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Dois violinistas e uma orquestra: diversidade operatória e desgaste músculo-esquelético

Two violinists and one orchestra: different ways of working and musculoskeletal disorders

Resumos

Frente às demandas de compreensão e prevenção dos processos de adoecimento músculo-esquelético em músicos, este artigo objetiva mostrar as diferenças entre os modos operatórios de dois violinistas de uma orquestra sinfônica a partir de suas relações com os seguintes condicionantes da atividade: as exigências do maestro, a obra musical e a partitura. Os dados foram coletados a partir da observação da atividade nas situações de ensaio da orquestra, durante a produção de uma ópera musical, acompanhada de entrevistas. Os resultados mostram que as relações que se estabelecem entre os músicos e esses condicionantes traduzem estratégias operatórias distintas e formas singulares de uso do corpo e conseqüente desgaste músculo-esquelético.

músico; orquestra; uso do corpo; desgaste músculo-esquelético


According to the understanding demands and prevention of the processes of musculoskeletal disorders in musicians, the aim of this article is to show the differences between the operating ways of two violinists of a symphonic orchestra from its relations with the conditions of the activity: the requirements of the conductor, the musical workmanship and the partition. Information had been collected from the observation of the activity in the situations of rehearsal of the orchestra, during the production of an opera, followed by interviews. The results show that the relations between the musicians and these conditions show distinct strategies and personal forms of use of the body and consequent musculoskeletal disorders.

musician; orchestra; use of the body; musculoskeletal disorders


Dois violinistas e uma orquestra: diversidade operatória e desgaste músculo-esquelético

Two violinists and one orchestra: different ways of working and musculoskeletal disorders

Ângela Márcia Ferreira PetrusI; Eliza Helena de Oliveira EchternachtII

IMestranda do Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais

IIProfessora adjunta do Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

Frente às demandas de compreensão e prevenção dos processos de adoecimento músculo-esquelético em músicos, este artigo objetiva mostrar as diferenças entre os modos operatórios de dois violinistas de uma orquestra sinfônica a partir de suas relações com os seguintes condicionantes da atividade: as exigências do maestro, a obra musical e a partitura. Os dados foram coletados a partir da observação da atividade nas situações de ensaio da orquestra, durante a produção de uma ópera musical, acompanhada de entrevistas. Os resultados mostram que as relações que se estabelecem entre os músicos e esses condicionantes traduzem estratégias operatórias distintas e formas singulares de uso do corpo e conseqüente desgaste músculo-esquelético.

Palavras-chave: músico, orquestra, uso do corpo, desgaste músculo-esquelético.

ABSTRACT

According to the understanding demands and prevention of the processes of musculoskeletal disorders in musicians, the aim of this article is to show the differences between the operating ways of two violinists of a symphonic orchestra from its relations with the conditions of the activity: the requirements of the conductor, the musical workmanship and the partition. Information had been collected from the observation of the activity in the situations of rehearsal of the orchestra, during the production of an opera, followed by interviews. The results show that the relations between the musicians and these conditions show distinct strategies and personal forms of use of the body and consequent musculoskeletal disorders.

Keywords: musician, orchestra, use of the body, musculoskeletal disorders.

Contexto

A atividade de trabalho do músico de uma orquestra exige concentração, atenção, memória, precisão, força, sincronia, criativdade, disciplina, dedicação, singularidade e cooperação, exigências essas direcionadas por uma hierarquia rígida que define as funções e os limites da ação de cada musicista.

No contexto da produção musical, é crescente o número de instrumentistas que vêm apresentando queixas de dor e distúrbios músculo-esqueléticos relacionados à atividade de trabalho (Lederman, 1986; Hoppmann 1989; Lockwood, 1989, Gonik, 1991). Ser músico tornou-se uma profissão de risco.

Para tentar compreender esse aspecto da produção musical, um estudo foi desenvolvido em uma orquestra sinfônica visando a identificar os principais condicionantes do uso do corpo em suas categorias patogênicas. Neste artigo, as especificidades dos modos operatórios de dois especialistas em um mesmo contexto produtivo serão apresentadas e discutidas.

Metodologia

O estudo é realizado em uma Orquestra Sinfônica Estadual de Minas Gerais e referencia-se na Análise Ergonômica do Trabalho (Guérin et al., 1991). A atividade dos violinistas foi observada durante três ensaios relacionados à produção de uma ópera.

Os ensaios foram escolhidos como momento privilegiado para as observações da atividade porque o processo de construção de um concerto ocorre durante esse período: lapidação da harmonia, da dinâmica, do ritmo, da intensidade sonora.

O foco das observações centra-se nas interfaces dos músicos com o maestro, com os outros instrumentistas, com a obra musical e com a partitura. Após a coleta dos dados, foram realizadas confrontações com os violinistas.

A orquestra sinfônica

A orquestra é constituída por naipes, que são agrupamentos de instrumentos musicais específicos. Esses naipes se dividem em grupos das cordas (violinos, violas, violoncelos e contrabaixos), grupo das madeiras e metais (instrumentos de sopro) e grupo de percussão. O trabalho do músico passa pelas etapas de interpretação das orientações do maestro, leitura da partitura, extração dos sons no instrumento e integração com o seu naipe e os outros naipes de instrumentos, tendo como resultado a produção da música. Todas essas etapas, embora se constituam em tarefas independentes, ocorrem sincronicamente, o que exige do músico a aquisição de competências específicas, que passam pelo desenvolvimento das percepções visual e auditiva, pela coordenação motora, pela técnica instrumental, pela atenção, pela memória musical, pela disciplina e pela cooperação.

A divisão do trabalho obedece uma estrutura hierárquica em que os cargos dos músicos são diferenciados tanto em funções quanto em remuneração. Ao maestro (titular ou convidado) cabe a elaboração do cronograma de trabalho e o desenvolvimento das atividades propostas. O spalla (o primeiro violinista) é o músico responsável pelo naipe dos violinos, por auxiliar o maestro (inclusive substituí-lo se necessário), colaborar na elaboração da programação musical, conduzir os trabalhos de afinação da orquestra e indicação da arcada (posição dos arcos) para os instrumentos de corda. O concertino, músico que senta na primeira estante, ao lado do spalla, é responsável por auxiliá-lo ou substituí-lo se necessário. Aos chefes de naipe cabe coordenar as atividades conjuntamente com o maestro e o spalla, posicionar os músicos do seu naipe, coordenar a disciplina e a assiduidade. Os demais músicos da orquestra, chamados "músicos de fila" (tutti), devem seguir as orientações determinadas pelo maestro, pelo spalla e pelo chefe de naipe de seu respectivo agrupamento instrumental.

Na orquestra analisada, os instrumentos musicais pertencem aos músicos, sendo responsabilidade de cada um realizar sua manutenção e deslocá-lo até o local de trabalho. As partituras da obra musical a ser executada e os instrumentos de grande porte, como piano, harpa, tímpanos, percussão e contrabaixo, são disponibilizados pela orquestra aos musicistas para a realização da atividade. O ambiente de trabalho diário (salão de ensaios) possui uma estrutura planejada de acústica (teto e paredes laterais), sistema de ar condicionado e iluminação fluorescente (bem distribuídos no ambiente). Os postos de trabalhos constam de uma cadeira rígida e uma estante de madeira. A carga horária de trabalho consiste em uma jornada de 15 horas semanais, sendo que a remuneração atual é uma das mais baixas entre as orquestras do país, o que leva a maioria dos músicos a realizarem uma complementação de renda com outras atividades (atividades acadêmicas, apresentações em eventos, casamentos etc.).

Os segundos violinos

Os violinos são os instrumentos de som mais agudos da família das cordas e situam-se, habitualmente, à esquerda do regente, sendo encabeçados pelo spalla. A eles pertence a maior parte do melos que percorre a partitura e deles depende a maior parte do impacto emotivo da mensagem musical (Magnani, 1989). Na orquestra, são divididos em dois grupos, os primeiros e os segundos violinos. A divisão do trabalho entre os primeiros e os segundos violinos ocorre de acordo com a partitura da obra musical, na qual realizam uma espécie de primeira e segunda voz; na maioria das vezes, os segundos violinos fazem um acompanhamento do som dos primeiros violinos, embora o contrário também possa ocorrer.

Os segundos violinistas observados são músicos que têm como função executar as determinações transmitidas pelo maestro, o spalla e o chefe de naipe do seu agrupamento. O violinista A possui quinze anos de experiência na orquestra, tem uma formação musical acadêmica (incompleta) e, além da orquestra, às vezes realiza apresentações em eventos. O violinista B tem quinze anos de experiência na orquestra, teve uma formação musical acadêmica (incompleta) e, além da orquestra, também se dedica a apresentações em eventos, casamentos, cachês de gravação etc. (carga horária de duas horas semanais).

A atividade

A obra musical em preparação pela orquestra é uma ópera (peça teatral cantada, com o acompanhamento de uma orquestra), considerada um gênero musical complexo, uma vez que envolve todo o contingente instrumental da orquestra e a interação dos solistas. A complexidade da obra e o fato de ser uma peça nova para essa orquestra se refletem em maior solicitação no desempenho dos músicos quanto à aprendizagem e ao domínio do instrumento e das interações entre os músicos e o maestro.

As interfaces com a partitura

A partitura da obra orienta de forma gráfica a composição musical. A interpretação dessa simbologia exige do instrumentista uma representação visual e sonora, na medida em que precisa executar o registro escrito e ao mesmo tempo construir uma melodia individual e coletiva.

Ao observar os modos operatórios dos instrumentistas, verificamos que o violinista A permanece a maioria do tempo fixando a parte, mesmo nos períodos em que não estava tocando, e realiza diversas anotações na mesma. O violinista B fixa-se à parte no momento de tocar, sendo que, nos períodos em que não está tocando, desvia seu olhar para outras direções, também realizando anotações na partitura, em menor número.

As posturas corporais adotadas pelo violinista B mostram-se mais diversificadas em relação aos movimentos da região cervical e dos membros inferiores, enquanto que no violinista A o padrão postural apresenta-se mais estático. Através de suas verbalizações podemos compreender o significado de tais comportamentos:

Violinista A

"... eu tenho a necessidade de ler a parte mesmo quando não estou tocando, porque continuo vivenciando a melodia e, quando chega o momento de entrar eu não estou frio; eu até consigo entrar certo se eu não acompanhar tudo, mas o meu som fica sem vida. A atenção à parte é necessária, mas o mais importante é a função auditiva, pois se o maestro errar e você não está ligado no que está acontecendo, a orquestra não consegue segurar. As anotações ajudam a reforçar o que está sendo exigido naquele trecho da obra; sempre que necessário ou quando é solicitado eu faço as observações."

Violinista B

"... eu prefiro ouvir o que está acontecendo a nível harmônico, a parte é uma representação gráfica do som e quando a gente está em dia com ela, não precisa ficar o tempo todo fixado nela. Quando eu estudo em casa, eu faço todas as anotações que julgo importantes, assim a gente acaba memorizando e absorvendo a partitura, assim, na hora do ensaio, posso ficar mais livre. Mas pode acontecer de anotar se o maestro ou spalla mudar ou orientar algo. Aliás, acontece muito do spalla colocar aquele tanto de anotações e no decorrer do ensaio precisa tirar, pois acaba ficando mesmo só o necessário, o que já deveria ser desde o início."

As anotações na partitura correspondem às orientações que o maestro realiza sobre determinado compasso, o que facilita alcançar os resultados desejados. Como dividem a mesma partitura, as anotações também são compartilhadas. A possibilidade de verbalização entre os músicos durante os ensaios revela trocas de representações sobre a partitura e a forma de extração de sons no instrumento.

As interfaces com o maestro

O maestro, ao longo dos ensaios, exige qualidade técnica e obediência às suas determinações através de verbalizações, gestos e solfejos. Tal relação se processa ora de modo cordial, ora autoritário.

Durante um determinado trecho, o naipe dos violinos não consegue extrair o som exato solicitado pelo maestro. Realizam várias repetições do mesmo compasso, o que gera uma certa irritabilidade em todos. O maestro insiste dizendo:

"... Eu não posso perder tempo falando a mesma coisa. N° 19, por favor, escrevam pianissimo. Pela terceira e última vez, heim!"

"... Tá muito longe de ficar bom. Todo mundo estude mais. Não me faça a indelicadeza de expor ninguém; pois eu vejo quem está tocando."

"... Pela primeira vez conseguimos fazer no tempo certo. Mas a dinâmica esta absurdamente forte. Ou a gente faz isso pianissimo ou não sai."

Tornam-se evidentes as dificuldades em atingir os resultados desejados e a tensão gerada. Nesse momento, os dois violinistas observados realizam ações completamente distintas: O instrumentista A fixa seu olhar na partitura e nas orientações do maestro, repetindo os trechos do compasso. O violinista B interrompe a atividade, não executa as repetições solicitadas e observa a partitura atentamente. Após, interage com outros músicos e executa uma função que não lhe cabia: identifica a origem do problema, situada em um erro na partitura. Respeitando a hierarquia, pede que a informação seja repassada ao chefe de naipe.

Ao questionar seus comportamentos, obtivemos as seguintes respostas:

Violinista A

"... aquele trecho é difícil, pois exige movimentos muito rápidos e suaves; quando o maestro pedia para repetir, eu queria acertar. Mas é necessário aprender a conviver o máximo com o erro, acredito que a falha é passível de acontecer, ela só não deve ser por incapacidade... mas quando erro eu me irrito, fico com a musculatura tensa, às vezes paro de tocar e pego o compasso seguinte, para não atrapalhar o colega."

Violinista B

"... quando tudo começou a desandar e ficou aquela repetição exaustiva, fiquei prestando mais atenção no que os 2os violinos estavam tocando, pois naquele trecho também estavam tocando os chelos e as violas, assim tentei identificar o que estava acontecendo... por isso parei de tocar e segui a partitura ouvindo o fio melódico. Observei uma arcada, que parecia ser o problema, comentei com outros colegas que confirmaram minhas suspeitas e avisei para a colega solicitar ao chefe de naipe para modificar. A cooperação dinamiza o nosso trabalho."

A capacidade diagnóstica e a tomada de decisão do violinista B interrompe o ciclo de repetições e proporciona o andamento do ensaio, resultando em alívio das exigências.

As interfaces com o colega

A produção musical conjuga um esforço individual e coletivo que tem como meta a harmonização dos sons para a realização da música. A inserção dessa atividade no quadro de trabalho coletivo se caracteriza pelas articulações das relações sociais em uma dimensão vertical (os níveis de hierarquia dentro da orquestra) e em uma dimensão horizontal (relação entre os pares, relação dentro do naipe e relação com os demais naipes de instrumentos da orquestra). Para compreender os bastidores dessas relações, faz-se necessário observar as especificidades de cada agrupamento instrumental. Na orquestra observada, o naipe dos violinos representa o agrupamento com mais problemas relacionais internos (as interfaces com os colegas). A diversidade do modo operatório exemplifica um dos problemas enfrentados por esses musicistas. O fato de trabalharem em pares, dividirem o mesmo posto de trabalho (a estante com a partitura) e não possuírem um posicionamento definido (o maestro determina os pares e a posição na fila) mostra que é necessário um ajuste entre os violinistas, o que exige algumas vezes mudanças de comportamento para conseguirem executar suas tarefas. Durante os ensaios, os violinistas observados modificaram por várias vezes a posição da estante e da cadeira, o que algumas vezes não agradou o colega, pois eles imediatamente mudavam a disposição colocada, demonstrando insatisfação. Através de suas verbalizações podemos compreender o significado de tais comportamentos:

Violinista A

"... A localização da cadeira e da partitura é feita de acordo com a visão, ou seja, precisa ter um equilíbrio visual entre a partitura e o maestro. Assim a gente define um ponto que é adequado para ambos. Por isso é preciso ter cooperação e jogo de cintura para se adaptar ao momento. Isso envolve muita coisa, por exemplo, se o colega escolhe os óculos errado, fica difícil da gente se equalizar, o que pode prejudicar o desempenho e gerar atritos."

Violinista B

"... quando o colega desloca a estante mais para o lado dele, perco um pouco o eixo da posição natural com o instrumento e preciso compensar o corpo para poder enxergar. Isso gera desconforto. Ah, tem um monte de problema, por exemplo, o colega que senta na minha frente tem um problema visual e aí ele afasta a cadeira dele um pouco o que me atrapalha, mas para evitar qualquer atrito eu me posiciono mais na lateral quando é preciso. E assim a gente acaba encontrando uma posição para trabalhar."

Reflexos da atividade sobre o corpo

Durante as atividades de trabalho da ópera, o violinista A apresenta sintomas de desgaste físico, mas esses não se referem aos grupos musculares diretamente envolvidos nos movimentos exigidos pelo ato de tocar o violino. Ele queixa-se de rigidez facial e dor nas cordas vocais.

"... olha, quando eu fico tenso e preocupado num determinado concerto, sempre observo a partitura e fico imaginando, assim meio que construindo, sentindo o som aqui nas minhas cordas vocais e então extraio o som no instrumento. O comando visual estimula todas as outras células do corpo e as funções de movimentos vão sendo acionadas de forma sinérgica... o cansaço mental é grande... depois de cada apresentação da ópera, meus músculos faciais estavam meio paralisados de tanta tensão e sentia uma irritação na garganta... não conseguia dormir direito... o nosso estresse vai muito além do momento." (Violinista A)

O violinista B também apresentou sintomas de desgaste que se referem a grupos musculares diretamente envolvidos nos movimentos exigidos pelo ato de tocar o violino. Ele queixa-se de dor nas costas (região dorsal) e nos braços (região do tríceps braquial).

"... quando a gente toca muito, claro que a gente fica arrebentado. Depois de uma ópera como esta o corpo sente os reflexos, mas nada que um bom descanso não resolva."

Vemos aqui que tais sintomas se relacionam às especificidades das estratégias operatórias desenvolvidas por estes músicos. Trata-se de uma configuração instrumental do corpo mediada por exigências predominantemente cognitivas da atividade musical, que aciona vários grupos musculares.

Ao desempenhar sua função, cada violinista desenvolve competências que articulam de forma simultânea as exigências colocadas durante o processo de construção da obra musical, o que aciona esforços físicos, cognitivos e psíquicos.

Tocar uma obra musical nova requer do instrumentista novas representações mentais, as quais precisam ser reestruturadas dinamicamente ao longo do ensaio frente às interpretações que vão sendo direcionadas pelo maestro, o que depende do desempenho individual e coletivo. Observa-se que o domínio da linguagem musical, ao se interpretar a partitura, representa uma possibilidade de estratégia de regulação individual, uma vez que a interiorização e a memorização das informações contidas antecipadamente nas partes musicais (a exemplo do violinista B observado) possibilitam ao músico criar representações para as suas ações, permitindo-lhe uma maior flexibilidade na postura corporal.

O alto grau de perfórmance exigido na ativdade, especialmente pelas determinações do maestro, solicita do músico um total domínio técnico do seu instrumento e uma interação precisa com o conjunto orquestral. A pressão temporal que se coloca ao ato de tocar muitas vezes leva o músico a ultrapassar seus limites físicos na tentativa de atingir a perfeição exigida. As margens de regulação são estreitas e a não execução do prescrito significa transgressão da hierarquia, o que ficou evdente nas verbalizações do maestro durante os ensaios observados.

A exigência de cooperação entre os músicos, face ao caráter coletivo da atividade, requer disciplina em um ambiente marcado pelas diversidades individuais. Lidar com as diferenças do "fazer" do outro requer que os músicos remodelem seus próprios modos operatórios, incidindo na forma de usar o seu corpo. Tais modificações nem sempre partem de uma livre escolha e por isso acabam consistindo em fatores de insatisfação na atividade de trabalho.

Na arte de fazer música, encontramos um paradoxo na medida em que, de um lado, o corpo se mobiliza para conseguir sincronia, harmonia e perfeição ao transformar o som e, de outro, este mesmo corpo, diante da forma como é usado, ultrapassa limites fisiológicos se desarmonizando, desgastando-se para conseguir produzir frente às condições de trabalho.

A força instrumental do corpo nas mãos do músico consiste numa dualidade: uma ferramenta produtiva e uma força que pode gerar riscos à saúde.

Conclusão

As variações encontradas nos modos operatórios nos indicam que as exigências do desempenho na atividade de um músico em uma orquestra contém aspectos cognitivos e relacionais fortes e implica em diferentes modalidades de organização das habilidades sensoriais e motoras. As relações que se estabelecem entre os músicos e as contingências da atividade traduzem estratégias operatórias distintas e formas singulares de uso do corpo. A análise dos processos de adoecimento músculo-esquelético entre os musicistas deve considerar esses aspectos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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