alzheimer”. Ponto Urbe, 20:1-24. ). Nem sempre um tipo de doença é reconhecido como causa dos sintomas, exames são limitados, por vezes os diagnósticos são chamados de mistos e, não raro, tais diagnósticos ainda se acoplam com o de outras doenças comuns ao envelhecimento (Kitwood 1997KITWOOD, Tom. 1997. Dementia reconsidered: the person comes first. Buckinghan: Open University Press. ; Lock 2013LOCK, Margaret. 2013. The Alzheimer conundrum: entanglements of dementia and aging. New Jersey: Princeton University Press. ). Pesquisadores apontam também para a variedade de culturas médicas no manejo dos critérios de diagnóstico e no tipo de tratamento proposto (Graham 2006GRAHAM, Janice. 2006. “Diagnosing dementia: epidemiological and clinical data as cultural text”. In: A. Leibing & L. Cohen (orgs.), Thinking about dementia: culture, loss, and the anthropology of senility. New Jersey: Rutgers University Press. pp. 80-105. ). Há, ainda, um intenso e não resolvido debate sobre o melhor método de cuidado, seja ele medicamentoso ou baseado em modos específicos de conviver e organizar o cuidado público (Leibing 2019LEIBING, Annette. 2019. “Geriatrics and humanism: Dementia and fallacies of care”. Journal of Aging Studies, 51:1-7. ).

A geriatria, especialidade médica focada no processo de envelhecimento, é um dos personagens possíveis desse cuidado. No Brasil, é uma das especialidades que podem atender às demências pelo Sistema Único de Saúde (SUS), junto de psiquiatras e neurologistas. A geriatria tende a se apresentar (Leibing 2019LEIBING, Annette. 2019. “Geriatrics and humanism: Dementia and fallacies of care”. Journal of Aging Studies, 51:1-7. ), e ser localizada na literatura das demências (Lock 2013LOCK, Margaret. 2013. The Alzheimer conundrum: entanglements of dementia and aging. New Jersey: Princeton University Press. ), como uma especialidade “holística”, que lida com o cuidado e com as doenças a partir de uma perspectiva “biopsicossocial”, ou seja, diferente de outras especialidades focadas exclusivamente na doença e seus sintomas, ou no corpo e na expressão física do sofrimento, comporia uma abordagem sistêmica dos processos de saúde e doença relativos ao envelhecimento (Moreley 2004MORLEY, John. 2004. “A Brief History of Geriatrics”. Journal of Gerontology: Medical Sciences, 59A (11):1132-1152. ). Por outro lado, na literatura antropológica, essa especialidade tem sido frequentemente associada à transformação do envelhecimento em tema de intervenção biomédica - ou, simplesmente, pela “biomedicalização do envelhecimento” (Estes & Binney 1989ESTES, Carrol & BINNEY, Elisabeth. 1989. “The biomedicalization of aging: dangers and dilemas”. Gerontologist, 29:587-596. ). Demência, nesse contexto, é observada a partir do “envelhecimento”.

Geriatria e gerontologia, o caso brasileiro e o lugar da família

Uma gama expressiva de tecnologias médicas tem lidado com questões relativas à velhice - a partir de distintas perspectivas do que vêm a ser envelhecimento, doença e saúde (Cohen 1994COHEN, Lawrence. 1994. “Old age: Cultural and Critical Perspectives”. Annual Review of Anthropology, 23:137-158. ; Rougemont 2018ROUGEMONT, Fernanda. 2018. Medicina Anti-aging no Brasil: uma análise antropológica das transformações na abordagem médica do envelhecimento. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro. ). Não se trata de uma preocupação recente, ou mesmo localizada. A geriatria moderna, contudo, é um evento relativamente marcado e delineado a partir da história que conta sobre si mesma, salientando determinados nomes e preocupações (Morley 2004MORLEY, John. 2004. “A Brief History of Geriatrics”. Journal of Gerontology: Medical Sciences, 59A (11):1132-1152. ; Mulley 2012MULLEY, Graham. 2012. “Hot topic in geriatric medicine: A History of Geriatrics and Gerontology”. European Geriatric Medecine, 3:225-227. ). O francês Jean-Martin Charcot, em 1881, ficou conhecido por defender a ideia de que existiriam doenças mais comuns ao envelhecimento, mas foi Ignatz Leo Nascher quem criou o termo geriatria e pautou uma área da medicina especializada no envelhecimento, de modo parecido com o que acontecia com a pediatria e a infância. Nascido em Viena, imigrou e se formou médico nos EUA. Em 1914, publicou o livro The diseases of old age and their treatment. Inspirado pelas suas visitas ao sistema austríaco de saúde e cuidado, Nascher se contrapunha a teorias gerais correntes de que o envelhecimento era, em si, uma doença. Passou a produzir narrativas para diferenciar o estado “normal” no envelhecimento de patologias que poderiam estar relacionadas a seus processos. Estabeleceu, assim, uma diferença em relação aos corpos envelhecidos, defendendo que estes possuíam doenças particulares e demandavam modos de cuidado específicos.

Ao estabelecer uma diferença, contudo, não apagou ou minimizou certas ambiguidades desse novo objeto de intervenção. Nascher considerava que a linha que separaria a velhice normal das patologias era mais difícil de ser traçada no caso de idosos do que no caso de crianças, tornando a relação com a pediatria menos óbvia (Groisman 2002GROISMAN, Daniel. 2002. “A velhice, entre o normal e o patológico”. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 9 (1):61-78. ). Contudo, a definição de demandas específicas não passava apenas por conceitos relativos à diferença orgânica entre normalidade e patologia. O autor acusava a biomedicina, em geral, de negligenciar pessoas idosas, apontando como solução a criação de uma nova especialidade: uma que fosse sensível aos idosos e ao preconceito que sofriam na sociedade e na medicina.

De acordo com Morley (2004MORLEY, John. 2004. “A Brief History of Geriatrics”. Journal of Gerontology: Medical Sciences, 59A (11):1132-1152. ), apesar de o termo ter nascido nos EUA e ganhado maiores investimentos institucionais e abrangência global lá e no Canadá, parte importante dos métodos e das intervenções foi desenvolvida na Inglaterra. A médica Marjory Warren ficou conhecida por pautar um tipo de abordagem compreensiva que marca o atendimento da geriatria até os dias atuais. Na década de 1930, Warren foi ordenada a acompanhar 850 pacientes idosos e com condições crônicas internados em um hospital londrino. Uma parte importante deles sofria de complicações relacionadas a intervenções médicas anteriores, não possuía qualquer diagnóstico e havia sido “deixada de lado” por outros médicos - categorizados como casos sem solução. Warren passou a tratar condições para as quais havia tratamento médico disponível, iniciou programas de reabilitação, inseriu ajudas técnicas para a movimentação e modificou o ambiente: decorou-o de forma mais agradável e que permitisse maior mobilidade. Essas medidas mudaram positivamente o quadro geral desses pacientes, o que garantiu a Warren certa visibilidade. Como consequência, a médica passou a pautar a necessidade de alas específicas de geriatria em hospitais e maior formação para superar a negligência desse público (Mulley 2012MULLEY, Graham. 2012. “Hot topic in geriatric medicine: A History of Geriatrics and Gerontology”. European Geriatric Medecine, 3:225-227. ).

Nesse ambiente de influência, outros médicos e acadêmicos britânicos começaram a desenvolver suas pesquisas e atuações, inclusive Bernard Isaacs, médico que orientou, posteriormente, a especialização inglesa em geriatria do criador do Centro de medicina que acompanhei. Seu reconhecido feito foi classificar quais seriam as principais demandas de atenção específicas de pessoas idosas - as quais chamou à época de quatro “gigantes”: (i) deficiência intelectual (especialmente as demências); (ii) incontinências; (iii) imobilidade e instabilidade; e (iv) doenças iatrogênicas - causadas por tratamentos médicos e intervenções cirúrgicas e medicamentosas (Mulley 2012MULLEY, Graham. 2012. “Hot topic in geriatric medicine: A History of Geriatrics and Gerontology”. European Geriatric Medecine, 3:225-227. ). Para o geriatra Graham Mulley (2012MULLEY, Graham. 2012. “Hot topic in geriatric medicine: A History of Geriatrics and Gerontology”. European Geriatric Medecine, 3:225-227. ), a história da geriatria apresenta (ou, poderíamos dizer, também produz) certas mensagens recorrentes: (i) doenças podem se apresentar de forma distinta na idade avançada; (ii) o uso de medicações desencadeia um conjunto de riscos; (iii) a longevidade se beneficia de hábitos saudáveis; (iv) existe uma série de danos causados a pessoas idosas por políticas equivocadas e discriminatórias; e (v) a importância de uma especialidade dedicada a pessoas idosas adoecidas para intervir nesse quadro.

Desde a década de 1970, as demências ganharam maior relevância para diferentes especialidades e é comum contar a sua história a partir da psiquiatria (Leibing 1999LEIBING, Annette. 1999. “Olhando para trás: os dois nascimentos da doença de Alzheimer e a senilidade no Brasil”. Estudos Interdisciplinares Envelhecimento, 1:37-56. ; Lock 2013LOCK, Margaret. 2013. The Alzheimer conundrum: entanglements of dementia and aging. New Jersey: Princeton University Press. ). Na geriatria, elas normalmente são compreendidas como parte de um agregado de elementos e de outras doenças que podem compor um envelhecimento não saudável. Em meu campo, o termo “conjunto” é utilizado para traduzir essa complexidade: as demências são observadas como parte de um conjunto maior de elementos formadores de um envelhecimento não saudável, ou seja, um envelhecimento associado a dilemas de saúde e experiência social marcada por precariedades. Os elementos incluídos nesse “conjunto” também dialogam com uma área maior, multidisciplinar, que se relaciona com a geriatria de modo próximo e, por vezes, tenso: a gerontologia.

A história da gerontologia é contada de modo mais diversificado, já que uma série de diferentes atores a compõe: advogados, médicos, assistentes sociais, políticos, demógrafos, sociólogos, antropólogos, entre outros (Ballenger 2006BALLENGER, Jesse. 2006. “The biomedical deconstruction of senility and the persistent stigmatization of old age in the United States”. In: A. Leibing & L. Cohen (orgs.), Thinking about dementia: culture, loss, and the anthropology of senility. New Jersey: Rutgers University Press. pp. 106-122.). Atores que pautam a velhice como objeto de intervenção, de estudo e de luta política. De acordo com Ballenger (2006BALLENGER, Jesse. 2006. “The biomedical deconstruction of senility and the persistent stigmatization of old age in the United States”. In: A. Leibing & L. Cohen (orgs.), Thinking about dementia: culture, loss, and the anthropology of senility. New Jersey: Rutgers University Press. pp. 106-122.), tais atores sempre possuíram alianças fracas, muitos conflitos e discordâncias internas e externas. O autor assume, contudo, que nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, uma potente aliança se desenhou para a área. Processo que chamou de “persuasão gerontológica”. Tratava-se, em resumo, de uma atitude otimista em relação ao envelhecimento que objetivava melhorar as condições de vida das pessoas envelhecidas ao redor do mundo a partir de políticas específicas. Além disso, a gerontologia se colocou de forma crítica em relação à geriatria na cena pública. A geriatria foi acusada de privilegiar aspectos biológicos do envelhecimento e o olhar patológico de seus processos, enquanto a gerontologia buscava transformar o modo como a sociedade lidava com o envelhecimento com base na implementação de políticas públicas, por isso a necessidade de persuadir governos e organismos internacionais.

Essa “persuasão” construiu um conjunto de argumentos principais que são ainda consideravelmente fortes. Primeiro, defendeu-se que havia uma ameaça demográfica em curso: projeções populacionais indicavam o aumento da porcentagem de pessoas idosas em relação ao restante da população, o que representaria um desafio ou uma ameaça para a economia dos Estados-nação e para as políticas de saúde. Noções como dignidade, autonomia, independência e prevenção foram reforçadas como possibilidades de obter uma experiência de envelhecimento mais digna. Outro ponto defendido era que Estados e sociedade não possuíam políticas específicas de cuidado adequadas a pessoas idosas e estas deveriam ser instituídas seguindo um conjunto geral de princípios e diretrizes - incluindo os conhecimentos especializados produzidos por geriatras e gerontólogos.

Lawrence Cohen (1992COHEN, Lawrence. 1992. “No aging in India: The uses of gerontology”. Culture, Medicine and Psychiatry, 16 (2):123-161. ), antropólogo pioneiro nos estudos sobre envelhecimento e autor da primeira etnografia de fôlego sobre as demências, chamou esse conjunto de argumentos de “lamento” dos gerontólogos. Lamento que, em sua perspectiva, foi transportado globalmente por meio de Conferências das Nações Unidas. Uma das primeiras e mais relevantes delas ocorreu em 1982, em Viena, na qual foi proposto um Plano de Ação Global relativo ao envelhecimento. O autor desenvolveu uma longa pesquisa sobre envelhecimento e demência na Índia e acompanhou diversas tensões relativas ao conceito universal de sujeito idoso se desenrolarem nos anos seguintes à conferência de Viena. De acordo com ele, narrativas, intervenções e alteridades em relação aos sujeitos envelhecidos não estariam ausentes na Índia, ou mesmo representariam um conjunto de noções simplesmente “importadas”, mas eram reconstituídas na prática gerontológica indiana a partir desse diálogo com as conferências internacionais (Cohen 1998COHEN, Lawrence. 1998. No aging in India: Alzheimer’s, the bad family, and other modern things. Berkeley: University of California Press.). Observa ainda que, apesar desse conceito universal da velhice utilizar um ícone vulnerável como forma de persuasão, as ações da geriatria e gerontologia locais - naquela época - acabaram sendo direcionadas e pautadas por sujeitos de classes mais altas e relativamente jovens.

Cohen, pesquisando a Índia (1992COHEN, Lawrence. 1992. “No aging in India: The uses of gerontology”. Culture, Medicine and Psychiatry, 16 (2):123-161. , 1998COHEN, Lawrence. 1998. No aging in India: Alzheimer’s, the bad family, and other modern things. Berkeley: University of California Press.), assim como Debert (1999DEBERT, Guita. 1999. A Reinvenção da Velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Fapesp. ), o Brasil, apontam para incongruências e divisões do objeto da gerontologia e da geriatria. Ao passo que se defende e produz imagens de vulnerabilidade e necessidade pública de cuidado, a maior parte das abordagens focou em pessoas “independentes”, o que mais tarde ficou conhecido como “envelhecimento ativo”, e em supostas formas de erradicar tais vulnerabilidades. Cohen (1992COHEN, Lawrence. 1992. “No aging in India: The uses of gerontology”. Culture, Medicine and Psychiatry, 16 (2):123-161. ) mapeia como na Índia dos anos 1990 a narrativa maistream do campo da geriatria e gerontologia acabou pesando a mão para um discurso público de que a família precisava manter bases fortes para bem cuidar e, assim, promover uma vida digna aos idosos. A crítica da modernidade e da “ocidentalização” fazia parte do campo e a estratégia para lidar com esses problemas foi desenhada como algo que reformaria as relações de uma família tradicional. Era, então, parte do projeto societário reformar a família, menos do que encampar um discurso sobre as relações de colonização, o avanço do capitalismo ou o lugar do cuidado nesse contexto. No Brasil, ocorreu algo parecido.

Uma das instituições que movimentaram a geriatria e a gerontologia no Brasil foi a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, a SBGG. Ela é considerada a principal responsável pela inserção do paradigma de envelhecimento, atenção e cuidado da geriatria e da gerontologia no contexto de oferta de serviços de saúde no Brasil (Lopes 2000LOPES, Andrea. 2000. Os desafios da gerontologia no Brasil. Campinas: Alínea.). De acordo com Andrea Lopes (2000LOPES, Andrea. 2000. Os desafios da gerontologia no Brasil. Campinas: Alínea.), a Sociedade foi criada em 1961 por um grupo de médicos interessados na geriatria. Em suas práticas clínicas, experimentavam especificidades na lida com pessoas envelhecidas: remédios não funcionavam, as internações eram muito constantes, as condições de saúde eram majoritariamente crônicas. E, atentos à produção internacional, passaram a pautar que o envelhecimento populacional era uma realidade crescente e que corpos envelhecidos mereciam uma atenção diferenciada dentro da medicina brasileira.

O relativo aparelhamento de geriatras no serviço público brasileiro é parte de uma movimentação intensa desses atores. Em termos formais, foi a Política Nacional do Idoso (PNI) de 1994, Lei nº 8.842 (Brasil 1994BRASIL. 1994. Dispõe sobre a política nacional do idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências. Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994.), que institucionalizou a inclusão da geriatria como especialidade em concursos públicos do SUS e a inserção de formações e especializações em geriatria e gerontologia para as equipes de atendimento básico da Estratégia de Saúde da Família (ESF).2 2 Tal presença, contudo, ainda é pequena, e está concentrada na região Sudeste. A PNI nasce influenciada por debates e movimentações internacionais, especialmente a Conferência de Viena. Em 1989, a Associação Nacional de Gerontologia (ANG) reuniu alguns profissionais em um seminário chamado “O idoso na sociedade atual”. Foi escrito, como produto, o documento: “Recomendações de Políticas para a Terceira Idade nos anos 90”. A PNI, de acordo com Jussara Rauth e Lígia Py (2016RAUTH, Jussara & PY, Ligia. 2016. “A história por trás da lei: o histórico, as articulações de movimentos sociais e científicos, e as lideranças políticas envolvidas no processo de constituição da Política Nacional do Idoso”. In: A. Alcântara; A. Camarano & K. Giacomin (orgs.), Política Nacional do Idoso - velhas e novas questões. Rio de Janeiro: IPEA. pp. 51-62. :59), foi escrita a cinco mãos. Tais “mãos” articulam um conjunto de instituições e perspectivas, entre elas, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG); a Associação Nacional de Gerontologia (ANG) e o Serviço Social do Comércio (Sesc). O documento manteve parte importante das diretrizes internacionais, algumas delas já inseridas na Constituição Federal de 1988. Os princípios e as diretrizes se orientam para dois grupos (mantendo a observada divisão do objeto): promoção do envelhecimento ativo para idosos saudáveis e garantia de atendimento, proteção e cuidado a idosos vulneráveis. No caso de necessidade de cuidados, foram priorizados o convívio e a responsabilidade da família, algo parecido com o observado por Cohen (1998COHEN, Lawrence. 1998. No aging in India: Alzheimer’s, the bad family, and other modern things. Berkeley: University of California Press.) na Índia. Tais valor e obrigação de cuidado familiar são previstos também em outros documentos oficiais - especialmente o Estatuto do Idoso (Lei no 10.741, de 1º de outubro de 2003).

Em seu artigo terceiro, o Estatuto do Idoso prevê que a família, o Estado e a sociedade sejam responsáveis pelo cuidado de idosos. Contudo, a família é abordada como o espaço ideal de convivência e cuidados, exceto se não possuir condições de sobrevivência. O documento prevê a: “V - priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência.” (Brasil 2013BRASIL. 2013. Estatuto do Idoso. 3. ed. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Brasília: Ministério da Saúde.:8). O critério que flexibiliza a idealização da família é, então, econômico. Cabe ao Estado, segundo essa lógica, garantir condições de renda mínima e ofertar vagas em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) quando esse ideal não pode ser alcançado.

O Centro de medicina pesquisado e seu modo de compor intervenções e manejar família está emaranhado nesses circuitos. Trata-se de um centro de cuidado de excelência, localizado em um hospital universitário do DF. Formado por profissionais de diferentes áreas, oferta um cuidado multidisciplinar, focado em um tratamento “biopsicossocial”. Além dos atendimentos, oferta algumas intervenções de cuidado alternativas, como coral, fisioterapia e grupos de cuidadoras. É ainda um espaço que forma residentes em geriatria e residentes de outras áreas que dialogam com a gerontologia. Seus profissionais também tendem a se engajar nos debates e advocacy sobre políticas de cuidado para o envelhecimento, tanto na cena nacional como no DF. A proposta “biopsicossocial” e a relevância dada ao cuidado familiar e seus aparatos públicos, então, estão presentes em sua atuação e formação em diversos níveis. Mas como isso se dá na clínica? Como relações familiares são objeto de intervenção clínica no cuidado das demências?

Um diagnóstico biopsicossocial

Detalhes sobre o campo

O escopo da geriatria brasileira, em contato com a cena internacional e da forma como se inseriu no SUS, é elemento fundamental para compreender o que é incluído (Mol 2002MOL, Annemarie. 2002. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press. ) nesse tal “conjunto” diagnosticado e tratado no Centro. O que argumento aqui é que o escopo “biopsicossocial” da geriatria é constituído na cena brasileira pela centralidade da família e incluído na clínica geriátrica a partir das categorias “sobrecarga da cuidadora” e “insuficiência da família”. E isto particulariza esta especialidade como aquela que olha para a demência de um modo mais holístico que as outras, como a psiquiatria e a neurologia, por exemplo. Todas essas especialidades diagnosticam e compõem demências, mas a geriatria faz isto relacionando a demência a uma realidade mais ampla.

As reflexões sobre o processo de diagnóstico vêm de uma pesquisa etnográfica em um centro multidisciplinar de geriatria e gerontologia. O Centro pesquisado faz parte de um hospital universitário, em Brasília. Na lógica do SUS, hospitais universitários, além de comporem a rede de atendimentos locais, são espaços de pesquisa e de formação. Assim, a presença de residentes e de pesquisadores é constante. Esses espaços ainda influenciam toda a rede, já que são formadores de novatos na área. Para se ter uma ideia, quase todos os geriatras da rede pública atuantes no DF, no momento da pesquisa, fizeram residência no Centro. Os diretores do Centro já ocuparam cargos na Secretaria de Saúde do DF e em secretarias do Ministério da Saúde, formulando políticas para o cuidado das demências. São ainda figuras importantes em associações de geriatras nacional e internacionalmente reconhecidas e professores de cursos de especialização em gerontologia e geriatria.

O Centro oferece um tipo de atendimento multidisciplinar, isto quer dizer que tem profissionais de psicologia, psiquiatria, geriatria, serviço social, fisioterapia, odontologia, enfermagem e neuropsicologia. Os tipos de profissionais podem variar, dependendo da estrutura de contratação e do envolvimento de professores da Universidade de Brasília em projetos eventuais. Cada uma dessas áreas treina seus residentes. Não só os médicos fazem residência lá, mas todos os outros profissionais passam por estágios, também chamados de residência. Vários dos profissionais e residentes têm ainda especializações em gerontologia ou planos de fazê-la.

Os profissionais são especialmente orgulhosos por serem considerados uma referência no diagnóstico e no tratamento das demências na região. E um dos principais motivos de serem tal referência é que fazem um diagnóstico multiprofissional e decidem sua intervenção a partir de um trabalho, de fato, multidisciplinar e biopsicossocial. Em vários sentidos, o Centro é entendido como um espaço modelo para a perspectiva biopsicossocial. Os diagnósticos do “conjunto” são feitos em manhãs chamadas de “acolhimento”. Nessas manhãs, quatro famílias são atendidas. As famílias são atendidas pelos seguintes profissionais: geriatra, dentista, fisioterapeuta, enfermeira e farmacêutica. Cada um tem um questionário padrão que será adicionado ao prontuário. Além disso, as pessoas com suspeita de demência passam sozinhas por um conjunto de testes de memória e cognição feitos por uma neuropsicóloga, enquanto os familiares têm uma consulta com a assistente social que investiga dificuldades financeiras com o custo do tratamento e cuidado, além de possíveis conflitos e sobrecargas. Antigamente, havia ainda uma psicóloga para observar este último ponto, mas durante todo o período que passei por lá essa profissional estava em falta.

Depois dessa bateria de exames - que dura a manhã inteira, os profissionais se encontram para discutir o caso. Cada um apresenta os resultados principais do que encontrou, normalmente aquelas informações resumidas encontradas no campo “hipóteses diagnósticas” - que está presente nos questionários de todos os profissionais. Assim, a defesa é que eles conseguem formular um diagnóstico do “conjunto”, para além de diagnosticar qual demência está em curso, ou seja, respondem-se às perguntas: quantas doenças a pessoa tem? Quantos remédios toma? Esses remédios são seguros quando misturados? Quem cuida? Quem vai ter condições de continuar cuidando por um longo prazo no caso de ser mesmo uma demência? Como as pessoas se sentem em relação a esse cuidado? Como a família é organizada? Existe uma divisão de cuidados? Tem algum problema de renda? Como esse problema de renda poderia ser resolvido? Uma pessoa que é diagnosticada com uma Doença de Alzheimer, por exemplo, pode ao mesmo tempo ser diagnosticada como “caso fácil” ou “caso difícil”, e isto vai depender de todo o outro mapeamento, que pode ser resumido nas categorias “sobrecarga da cuidadora” e “insuficiência familiar”. Depois de analisado o conjunto, as pessoas passam a ser acompanhadas. Tanto a demência pode ser atualizada nesses acompanhamentos (sua gravidade e tipo) como outras doenças e a análise do cuidado e da organização familiar.

Tive a oportunidade de acompanhar todos esses processos, participei de todos os tipos de consulta e de reuniões de diagnósticos. Em alguns momentos, ficava apenas junto de um profissional, em outros, seguia uma família sendo atendida durante uma manhã. Além disso, tive autorização para acessar dez prontuários e estudá-los com calma no arquivo do hospital. Vale mencionar que fiz minha pesquisa de mestrado também no Centro, voltei para apresentar a dissertação, muitas pessoas a leram e realmente se interessaram pelos resultados. Sendo um hospital universitário, é muito aberto à pesquisa, o que pode justificar a facilidade em acessar tantos espaços. Em um segundo momento, ainda estive junto de três famílias em suas casas e, eventualmente, fui com elas até o Centro para as consultas de acompanhamento, que vão medir e rever as intervenções e a situação do “conjunto”. Tenho preferido narrar os casos e os atendimentos destas três famílias, isto porque a proximidade e as autorizações para o campo foram mais íntimas e constantes. Além disso, são casos dos quais conheço mais nuances e dificilmente podem me deixar chegar a conclusões estereotipadas ou fechadas demais. E este é exatamente o caso de Horácio e Rosamaria.

Família na clínica: um caso difícil

No Centro pesquisado,3 3 As demências raramente são curáveis em qualquer contexto biomédico, com exceção de algumas doenças que podem ser revertidas. Além disso, em contextos de pesquisa, curas para doenças como o Alzheimer são almejadas e, eventualmente, realizadas pontualmente. as demências, na maioria dos casos, não eram curáveis: elas demandavam um longo cuidado para que os sintomas esperados avançassem de modo mais lento, ou ainda para que determinados incômodos cotidianos, fossem eles lidos como sintomas das demências, de outras doenças, ou do convívio, fossem aliviados. Como introduzido anteriormente, o Centro agregava essa complexidade de incômodos e sintomas a partir de uma categoria chamada “conjunto”. A ideia era de que existiria um “conjunto” de dilemas que se relacionariam uns com os outros e que o cuidado precisaria levar em conta o que estava presente naquele conjunto. Isso significava que as demências eram parte de um “conjunto”. Conjunto de doenças, conjunto de situações sociais, conjunto de relações familiares e o conjunto de tudo isso. Quando cheguei lá, estava interessada em conhecer como medicamentos das demências eram receitados e manejados. Diferentes profissionais me disseram: “você não pode olhar para um medicamento só, precisa olhar para o conjunto”. Aprendi com o tempo que tal categoria dimensionava a própria lógica de cuidado e intervenção (Mol 2002MOL, Annemarie. 2002. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press. ).

Casos de demência, nesse contexto, não eram complexos em si mesmos, mas sim de acordo com suas relações com o “conjunto”. Um “caso difícil” de demência para essa prática clínica poderia querer dizer algumas coisas diferentes. Por exemplo: o caso de uma pessoa que tinha várias doenças, como diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e doença de Alzheimer. E que, por isso, tomava vários medicamentos. O resultado do excesso medicamentoso para determinados órgãos, finanças domésticas e o perigo que esses medicamentos tinham de entrar em conflito uns com os outros tornavam o caso “difícil”, ou seja, um “caso difícil” era excessivo em variáveis. Outro tipo de “caso difícil” poderia envolver o cuidado, ou melhor, as relações familiares.

Horácio, um homem branco e dono de uma loja de chaves em uma Região Administrativa do DF, foi diagnosticado com Doença de Alzheimer em 2014. Ele vivia com a sua segunda esposa, Rosamaria. Tinha cinco filhos de seu primeiro casamento. No começo, esses filhos foram chamados para as consultas e as reuniões com a assistente social, isto para tentar dividir o cuidado entre mais membros da família, mas conflitos e brigas entre esses filhos e Rosamaria pareciam tornar essa divisão muito difícil. Horácio participou de um dos diagnósticos de Doença de Alzheimer mais simples que vi serem montados. Horácio não tinha nenhuma outra doença, caso raro lá no Centro. Isto queria dizer que a decisão sobre qual remédio receitar era simplificada, já que não se precisaria julgar se os remédios combinavam uns com os outros. Várias pessoas da sua família experimentaram a Doença de Alzheimer e, quando diagnosticado, ele tinha menos de 60 anos. Horácio começou a esquecer coisas muito cruciais do dia a dia e passou e ter crises de ciúmes e medo intenso de que estava sendo roubado por funcionários nos quais confiava há anos. A família e ele próprio ainda notaram que esses dilemas com a memória estavam piorando com o tempo, o que significava, ali, que seus sintomas cabiam nos critérios de diagnóstico da Doença de Alzheimer quase como uma luva: não tinha problemas cardiovasculares,4 4 O mapeamento de problemas cardiovasculares faz parte do diagnóstico da Doença de Alzheimer. Isso para descartar qualquer doença cardiovascular como causa dos sintomas. tinha pessoas na família com o mesmo diagnóstico, tinha esquecimentos progressivos, mudou de comportamento.

Em tese, seria um caso simples de ser tratado naquele contexto, especialmente porque Horácio tomaria poucos medicamentos. E foi assim que começou, ele passou a consumir um medicamento específico para a demência: a donepezila.5 5 Ballenger (2009) defende que, em 1970, mesma década da popularização da Doença de Alzheimer, vários laboratórios apresentaram dados para sustentar a hipótese de que, junto com os processos da demência senil, havia um déficit do neurotransmissor chamado acetilcolina. Um medicamento que aumentasse a quantidade desse neurotransmissor, então, seria positivo. Tese que ficou conhecida como “hipótese colinérgica”. Os medicamentos específicos para a Doença de Alzheimer se relacionam com essa versão das demências. Poucas variáveis. Contudo, desde sua primeira consulta, anotaram em seu prontuário que havia “sobrecarga da cuidadora”. E esse diagnóstico provou complicar o número de variáveis sobre as quais se pretendia intervir. Apesar de elementos do conjunto que normalmente dificultam o tratamento estarem ausentes, como outras doenças envolvendo problemas vasculares e a dificuldade em estabelecer um diagnóstico certeiro de Doença de Alzheimer, o cuidado necessário no dia a dia para que se viva com a demência era um complicador.

Como já mencionei, entendo que a categoria “sobrecarga da cuidadora” atua enquanto diagnóstico porque ela é escrita no prontuário nas “Hipóteses Diagnósticas” e porque é um dos principais elementos do “conjunto”: categoria maior que agrega as demências, outras doenças e as relações. Como mencionado, os prontuários do Centro são longos, formados de questionários preenchidos por diferentes tipos de profissionais. Quando diagnosticado, Horácio foi atendido pela equipe multidisciplinar, por isso havia papéis resumindo e sistematizando consultas com dentista, fisioterapeuta, assistente social, geriatra etc. Havia, ainda, documentos de diferentes consultas de acompanhamento na geriatria, letras de distintos médicos no mesmo modelo de questionário. Constavam também anotações de exames e testes de memória. Em sua totalidade, era um material extenso e qualitativo, mas nele havia espaços de categorização e sistematização.

Um tipo de informação sintética, escrita no prontuário dos médicos geriatras e outros profissionais eram as “Hipóteses Diagnósticas”, ou, simplesmente, HD. Nas HDs escreviam-se palavras, por exemplo: “osteoporose; diabetes tipo 1; glaucoma; demência vascular (?)”. Quando o símbolo (?) acompanhava a palavra, tratava-se de algo que estava em investigação, já se a palavra estivesse livre de símbolos, um diagnóstico mais pacificado estava traçado. As palavras poderiam mudar ao longo dos anos, incluindo-se novos diagnósticos e retirando aqueles que deixavam de existir ou importar para o “conjunto”. E, no prontuário da primeira consulta de Horácio, foi escrito: “doença de Alzheimer; sobrecarga da cuidadora”.

A “sobrecarga da cuidadora”, então, atuava enquanto parte do diagnóstico do “conjunto” em questão. Rosamaria, segunda esposa de Horácio, quase vinte anos mais nova que ele e sua funcionária na loja de chaves, relatou às médicas que estava muito cansada com o cotidiano. Os ciúmes, os acessos de raiva e os esquecimentos a deixavam sem chão. A piora do marido exigia dela cada vez mais ações de cuidado e Rosamaria experimentou seu tempo ser completamente transformado. Agora seu dia envolvia auxiliar o marido a comer, se vestir, tomar banho, gerenciar as finanças da loja, atender a todos os clientes sozinha. O rendimento da loja acabou caindo, ela se viu ainda tendo que correr atrás de uma aposentadoria para o marido e arranjar sua vida para lidar com menos dinheiro bem quando seus gastos com farmácia e mercado aumentaram.

Rosamaria expressava tudo o que lhe acontecia nas consultas, eventualmente ela chorava, fazia os ouvintes colocarem-se em seu lugar relatando como eram seus dias e semanas. Lembro de um dia em que ela disse, com olhos marejados: “eu tô de um jeito, hoje eu vi um mendigo na rua e pensei ‘ô, esse aí deve estar mais feliz que eu’, essa não é a vida que eu queria ter”. Toda essa angústia expressada nas consultas foi agregada pelos médicos e outros profissionais na categoria de “sobrecarga da cuidadora”. Ali, para se categorizar uma sobrecarga, era preciso que ela fosse performada de determinada maneira. Tal categoria era associada a reclamações e sofrimentos relatados por cuidadoras - aqueles já reconhecidos internamente como a parte “pesada” do cuidado a partir do encontro de cuidadoras com tais instituições e profissionais e, além disso, do acúmulo de literatura sobre o tema. O conceito de sobrecarga da cuidadora, junto do de cuidadora principal, além de orientadores das atividades do Centro, fazem parte de muita produção reflexiva de psicólogas, assistentes sociais e enfermeiras que pensam sobre a demência e outras doenças crônicas na velhice (Delalibera et al. 2015DELALIBERA, Mayra; PRESA, Joana; BARBOSA, António & LEAL, Isabel. 2015. “Sobrecarga no cuidar e suas repercussões nos cuidadores de pacientes em fim de vida: revisão sistemática da literatura”. Ciência & Saúde Coletiva, 20 (9):2731-2747. ; Loureiro et al. 2013LOUREIRO, Lara; FERNANDES, Maria das Graças; MARQUES, Sueli; NÓBREGA, Maria & RODRIGUES, Rosalina. 2013. “Sobrecarga de cuidadores familiares de idosos: prevalência e associação com características do idoso e do cuidador”. Revista da Escola de Enfermagem, 47 (5):1129-1136. ).

Alguns temas são comuns quando se cita a sobrecarga, como “ansiedade e depressão, estresse e tensão, privação de sono, redução da qualidade de vida, sentimento de impotência, desamparo, dificuldades financeiras decorrentes de possíveis alterações no emprego e gastos médicos” (Delalibera et al. 2015DELALIBERA, Mayra; PRESA, Joana; BARBOSA, António & LEAL, Isabel. 2015. “Sobrecarga no cuidar e suas repercussões nos cuidadores de pacientes em fim de vida: revisão sistemática da literatura”. Ciência & Saúde Coletiva, 20 (9):2731-2747. :2732). Quando se trata especificamente da Doença de Alzheimer e das demências, é comum que se citem as dificuldades envolvendo as lidas cotidianas com esquecimentos e comportamentos específicos: como agressividade, vontade de fugir, entre outros (Marins et al. 2016MARINS, Aline; HANSEL, Cristina & SILVA, Jaqueline da. 2016. “Mudanças de comportamento em idosos com Doença de Alzheimer e sobrecarga para o cuidador”. Escola Anna Nery, 20 (2):352-356. ). A falta de suporte estatal e o isolamento dessa figura chamada de cuidadora principal também são denunciados em menor intensidade, mas são (Veras et al. 2006VERAS, Renato; CALDAS, Célia; DANTAS, Sérgio; SANCHO, Leyla; SICSÚ, Bernardo; MOTTA, Luciana & CARDINALE, Carlos. 2006. “Avaliação dos gastos com o cuidado do idoso com demência”. Revista Psiquiatria Clínica, 34 (1):5-12.). Em raros casos, a quantidade e as dificuldades no acesso e no manejo de medicamentos podem ser citadas (Barros, Silva & Leite 2015BARROS, Debora; SILVA, Dayde & LEITE, Silvana. 2015. “Conduta do tratamento medicamentoso por cuidadores de idosos”. Interface (Botucatu), 19 (54):527-536.). Tais termos são também comuns a grupos de apoio e solidariedade a cuidadores de pessoas com demência criados por familiares, os quais tenho acompanhado pelo Facebook desde 2016. Há uma formulação consideravelmente compartilhada sobre o que é sobrecarga da cuidadora e quem a experimenta - a cuidadora principal.6 6 Dentro das ciências sociais existem críticas sobre o papel que as narrativas de sofrimento e de peso do cuidado causaram em termos de percepção pública das relações com a demência (Beard 2004; Behuniak 2011). Em determinados contextos, associações de cuidadores e de profissionais foram acusadas de fazer parte de uma produção excessivamente negativa em relação à experiência com o Alzheimer e com as demências (Beard 2004; Taylor 2017). Para Leibing (2019), as narrativas sobre o peso do cuidado podem ainda funcionar de outra forma: sustentando contos heroicos de um “cuidado total”, exercido por sujeitos que abandonam tudo e se dedicam intensamente, superando quaisquer dificuldades a partir do sacrifício.

Poderia parecer um deslocamento do objeto de cuidado da pessoa com demência para a cuidadora, como argumenta Daniela Feriani (2017FERIANI, Daniela. 2017. “Pistas de um cotidiano assombrado: a saga do diagnóstico na doença de Alzheimer”. Ponto Urbe, 20:1-24. ), mas acredito que, nesse contexto que conheci, seja mais que isso. Apesar de ser uma categoria que envolve e diz respeito às cuidadoras e às suas experiências com a demência, se vincula à qualidade do cuidado a ser desenvolvido. Não é, então, um desvio do foco da intervenção para a cuidadora, muito pelo contrário, o cuidado e as cuidadoras são aspectos que interferem na terapêutica e, assim, fazem parte das intervenções. São parte do “conjunto”. O problema da sobrecarga, me explicou a assistente social, era que a atenção para com a pessoa com demência estaria em risco. E como o tratamento oferecido pelo Centro dependia dessa atenção, a própria terapêutica proposta estaria em risco.

No Centro, a categoria de “sobrecarga da cuidadora”, como na literatura, não se relacionava apenas com o que Rosamaria expressava, ou com as atividades que precisava fazer no cotidiano, mas também com a não possibilidade de contratar serviços de cuidado. Rosamaria, naquele momento em que se sentia sobrecarregada, estava também com problemas financeiros. Problemas estes que a impediam de pagar uma profissional de cuidado, fazer mudanças na casa para Horácio se movimentar melhor, comprar medicamentos e comidas que fossem mais indicadas para ele. Tais sobrecargas, emocionais e financeiras, poderiam ser passageiras, fruto da lida dos anos iniciais do diagnóstico. Frase muito comum que ouvia no Centro era: “Melhora com o tempo”. Apesar de a doença ser progressiva, a ideia era de que o cuidado melhorava com o tempo, seja pelo costume, reorganização, ou o amansar dos desconfortos e dos sustos iniciais, pelos aprendizados e as alegrias encontrados no percurso. A sobrecarga também poderia se relacionar com alguma mudança nas dinâmicas já estabelecidas, quando alguém se cansava, quando um sintoma novo aparecia, quando um médico se aposentava. A sobrecarga, assim, poderia ser um diagnóstico passageiro.

Mas, no caso de Rosamaria, a sobrecarga permaneceu por anos. Como forma de conhecer as causas de tal sobrecarga e suas potenciais soluções, as relações familiares foram investigadas pelo Centro. Relações familiares faziam parte da anamnese (consulta) de médicos, assistente social e outros profissionais. “Quantos filhos existem?”, “Tem outros parentes?”, “Quem vive na casa?”, “Quem poderia ajudar?”. Eram perguntas de consulta. Foi a partir dessa insistente sobrecarga, então, que os profissionais do Centro convidaram os filhos do primeiro casamento de Horácio para frequentarem as consultas e os encontros com a assistente social. Como mencionado, Horácio tivera cinco filhos em seu primeiro casamento. Quando foram chamados a dividir o cuidado, contudo, conflitos importantes se solidificaram. Por um tempo, esses filhos ficaram afastados do pai e de Rosamaria. Brigas foram presenciadas pelos profissionais nas reuniões e nas consultas. De um lado, ouvia-se que o pai teria abandonado os filhos e por isso não teria direito ao cuidado; de outro, que os filhos abandonaram o pai depois da doença. A assistente social e os médicos tentaram mediar os conflitos, mas sem sucesso. Tinham medo de que a sobrecarga de Rosamaria pudesse chegar a um nível insuportável e fazê-la “abandonar” Horácio em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos, chamadas antigamente de asilos.

Como não conseguiram resolver a sobrecarga a partir de uma sensibilização da família, outra categoria foi incluída no prontuário como diagnóstico: a “insuficiência familiar”. Esta, mais do que apontar para sobrecargas de uma pessoa ou dos dias de cuidado, categorizava a família como insuficiente. Esta categoria poderia ser utilizada por diferentes razões. Poderia ser por conta do número reduzido de filhos e pessoas da família próximas que potencialmente se encarregariam do cuidado - projetando-se um ideal de família estendida, ou pelo menos com um número maior de filhos que pudessem compartilhar o cuidado. Poderia ainda ser uma questão financeira, quando a família não possuía renda agregada para a contratação de serviços de cuidado, em contraposição a uma família que tinha condições de financiar trabalhadores de cuidado. Ou ainda, como no caso de Rosamaria e Horácio, de uma família com uma história de conflitos que atrapalhava tanto a convivência como as reciprocidades financeiras.

Essa história relembra as controvérsias da institucionalização no Brasil e as consequências políticas das expectativas e das perspectivas de abandono e negligência. Por um lado, existe uma crítica às instituições asilares. Instituições asilares possuem um histórico que as associa à caridade, direcionadas a idosos pobres e sem vínculos familiares, o que se reflete também no texto da lei (Novaes 2003NOVAES, Regina. 2003. Os asilos de idosos no estado do Rio de Janeiro - repercussões da (não) integralidade no cuidado e na atenção à saúde dos idosos. Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.). Há ainda um histórico de denúncia de abuso dos direitos humanos e qualidade duvidosa na oferta de cuidados. Dentro do campo da geriatria e gerontologia, elas são comumente lidas como uma reiterada forma de retirada de pessoas idosas do mundo social, reificando comportamentos discriminatórios da sociedade moderna em lidar com sujeitos envelhecidos: um abandono social.7 7 Categoria inclusive adotada e manejada por Biehl (2005) Nesta perspectiva, elas são moralmente nocivas ao bom envelhecimento. O cuidado na família, então, passa a ser uma pauta política da gerontologia e geriatria (Guedes 2000GUEDES, Simoni. 2000. “A concepção sobre a família na geriatria e na gerontologia brasileiras: ecos dos dilemas da multidisciplinaridade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15 (43):69-82. ).

Por outro lado, pesquisadoras que focam sua abordagem no cuidado e nas estruturas de cuidado (Debert 1999DEBERT, Guita. 1999. A Reinvenção da Velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Fapesp. , 2012DEBERT, Guita. 2012. “Imigrantes, Estado e Família: o cuidado de idosos e suas vicissitudes”. In: H. Hirata & N. Guimarães (orgs.), Cuidado e Cuidadoras: as várias faces do trabalho de care. São Paulo: Atlas. pp. 216-233.; Debert & Pulhez (orgs.) 2017DEBERT, Guita & PULHEZ, Mariana (orgs.). 2017. “Apresentação”. In: G. Debert & M. Pulhez, Dossiê Desafios do Cuidado: Gênero, Velhice e Deficiência. Textos didáticos IFCH Unicamp, nº 66.; Mioto 2015MIOTO, Regina. 2015. “Política social e trabalho familiar: questões emergentes no debate contemporâneo”. Serviço Social e Sociedade, 124:199-720. ) tendem a acusar o Estado brasileiro - assim como Estados latinos, de maneira geral - de constituírem um tipo de política familista, ou seja, trata-se de um Estado que dependeria e reforçaria modelos de família a partir de suas políticas de saúde, educação e segurança, contando com seu trabalho cotidiano de cuidado para suprir lacunas na oferta de determinados serviços. Tal processo tem como consequência um discurso que retira do Estado a responsabilidade de fornecer esses serviços, contando que as famílias (no caso, majoritariamente as mulheres da família) cumpram com tais funções sem que sejam, ainda, remuneradas ou possuam redes e estruturas amplas de apoio comunitário. Ademais, tal perspectiva partiria do pressuposto de que a família é necessariamente ideal aos idosos, o que não seria baseado em reflexões que levam em conta o ponto de vista desses sujeitos, mas sim noções essencialistas de afeto e cuidado (Debert 2012DEBERT, Guita. 2012. “Imigrantes, Estado e Família: o cuidado de idosos e suas vicissitudes”. In: H. Hirata & N. Guimarães (orgs.), Cuidado e Cuidadoras: as várias faces do trabalho de care. São Paulo: Atlas. pp. 216-233.; Longhi 2018LONGHI, Marcia Reis. 2018. “Dependência, autonomia, cuidado e velhice: considerações sob o prisma das políticas públicas”. In: Rosana Castro; Cíntia Engel & Raysa Martins (orgs.), Antropologias, saúde e contextos de crise. Brasília: Sobrescrita.).

Outra forma de se aproximar desse debate e que sai um pouco de seus termos mais clássicos, família versus Estado, é de que, de fato, os trabalhos de cuidado e atenção não são e nunca foram, no Brasil, realizados unicamente pelas mulheres e pelas pessoas da casa ou da família, considerando que a figura das empregadas domésticas e, mais recentemente, das cuidadoras é constantemente e historicamente articulada nessas relações, o que estabelece diferenças de classe intensas, já que famílias ricas utilizam recursos para solucionar determinadas demandas (Sorj & Fontes 2012SORJ, Bila & FONTES, Adriana. 2012. “O care como um regime estratificado: implicações de gênero e classe social”. In: H. Hirata & N. Guimarães (orgs.), Cuidado e cuidadoras, as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas. pp. 103-116. ). Não se trata, então, de uma expectativa de que a família consanguínea cuide, mas que existam trabalhadoras externas que desempenhem determinados cuidados e que esse serviço caiba no orçamento privado familiar. E, assim, esta é uma preocupação voltada apenas para certos extratos da população. O abandono, então, é constantemente narrado como um “problema social”, mas quer normalmente dizer que se trata de “um problema dos pobres”.

Rosamaria eventualmente conseguiu apoio financeiro dos irmãos de Horácio e auxílio para o cuidado diário com sua irmã. E, bem mais para frente, conseguiu apoio financeiro dos filhos. Com tal apoio, Rosamaria contratou uma cuidadora de idosos. As histórias de conflito familiar não eram tão fixas quanto pareciam aos olhos dos profissionais e muitas vezes serviam de mola para a resolução de determinadas questões (Das 2015DAS, Veena. 2015. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press. ). Mas, durante vários anos, todos esses arranjos pareciam, aos olhos dos profissionais do Centro, instáveis demais. Desfaziam-se, não eram garantidos, a “sobrecarga da cuidadora” voltava a bater. Essa insistência dos diagnósticos no tempo e a falta de sucesso das intervenções propostas reforçavam a categoria de “insuficiência familiar” e tornavam o caso de Horácio e Rosamaria um “caso difícil”. Um conjunto instável que poderia resultar no abandono. Mas como isso se expressava no tratamento?

Tratando família

Diagnosticar o estado de espírito, o tempo cotidiano, os recursos da casa e as relações familiares parece ressoar e organizar um cuidado que se pretende “biopsicossocial”. Tais diagnósticos não serviam apenas para categorizar um caso e pensar nos motivos para o tratamento não funcionar de modo ideal, eles orientavam e interferiam nas escolhas por intervenções multidisciplinares. Uma dessas intervenções propostas pela equipe foi que Rosamaria frequentasse os grupos de apoio a cuidadoras oferecidos pelo Centro. Eram grupos mediados por profissionais da psicologia, serviço social ou enfermagem. Para Rosamaria, foram indicados em razão de dois propósitos: “compartilhar sofrimentos” e “aceitar a doença”. A ideia de “compartilhar sofrimento” partia do pressuposto de que falar sobre dilemas pessoais e ouvir quem passava por situações parecidas ajudaria na lida emocional com os próprios sentimentos e com o cotidiano. “Aceitar a doença” era parecido, mas tinha ainda outras dimensões. Envolvia ouvir mediadores e familiares que conviviam há anos com um diagnóstico falarem sobre sintomas que caracterizam a doença e não a vontade da pessoa; partilharem estratégias para lidar com comportamentos e com o fato de que isso não iria mudar e nem teria cura. E, então, aceitar que uma doença estava em curso, um papel de cuidado e uma identidade como cuidadora. E, por fim, aceitar a lógica do cuidado oferecido naquele contexto.

Rosamaria nunca foi a um desses grupos. Para ela, não fazia sentido comprometer mais o seu tempo com outro compromisso. Conhecendo-a melhor depois, ela me explicou que precisava de gente com ela, no dia a dia, e não conseguia ver como sair do seu trabalho, ou deixar seu marido só, poderia ajudá-la. Ela não era a única a pensar assim. Mas as experiências variavam. Conheci muita gente que encontrava um sentido coletivo em falar e ouvir sobre situações parecidas e em se agregar afetiva e politicamente a partir de uma identidade como a de cuidadora de uma pessoa com demência. Como Rosamaria se negou a ir aos grupos e continuava expressando sofrimento em relação ao que se chamavam sintomas, era comum dizer que ela “não aceitava” a doença.

Outra intervenção mediada pelo centro - especialmente pela assistente social - envolvia lidar com certas burocracias para acessar direitos públicos. Primeiro, a aposentadoria. Horácio não estava em idade de se aposentar, e sua atividade como autônomo fazia com que seus anos de contribuição fossem confusos. Conseguiram aposentá-lo “por invalidez” e, para tanto, foi necessário provar com relatórios médicos e visitas a outros órgãos públicos que Horácio não podia ser “responsável por si”. Processo que foi doloroso e tortuoso. Talvez por isto, mas também porque Horácio expressivamente pediu a Rosamaria que ela esperasse o máximo possível, ela demorou a fazer um outro procedimento: o de “interdição legal”. Tratava-se de retirar os direitos civis do sujeito, alegando sua “incapacidade cognitiva”, e passando tais direitos para outra pessoa: uma curadora (que poderia ser a cuidadora principal ou outra pessoa da família).

De acordo com o Centro, tal procedimento poderia ajudá-la a conseguir outros benefícios e facilidades no cotidiano. Ao assumir a curadoria, Rosamaria poderia movimentar as finanças de Horácio sem sua presença, responder por ele e assumir, legalmente, a função de uma pessoa civilmente responsável por outra. Isto resolveria a questão do dinheiro para contratar uma cuidadora, sem passar necessariamente pela resolução do conflito com os filhos. Ela, contudo, sentia que o marido poderia se ressentir, especialmente por já andar desconfiado de que estava sendo roubado pelos que o circulavam. Rosamaria me contou, ainda, que Horácio pediu a ela, expressamente, para não o interditar enquanto ele tivesse “noção das coisas”. Para os profissionais, ele já não teria essa noção, mas, para Rosamaria, ele tinha sim. Ela acabou fazendo a interdição quando Horácio ficou acamado - muito depois do que os profissionais julgaram razoável.

Esse tipo de mediação e intervenção burocrática parecia tentar resolver questões financeiras, seja pelo acesso facilitado a serviços e tecnologias do SUS, seja pela garantia de aposentadorias e redução de impostos a serem pagos. Mais que isso, caso Rosamaria resolvesse esses imbróglios burocráticos, ela poderia entrar na Justiça para garantir outros direitos, como: pensão por parte dos filhos, judicialização de medicamentos e tecnologias. Rosamaria nunca tinha lidado com esse universo antes, demorou para que ela se familiarizasse e conseguisse tempo para correr atrás de tudo o que ele demandava. Essa lentidão também entrava no olhar clínico como algo que dificultava seu atendimento. Ela parecia não acolher a terapia que lhe era ofertada em um outro nível. O “caso difícil” ganhava mais e mais camadas.

Havia uma filosofia geral de “bom cuidado” circulando, que não necessariamente era acordada por todos os profissionais da mesma forma, mas que era sustentada como ideal. Tratava-se da ideia de que seria melhor medicar menos e cuidar bem em casa - o que garantiria qualidade de vida. Isto não queria dizer parar de medicar, ou sustentar um discurso antimedicamentoso, mas medicar com certo conservadorismo. Reconheciam-se perigos envolvendo a quantidade de medicação: variáveis demais. Entre esses perigos estavam situações como a interferência de um medicamento no outro, a experiência de reações negativas, o enfraquecimento de órgãos e a piora dos sintomas da demência. Assim, seria importante tentar lidar com sintomas preferencialmente a partir de outras tecnologias e, especialmente, do “bom cuidado” cotidiano.

Ao se manejarem categorias como “sobrecarga da cuidadora” e “insuficiência familiar”, tal “bom cuidado” era colocado em suspeita e medicamentos psicotrópicos pareciam entrar em cena para remediar consequências. Especialmente para garantir que o abandono não acontecesse. Na primeira vez em que Rosamaria expressou seu sofrimento em lidar com os ciúmes e as desconfianças do marido, receitaram-lhe um antipsicótico. Isto porque a lida dela com o sentimento de cuidar estaria muito custosa e era necessário que ela ficasse menos sobrecarregada para continuar cuidando. O antipsicótico poderia acalmar Horácio - acalmar, por conseguinte, o “conjunto”. O sintoma era reconhecido como parte da doença, um “sintoma comportamental”, mas a intervenção parecia ser orientada pelo modo como a cuidadora se sentia com o sintoma e como o que ela sentia poderia interferir no cuidado.

O remédio não deu certo, Horácio não se deu bem com ele. Retiraram-no. Nas consultas, Rosamaria continuava narrando como seu marido expressava ciúmes e desconfianças e como, ainda, estava triste e cabisbaixo, as receitas de antipsicótico continuaram sendo uma constante alternativa. E as de um antidepressivo também. Experimentar tais medicamentos envolvia uma queda-de-braço entre o que Rosamaria queria que fosse resolvido, os efeitos dos medicamentos para Horácio e a expectativa de bom cuidado do centro. A medida de medicar mais ou menos era uma medida que tinha relação com a performance de sofrimento categorizada como sobrecarga, o que, um dia, vi ser nomeado por uma profissional como o “desejo da família”. Nas palavras de uma médica:

A gente medica muito de acordo com a família, às vezes a pessoa tem delírio e agressividade, mas a família diz que está bem, que prefere não medicar, até a gente estranha porque acha que seria melhor medicar; mas às vezes é muito pesado para a família, aí então a gente medica.

Contudo, Rosamaria reclamava que seu marido ficava “dopado” com o antipsicótico, ou seja, mole demais, dormindo o dia todo, quase sem reação. Não parecia ser esta a vontade dela. Mas era o que, eventualmente, acontecia ao experimentar alguns dos medicamentos. Ouvi ainda de vários profissionais que, por vezes, era possível perceber que familiares queriam dopar as pessoas com demência, deixando-as quase sem reação. Havia casos, inclusive, em que temiam o desejo de familiares de usar medicamentos como veneno. Assim, nem sempre eles acolhiam o desejo familiar. Ao mesmo tempo, a responsabilidade pelo dopamento “aceitável” facilmente era entendida como da família - relativa ao desejo da família.8 8 Tematizei de forma densa tal ideia de responsabilidade em outro momento (Engel 2020).

Quanto mais Rosamaria e Horácio eram fixados como um “caso difícil”, determinados medicamentos entravam como uma forma de apaziguar - sem resolver - as dificuldades. Lembro de um dia em que foi receitado, pela primeira vez, um remédio para dormir: o clonazepan. Rosamaria já havia expressado a vontade de ter um remédio para dormir. Conhecia o clonazepan, toda a sua vizinhança o conhecia: uma substância popularizada para lidar com falta de sono e diversas outras pressões sociais (Silveira 2000SILVEIRA, Maria. 2000. O nervo fala, o nervo cala: a linguagem da doença. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.; Maluf 2010MALUF, Sônia. 2010. “Gênero, saúde e aflição: políticas públicas, ativismo e experiências sociais”. In: S. Maluf & C. Tornquist (orgs.), Gênero, saúde e aflição: abordagens antropológicas. Florianópolis: Letras Contemporâneas. pp. 21-68. ). Quando o clonazepan foi receitado, contudo, Horácio estava em uma situação mais tranquila, sem perder o sono. Ele foi sugerido como última alternativa para lidar com o sofrimento crônico expressado por Rosamaria e com a falta de resolução dele, dada a “insuficiência familiar” e o fato de que ela “não aceitava a doença”. O clonazepan era especialmente mal visto naquele contexto, considerado um medicamento “impróprio para idosos”9 9 Existe uma lista internacional de medicamentos impróprios para idosos, chama-se Beers (AGS 2015) e ela inclui o clonazepan e similares, assim como alguns antidepressivos (como a fluoxetina e a amitriptilina) e os antipsicóticos. Essa lista é avaliada nacionalmente, existem consensos locais sobre o uso de tais medicamentos, dependendo da condição e das doenças experimentadas (Oliveira et al. 2016). e cheio de variáveis difíceis para o cuidado. Era, contudo, um recurso potente de “acalmar sintomas” utilizado para mediar dilemas para os quais não se conseguia, com as tecnologias empregadas, resolução. E, como entendo, eram medicamentos que se relacionavam com as categorias de “sobrecarga da cuidadora” e “insuficiência familiar” na receita.

Nesse sentido, o cruzamento dessas variáveis do cuidado e da família com o excesso de medicamentos era consideravelmente comum. Em poucas e sintéticas palavras: o bom cuidado manejado pelo centro dependia do cuidado doméstico bem compartilhado e emotivamente tranquilo e de determinada renda, ao não se alcançarem tais objetivos a partir de um conjunto de intervenções, o caso, ou melhor, a família era diagnosticada de modo perene como insuficiente. Isto poderia resultar em mais medicação. A quantidade de medicamentos tornava o caso mais difícil e, assim, um ciclo parecia se cristalizar.

Conclusão

Tal geriatria multidisciplinar coloca em cena lógicas de cuidado semelhantes às de outras clínicas: diagnostica, encontra causalidades, divide-as em tipos, testa intervenções (Mol 2002MOL, Annemarie. 2002. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press. ). Investigamos, com o texto, a especificidade dos objetos dessa clínica, ou seja, qual o conjunto de elementos que formam o que se entende por sintoma, causa e tratamento proposto. A partir dessa imersão, Mol (2002MOL, Annemarie. 2002. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press. ) nos sugere ainda abrir mão da busca por conclusões que toquem a questão: o conhecimento é adequado para seus objetos? - pergunta que tem movimentado os debates internos e externos sobre a geriatria e a gerontologia com frequência (Lopes 2000LOPES, Andrea. 2000. Os desafios da gerontologia no Brasil. Campinas: Alínea.; Guedes 2000GUEDES, Simoni. 2000. “A concepção sobre a família na geriatria e na gerontologia brasileiras: ecos dos dilemas da multidisciplinaridade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15 (43):69-82. ; Debert 2012DEBERT, Guita. 2012. “Imigrantes, Estado e Família: o cuidado de idosos e suas vicissitudes”. In: H. Hirata & N. Guimarães (orgs.), Cuidado e Cuidadoras: as várias faces do trabalho de care. São Paulo: Atlas. pp. 216-233.; Cohen 1992COHEN, Lawrence. 1992. “No aging in India: The uses of gerontology”. Culture, Medicine and Psychiatry, 16 (2):123-161. ). A autora propõe que o esforço etnográfico lide com outra questão: o cuidado em cena é bom para os que nele estão engajados?

Por um lado, acessar um cuidado que coordena tantas possíveis causas e soluções é constantemente bem avaliado por todos que passam pelo Centro: de residentes a frequentadores, de pesquisadores a jornalistas. As pessoas que frequentam o Centro tendem a avaliá-lo como melhor do que outras instituições que acessam, inclusive particulares. É comum ainda observar muita confiança entre os familiares e os geriatras que os atendem, o que nem sempre ocorre com outras especialidades. Por outro lado, contudo, para famílias com renda menor, configuradas com poucas pessoas, com histórias de conflitos internos ou para mulheres que não se conformam à identidade “cuidadora” de modo unívoco, parece que o cuidado se distancia do que é considerado bom pelos geriatras e gerontólogos envolvidos nele. E, nesse caso, uma série de categorias morais vão justificando decisões que são reconhecidas como indesejáveis. Um dia ouvi de um médico sobre uma mulher que não teve filhos e reclamava de solidão e da agonia que sentia ao lembrar de suas dívidas que “esse é um problema social, não tem como um médico resolver”. Há uma clareza na delimitação dos limites do cuidado praticado, mesmo que o “social” faça parte do escopo.

Um dos limites reconhecidos é o excesso medicamentoso na relação com dilemas familiares. Semelhante ao observado em outros contextos, as relações, os conflitos e as dinâmicas familiares são considerados para a medida ou a receita dos medicamentos psicotrópicos (Biehl 2005BIEHL, João. 2005. Vita: life in a zone of social abandonment. London: University of California Press. ). Biehl (2005BIEHL, João. 2005. Vita: life in a zone of social abandonment. London: University of California Press. ) acompanhou o uso de tais medicamentos para lidar com diversificadas questões em um ambiente pós-reforma psiquiátrica no Brasil. Para o autor, medicamentos são fornecidos a famílias como estratégia para manejar dilemas sociais que geram sofrimento, sem diagnósticos claros de doenças. Nesse contexto, as famílias funcionariam progressivamente como agentes médicos do Estado. Com acesso a medicamentos, seriam elas que manejariam os humores de determinados membros - medicamentos, assim, funcionariam como tecnologias morais. Em relação aos mais pobres, especialmente, o tratamento seria comumente pior (porque excessivo), guiado por maiores intervenções morais nas dinâmicas. Para o autor, há em curso uma “desbiologização da patologia” e uma “sociologização do sofrimento”.

No caso em tela, afirmar que a família tem acesso e mede humores no diálogo com psicotrópicos receitados é inegável. Mas não diria que se trata de um processo que simplesmente desloca a medicação a partir de critérios “não médicos” ou “não físicos” no caso da geriatria. Isto envolveria partir do pressuposto de que o objeto de intervenção desses medicamentos era, em algum momento, apenas físico. E que há uma fragmentação ou quebra desse objeto com base na inserção de critérios “sociológicos”. No caso de uma geriatria multidisciplinar, o mundo social, os critérios morais de relação e lida com o envelhecimento e a convivência familiar são incluídos no escopo do que se diagnostica e trata. A categoria do “conjunto” agrega essas dimensões, as demências são tratadas em relação ao “conjunto” e os medicamentos passam pelo cálculo de como melhor estabilizar esse “conjunto”.

Acredito, ainda, que nesse contexto é apressado olhar para a família simplesmente como aliada do Estado enquanto agente de intervenção moral. A família (ela mesma) é um dos objetos centrais de intervenção - inclusive medicamentosa. Tanto os afetos como a renda familiar são relacionados à demência. Mais que isso, diagnósticos relativos à sua organização, afetos internos, renda e concordância com o cuidado proposto modelam as intervenções. Medicam-se famílias porque a família é uma das unidades básicas do tratamento biopsicossocial - e não o indivíduo, como em outros contextos (Dias Duarte 2003DIAS DUARTE, Luís Fernando. 2003. “Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença”. Ciência e Saúde Coletiva, 8 (1):173-183. ). Tendo em conta a popularidade do termo biopsicossocial no SUS (Bonet 2014BONET, Octavio. 2014. Os médicos da pessoa: Um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 letras.), suponho que tal conclusão possa ser levada ainda a outros contextos.

No ideal de cuidado narrado, a família é um dos elementos do objeto “demências”. E das demências como parte do “envelhecimento”. É um dos elementos centrais de uma categoria que coordena o cuidado das demências: o “conjunto”. Nesse sentido, intervenções em “mazelas” familiares fazem parte central do cuidado. Na “família” são manejados aspectos do cuidado que seriam relativos aos sentimentos dos envolvidos, às condições financeiras, às relações afetivas e de parentesco. Nesse manejo são incluídos ideais e, em contraposição a eles, desvios: “insuficiência familiar”, “sobrecarga da cuidadora”, “não aceitação” da terapia (que envolve, inclusive, não saber acessar todas as garantias de renda disponíveis). No fim, tais categorias são uma das possibilidades que transformam o caso em um “caso difícil”, ou seja, um caso no qual o cuidado encontra muitos dilemas para ser levado adiante de forma compreendida contextualmente como positiva.

Esse distanciamento do ideal não é incomum, ele é esperado: “casos difíceis” não são raros. O uso intenso de medicamentos convive com um ideal conservador de sua aplicação. Tal uso intenso está relacionado a um elemento que não se consegue resolver em outras instâncias, como grupos de cuidado, acesso a direitos e renda. Mas essa falta de resolução não se traduz, necessariamente, em um reconhecimento de que tal lógica de cuidado tem falhas, ou pontos cegos estruturais. Do contrário, quando algo dá errado, quem é cronificado é a cuidadora ou a família (como instâncias privadas), não o Estado, ou o capitalismo, ou a comunidade - outros elementos presentes no discurso político da gerontologia e da geriatria.10 10 Apesar disso, tal crítica tem orientado um discurso mais atual dentro da gerontologia brasileira (Giacomin 2018). O excesso de medicamentos acaba sendo apaziguado internamente como algo sobre o qual não se tem total controle - que é, no fim, do “desejo das famílias”, ou algo que é de sua responsabilidade. Então, apesar da família ser parte do objeto de intervenção clínica, o que dá errado é entendido como de sua responsabilidade privada. Aqui, me parece, há sim um deslocamento: o da culpa (Das 2015DAS, Veena. 2015. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press. ), deslocamento este que situa a falha do cuidado no “problema social”, que vimos ser mais um “problema dos pobres”.

Enquanto parte do “conjunto”, a família é incluída no objeto demências, no desenrolar de seus sintomas e, consequentemente, na definição das receitas medicamentosas. Pelo menos no caso da geriatria, não se trata de um deslocamento ou uma fragmentação do objeto, mas sim de uma elaboração singular do que faz parte de uma intervenção “biopsicossocial”. Enquanto objeto clínico, o escrutínio das relações familiares também justifica e delimita para que tipo de sujeitos o cuidado vai se aproximar do ideal proposto e, para os quais ele não irá. Talvez mais potente do que incluir o mundo social e a família no escopo biomédico como elementos a serem diagnosticados e patologizados, seja refletir sobre as transformações sociais necessárias para ampliar redes de cuidado.

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  • 1
    Mol (2002MOL, Annemarie. 2002. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press. ) tem proposto os prontuários como elementos ricos para a etnografia, segui o conselho de utilizá-los assim.
  • 2
    Tal presença, contudo, ainda é pequena, e está concentrada na região Sudeste.
  • 3
    As demências raramente são curáveis em qualquer contexto biomédico, com exceção de algumas doenças que podem ser revertidas. Além disso, em contextos de pesquisa, curas para doenças como o Alzheimer são almejadas e, eventualmente, realizadas pontualmente.
  • 4
    O mapeamento de problemas cardiovasculares faz parte do diagnóstico da Doença de Alzheimer. Isso para descartar qualquer doença cardiovascular como causa dos sintomas.
  • 5
    Ballenger (2009BALLENGER, Jesse. 2009. “Necessary interventions: antidementia drugs and heightened expectations for aging in modern American Culture”. In: J. Ballenger et al. (org.), Treating dementia: do we have a pill for it? Baltimore: The Johns Hopkins University Press. pp. 189-209.) defende que, em 1970, mesma década da popularização da Doença de Alzheimer, vários laboratórios apresentaram dados para sustentar a hipótese de que, junto com os processos da demência senil, havia um déficit do neurotransmissor chamado acetilcolina. Um medicamento que aumentasse a quantidade desse neurotransmissor, então, seria positivo. Tese que ficou conhecida como “hipótese colinérgica”. Os medicamentos específicos para a Doença de Alzheimer se relacionam com essa versão das demências.
  • 6
    Dentro das ciências sociais existem críticas sobre o papel que as narrativas de sofrimento e de peso do cuidado causaram em termos de percepção pública das relações com a demência (Beard 2004BEARD, Renee. 2004. “Advocating voice: organizational, historical and social milieux of the Alzheimer’s disease movement”. Sociology of Health and Illness, 26 (6):797-819. ; Behuniak 2011BEHUNIAK, Susan. 2011. “The Living Dead? The Construction of People with Alzheimer’s Disease as Zombies”. Ageing & Society, 31:70-92. ). Em determinados contextos, associações de cuidadores e de profissionais foram acusadas de fazer parte de uma produção excessivamente negativa em relação à experiência com o Alzheimer e com as demências (Beard 2004BEARD, Renee. 2004. “Advocating voice: organizational, historical and social milieux of the Alzheimer’s disease movement”. Sociology of Health and Illness, 26 (6):797-819. ; Taylor 2017). Para Leibing (2019LEIBING, Annette. 2019. “Geriatrics and humanism: Dementia and fallacies of care”. Journal of Aging Studies, 51:1-7. ), as narrativas sobre o peso do cuidado podem ainda funcionar de outra forma: sustentando contos heroicos de um “cuidado total”, exercido por sujeitos que abandonam tudo e se dedicam intensamente, superando quaisquer dificuldades a partir do sacrifício.
  • 7
    Categoria inclusive adotada e manejada por Biehl (2005BIEHL, João. 2005. Vita: life in a zone of social abandonment. London: University of California Press. )
  • 8
    Tematizei de forma densa tal ideia de responsabilidade em outro momento (Engel 2020ENGEL, Cíntia. 2020. Partilha e cuidado das demências: entre interações medicamentosas e rotinas. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade de Brasília.).
  • 9
    Existe uma lista internacional de medicamentos impróprios para idosos, chama-se Beers (AGS 2015) e ela inclui o clonazepan e similares, assim como alguns antidepressivos (como a fluoxetina e a amitriptilina) e os antipsicóticos. Essa lista é avaliada nacionalmente, existem consensos locais sobre o uso de tais medicamentos, dependendo da condição e das doenças experimentadas (Oliveira et al. 2016OLIVEIRA, Márcio; AMORIM, Welma; OLIVEIRA, Caroline; COQUEIRO, Hérica; GUSMÃO, Letícia & PASSOS, Luiz Carlos. 2016. “Consenso brasileiro de medicamentos potencialmente inapropriados para idosos”. Geriatrics, Gerontology and Aging, 10 (4):168-181. ).
  • 10
    Apesar disso, tal crítica tem orientado um discurso mais atual dentro da gerontologia brasileira (Giacomin 2018GIACOMIN, Karla. 2018. “Contradições do Estado brasileiro ante o envelhecimento do seu povo”. Argumentum, 6 (1):22-33.).
  • Financiamento

    A autora agradece a bolsa de doutorado oferecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, a bolsa de doutorado sanduíche fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES e o apoio e infraestrutura disponibilizada pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2020
  • Aceito
    04 Jan 2023
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