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Ações coordenadas em saúde do trabalhador: uma proposta de atuação supra-institucional

Workers' health coordinated actions: a proposal for supra-institutional action

Resumos

As ações em saúde do trabalhador se deparam com uma relativa ineficácia para transformar as condições de trabalho e reduzir acidentes e doenças ocupacionais, como indicado pela persistência de situações crônicas, como na construção civil. Além das dificuldades próprias a cada instituição ou prática social voltada para a melhoria das condições de trabalho, como a falta de conhecimento sobre as causas de doenças e acidentes, a falta de organização dos trabalhadores ou as determinações econômicas, as intervenções sociais voltadas para prevenção de doenças e acidentes podem avançar por meio de ações coordenadas supra-institucionais, associando de forma cooperativa agentes públicos, instituições especializadas e agentes econômicos. Esta forma de ação social é apresentada neste ensaio, discutindo os procedimentos de coordenação dos agentes e instituições sociais e apoiando-nos em algumas experiências em saúde do trabalhador: um projeto de intervenção na construção civil e a experiência do Sindimármore no Espírito Santo. Ações coordenadas supra-institucionais podem constituir um lócus mais efetivo de aglutinação de conhecimentos multidisciplinares em torno de ações práticas, preenchendo uma lacuna hoje existente entre produção de conhecimento, legislação, controle social e demandas dos agentes sociais, incluindo trabalhadores e empresários.

programas de ação em saúde do trabalhador; saúde ocupacional; ações coordenadas; fórum de saúde do trabalhador


Actions on workers' health are relatively ineffective towards changing working conditions as well as reducing the number of accidents and occupational diseases. One indication of this is the way chronic situations still persist in sectors such as the construction industry. Besides the difficulties which are peculiar to each institution or social practice devoted to improving working conditions (such as the lack of information about the causes of diseases and accidents, workers lack of organization or economic determinations), social interventions aimed at preventing accidents and diseases may become more effective by means of coordinated supra-institutional actions, by aggregating public agents, specialized institutions and economic agents in a cooperative way. This essay discusses this kind of social action and its social organization (agents and institutions). It is supported by two cases within workers' health area: the first one, an intervention project in the construction industry and the other, a Sindimármore experience in the state of Espirito Santo, Brazil. Coordinated supra-institutional actions can become a more effective locus of multidisciplinary knowledge agglutination around practical actions. They fill the currently existing gaps concerning production of knowledge, legislation, social control and the social agents' demands, which include workers and employers.

workers' health action programs; occupational health; coordinated actions; workers' health forum


ENSAIOS

Ações coordenadas em saúde do trabalhador: uma proposta de atuação supra-institucional* * Este artigo incorpora excertos de uma versão reduzida publicada em Takahashi, M. A. B. C.; Vilela, R. A. G. (Org.). A saúde do trabalhador e saúde ambiental. Piracicaba: CRST, 2003. p. 143-151.

Workers' health coordinated actions: a proposal for supra-institutional action

Francisco de Paula Antunes Lima

Engenheiro Mecânico-Produção e Doutor em Ergonomia. Professor associado do Departamento de Engenharia de Produção da UFMG

Contato

RESUMO

As ações em saúde do trabalhador se deparam com uma relativa ineficácia para transformar as condições de trabalho e reduzir acidentes e doenças ocupacionais, como indicado pela persistência de situações crônicas, como na construção civil. Além das dificuldades próprias a cada instituição ou prática social voltada para a melhoria das condições de trabalho, como a falta de conhecimento sobre as causas de doenças e acidentes, a falta de organização dos trabalhadores ou as determinações econômicas, as intervenções sociais voltadas para prevenção de doenças e acidentes podem avançar por meio de ações coordenadas supra-institucionais, associando de forma cooperativa agentes públicos, instituições especializadas e agentes econômicos. Esta forma de ação social é apresentada neste ensaio, discutindo os procedimentos de coordenação dos agentes e instituições sociais e apoiando-nos em algumas experiências em saúde do trabalhador: um projeto de intervenção na construção civil e a experiência do Sindimármore no Espírito Santo. Ações coordenadas supra-institucionais podem constituir um lócus mais efetivo de aglutinação de conhecimentos multidisciplinares em torno de ações práticas, preenchendo uma lacuna hoje existente entre produção de conhecimento, legislação, controle social e demandas dos agentes sociais, incluindo trabalhadores e empresários.

Palavras-chave: programas de ação em saúde do trabalhador, saúde ocupacional, ações coordenadas, fórum de saúde do trabalhador.

ABSTRACT

Actions on workers' health are relatively ineffective towards changing working conditions as well as reducing the number of accidents and occupational diseases. One indication of this is the way chronic situations still persist in sectors such as the construction industry. Besides the difficulties which are peculiar to each institution or social practice devoted to improving working conditions (such as the lack of information about the causes of diseases and accidents, workers lack of organization or economic determinations), social interventions aimed at preventing accidents and diseases may become more effective by means of coordinated supra-institutional actions, by aggregating public agents, specialized institutions and economic agents in a cooperative way. This essay discusses this kind of social action and its social organization (agents and institutions). It is supported by two cases within workers' health area: the first one, an intervention project in the construction industry and the other, a Sindimármore experience in the state of Espirito Santo, Brazil. Coordinated supra-institutional actions can become a more effective locus of multidisciplinary knowledge agglutination around practical actions. They fill the currently existing gaps concerning production of knowledge, legislation, social control and the social agents' demands, which include workers and employers.

Keywords: workers' health action programs, occupational health, coordinated actions, workers' health forum.

Introdução

Este texto apresenta uma proposta elaborada no momento de constituição do Fórum Estadual de Saúde e Segurança do Trabalhador em Minas Gerais, cujo objetivo principal era associar agentes sociais e instituições envolvidas com a saúde do trabalhador em torno de ações conjuntas de promoção de melhorias das condições de trabalho1 1 A proposta que ganhou corpo neste texto é de inteira responsabilidade do autor, embora ela tenha tido uma ampla acolhida pelos membros do Fórum. . O Fórum teve uma atuação limitada, sem ter deixado casos bem sucedidos de negociação social em torno de questões da saúde do trabalhador, como era seu propósito. Talvez este relativo insucesso já estivesse prenunciado desde seu início, para o qual pode ter contribuído esta tentativa pouco usual de reunir agentes sociais e instituições tão diversas, com interesses diferentes ou mesmo contraditórios, como empregadores e trabalhadores, com o objetivo não apenas de denunciar e discutir problemas, mas também de iniciar ações práticas e negociadas de mudança das condições de trabalho.

Ainda que a atuação do Fórum fosse limitada, o que motivou sua criação e a elaboração desta proposta de atuação são problemas persistentes, também relacionados à mudança social: a relativa ineficiência das ações de prevenção e de melhorias das condições de trabalho tal como elas vêm ocorrendo. Neste artigo, não pretendemos analisar e avaliar a organização e o funcionamento do Fórum em si mesmo, mas tão somente apresentar uma concepção de ação de melhoria de condições de trabalho, aqui denominada de "supra-institucional", cuja elaboração foi estimulada e acolhida em seu âmbito. Nesse sentido, as idéias aqui apresentadas podem ser discutidas independentemente da atuação e da existência do Fórum e eventualmente aproveitadas em outros arranjos institucionais. Para fundamentar esta proposição, apresentaremos um breve relato de uma experiência atualmente em desenvolvimento junto ao setor do mármore e do granito, onde arranjos similares foram desenvolvidos na década de 90, propiciando uma redução significativa dos acidentes, tendência hoje estagnada, exigindo que outros arranjos supra-institucionais sejam colocados em ação.

O Fórum, cuja finalidade definida em estatuto era "assegurar um meio ambiente do trabalho ecologicamente equilibrado, proporcionando uma sadia qualidade de vida aos trabalhadores, através do esforço conjunto de organizações governamentais, entidades públicas e privadas, comprometidas com a temática, em todo o Estado de Minas Gerais", estava, quando da sua criação no decorrer do ano de 2000, organizado em três instâncias: a) coordenação, composta de 6 representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT); b) conselho consultivo, integrado por 13 membros: 4 representantes dos trabalhadores indicados pelas centrais sindicais (Central Única dos Trabalhadores, Confederação Geral dos Trabalhadores, Força Sindical e Social Democracia Sindical); 4 representantes dos empregadores e ramos de atividade econômica distintos; 5 (cinco) membros do poder público, sendo 3 do âmbito Federal (INSS, DRTE/MG e Fundacentro, 1 do âmbito Estadual (membro Titular indicado pela Secretaria de Estado da Saúde - Coordenação de Saúde do Trabalhador e o suplente pela Secretaria do Trabalho e Ação Social) e 1 membro do âmbito Municipal. Participavam da assembléia, em reuniões ordinárias bimensais, um leque mais amplo de pesquisadores e técnicos e sindicalistas interessados em saúde do trabalhador. Apesar de contar com representantes federais, o âmbito da ação do Fórum era estadual.

Pode-se questionar se a forma adotada pelo Fórum é a melhor em termos de organização para enfrentar certas necessidades de intervenção na questão da saúde ocupacional. Mas é forçoso reconhecer a necessidade de novas formas de organização para preencher lacunas importantes do modelo institucional do sistema brasileiro de saúde do trabalhador, que tem sido pouco eficaz na prevenção de doenças e acidentes do trabalho em alguns setores econômicos, como na construção civil, transportes, mineração e, de modo geral, no caso das LER/DORT, para citar apenas alguns setores e problemas com os quais este autor está diretamente envolvido. Ressalte-se que esta ineficácia é apenas relativa, pois o Brasil convive com realidades extremamente díspares conforme o setor econômico considerado, às vezes dentro do mesmo setor. Na mineração, a freqüência de acidentes fatais é próxima de zero nas grandes mineradoras de ferro, mas coexiste com uma elevada incidência desses acidentes no setor de mármore e granito. No transporte aéreo, a taxa de acidentes nos aproxima do primeiro mundo, enquanto no caso dos motociclistas profissionais nos recolocam no terceiro. Em suma, podemos nos equivocar quanto à forma de organização de ações coordenadas, mas estamos certos quanto ao problema de fundo. Assim, se colocamos em debate este modelo de organização, não é para questionar a pertinência da experiência do Fórum, que não está aqui sob avaliação, mas para chamar a atenção sobre o problema subjacente: a relativa ineficácia das ações institucionais para melhorar as condições de trabalho e de saúde do trabalhador.

Ações institucionais e saúde do trabalhador

As ações sociais que buscam preservar a saúde dos trabalhadores nascem de vários grupos sociais e instituições, cada um contando com meios e competências específicas. No Brasil, essas ações têm se multiplicado nos últimos anos e vêm se diversificando, gerando experiências importantes, mas ainda dispersas. Além das instituições que estão mais diretamente envolvidas com a questão da saúde do trabalhador, como Fundacentro, DRT, INSS, vale lembrar as ações do Ministério Público, dos sindicatos de trabalhadores (incluindo associações específicas como a APLER - Associação dos Portadores de Lesões por Esforços Repetitivos), de grupos de pesquisa universitários, centros de referência da saúde do trabalhador, vigilância sanitária municipal, secretarias de saúde e associações patronais (sindicatos e federações das indústrias).

Todas essas instituições têm demonstrado um real interesse na prevenção de acidentes e doenças ocupacionais, através de atividades isoladas ou, por vezes, em parcerias restritas. Cada um desses agentes sociais ou instituição, com as competências e meios próprios, vem buscando aumentar a eficácia de suas ações e desenvolver alternativas para lidar com esta importante questão social.

Todavia, os resultados práticos, quando se pensa na melhoria das condições de trabalho ou na redução acidentes e doenças ocupacionais, não correspondem ao conhecimento acumulado sobre os problemas e às possibilidades técnicas de prevenção. Apesar de todo o esforço realizado no Brasil nos últimos 30 anos, tanto para compreender os problemas quanto para implementar programas de prevenção, é notório que os índices de acidentes e doenças ocupacionais continuam extremamente elevados.

Certamente, não se pode explicar esta situação por uma causa única, sobretudo não é possível desconhecer o peso dos determinantes econômicos, mas a falta de intervenções coordenadas tem limitado a eficácia dos programas de prevenção envolvendo um grupo limitado de agentes e instituições sociais. O fato das experiências acumuladas não serem trocadas entre diferentes agentes, a não ser esporadicamente, sem que sejam planejadas de modo sistemático e duradouro, é revelador desta dispersão das ações de prevenção. Por outro lado, a cooperação vem se dando no interior de um quadro institucional tradicional, sem alterar as práticas cotidianas de cada instituição. Assim, a fiscalização, o controle e o apoio técnico dos órgãos públicos não conseguem abarcar todas as empresas; os conhecimentos produzidos nas universidades não são difundidos entre os profissionais da área; as ações de empresas e de sindicatos permanecem restritas a alguns poucos problemas mais graves. De modo geral, as ações não se multiplicam, perdendo em eficácia e em amplitude.

Analisamos esta situação de fato em termos de práticas institucionais porque o problema central não mais parece ser a falta de conhecimento, nem a formação insuficiente dos agentes responsáveis pela promoção da saúde do trabalhador. Em termos de capacitação individual, de acúmulo de conhecimentos e da política de ação, houve grandes progressos no Brasil, em todas as instituições envolvidas com a saúde ocupacional. O problema, a nosso ver, situa-se muito mais na falta de articulação de ações institucionais isoladas do que na capacitação individual dos técnicos. As ações setoriais, tal como detalhado a seguir, podem constituir-se em eixos de aglutinação e de nucleação das ações coordenadas envolvendo agentes institucionais diversos2 2 A inspiração dessas ações setoriais são as experiências francesas patrocinadas pela Anact - Agence Nationale d'Amélioration des Conditions de Travail. Dentre outros programas, a cada ano são direcionadas ações para setores considerados críticos (abatedouros, agroindústria...), contemplando um menu completo: levantamento de dados, diagnóstico, elaboração de recomendações, negociação e financiamento das melhorias. Para realizar estas atividades são envolvidos diversos agentes e instituições sociais. .

Propostas de organização de ações coordenadas supra-institucionais

Na época de sua instalação, ainda sem procedimentos operacionais bem definidos, a proposta a seguir foi sugerida para o funcionamento de um Fórum de natureza supra-institucional.

O Fórum oferece um espaço propício para troca de experiências entre agentes sociais e instituições de saúde do trabalhador e, sobretudo, para que as ações distintas se potencializem mutuamente, aumentando tanto a produção de conhecimento sobre este grave problema social quanto a eficácia das ações preventivas.

O Fórum não substitui as funções das diversas instituições e agentes que o compõem, nem se limita a reproduzir, em outro nível, as atividades já realizadas. Seu objetivo primordial é viabilizar práticas alternativas que somem forças de todos aqueles que buscam melhorias das condições de trabalho. A sua característica específica e vantagem maior é possibilitar ações coordenadas, que não se restrinjam simplesmente à soma do que cada instituição isoladamente faz, mas que sirva também para reorientar certas atividades destas instituições em torno de ações coletivas e negociadas entre diferentes agentes sociais, cada um contribuindo com suas competências e recursos próprios. Esse princípio de não substituição das ações de cada agente social é essencial para entender os limites das ações coordenadas e para reconhecer a fonte da real eficácia dessas ações, que depende dos próprios atores sociais. A natureza supra-institucional das ações coordenadas não elimina as práticas de cada agente/instituição, mas cria um espaço que as potencializa, ampliando o campo de possibilidades em um dado momento. Onde e quando não existirem mais condições de negociação, as ações dos órgãos públicos, dos trabalhadores e dos empresários retomarão seus antagonismos. Somente da contradição de interesses e posições sociais podem surgir as forças capazes de promover mudanças sociais. No entanto, ainda que os antagonismos de classe não sejam superados, as ações coordenadas podem transformar as práticas dos diversos agentes e instituições sociais.

As ações coordenadas através do Fórum, além de potencializar mutuamente as ações de cada participante, podem exercer um efeito retroalimentador sobre as práticas cotidianas, modificando-as quanto à forma e, em parte, quanto ao conteúdo, dando-lhes, por exemplo, um redirecionamento em função dos objetivos compartilhados, em especial no caso das ações setoriais prioritárias. Os grupos de pesquisa, por exemplo, poderão concretizar uma produção científica multidisciplinar (atualmente mais desejada do que praticada) em torno de problemas práticos reais, sempre mais complexos do que cada disciplina (ergonomia, psicologia, medicina do trabalho, segurança do trabalho) conhece ou é capaz de fazer3 3 Dada a natureza de ensaio deste relato, é impossível oferecer um quadro teórico que possa situar esta experiência e a proposta que esboçamos a partir dela, mas nos apoiamos em duas décadas de pesquisa e intervenção no campo da saúde do trabalhador. Por isso o relato em primeira pessoa, inadequado em textos científicos, mas que optamos por manter neste ensaio. No que diz respeito à produção do conhecimento, esta proposta filia-se ao paradigma ergológico, desenvolvido por Yves Schwartz e sua equipe de Aix-en-Provence. Sobre a ergologia, algumas obras de síntese e coletâneas oferecem uma boa visão: Schwartz (1998; e 2000); Schwartz e Durrive (2007). Para um primeiro balanço de uma experiência ainda em andamento no Brasil, de uma produção de conhecimento multi e transdisciplinar, inspirada na ergologia, ver Cunha e Orban (2005) e Cunha (2007). O debate iniciado no campo da ergonomia da atividade oferece um quadro analítico dos problemas do trabalho e de intervenção social (DANIELLOU, 2004, em especial a contribuição de Yves Schwartz, p. 141-180). ; os órgãos públicos poderão melhorar sua capacidade de mediação; os sindicatos de trabalhadores e patronais avançarão nas negociações, estabelecendo patamares mínimos de condições de trabalho aceitáveis em um dado setor ou ramo da produção; os órgãos de apoio técnico poderão melhorar seus repertórios de soluções e colocá-los à disposição de um leque mais amplo de empresas; de modo geral, as informações e os bancos de dados existentes poderão refletir melhor a realidade da saúde do trabalhador e a real eficácia dos programas de prevenção.

Dada a natureza do Fórum, composto de representantes de diversos grupos e classes sociais, sua ação deve ser pautada prioritariamente por objetivos negociados, definidos a partir de um compromisso mínimo, que não pode ser confundido com "consenso", a rigor inalcançável em questões sociais, sobretudo entre trabalhadores e empresários. As denúncias e ações de responsabilidade (previstas nos objetivos apresentados no seu estatuto) deveriam, respeitando esse princípio de compromisso supra-institucional, ser encaminhadas a outras instâncias apenas e quando se esgotassem todas as possibilidades técnicas e sociais para a resolução dos problemas. Ou seja, somente após serem esgotadas as possibilidades previstas nos demais objetivos, cuja ênfase está na solução negociada dos problemas. Assim, a denúncia e a responsabilização não seriam objetivos diretos do Fórum, que esgotaria, antes, todas as alternativas sociais e técnicas para resolver ou amenizar um problema.

Existem, assim, objetivos prioritários que devem orientar a atuação do Fórum: superar as dificuldades para conhecer a realidade da saúde do trabalhador e propor formas de prevenção mais eficazes. Em verdade, não é possível aumentar a eficácia das práticas preventivas se não se aprofunda o conhecimento da realidade. Nesse sentido, não basta aglutinar informações já disponíveis ou acumuladas em cada uma das instituições. Ao contrário, para permitir uma mudança qualitativa na prevenção é necessário repensar tanto a produção de informações quanto as formas de ação.

Um modo de ação que, a nosso ver, poderia congregar os interesses de todos os participantes do fórum, assim como aproveitar as suas respectivas competências, implica os seguintes aspectos:

• ampla negociação social, envolvendo as associações de classe, com mediação dos órgãos públicos;

• diagnóstico da situação atual, através da sistematização das informações disponíveis e da produção de novos conhecimentos sobre as novas realidades do trabalho e formas de adoecimento;

• proposição de soluções técnicas que demonstrem na prática a possibilidade de melhorar as condições de trabalho;

• implementação de programas de melhoria das condições de trabalho, em setores considerados prioritários.

Esses objetivos podem ser alcançados abordando problemas gerais (como trabalho precário, trabalho da mulher, educação etc.) ou definindo setores produtivos prioritários, nos quais as condições de trabalho são reconhecidamente precárias (mineração, construção civil etc.).

A exemplo de outros países, seriam definidos programas anuais, em torno dos quais se aglutinariam esforços de todos os agentes e instituições sociais, desde a produção de conhecimento para entender ou resolver problemas mais complexos à implementação de melhorias, passando pela negociação social, a mais ampla possível. A cada ano seriam estabelecidas prioridades dentre os problemas apresentados no Fórum, que seriam tratadas no ano seguinte. O leque de ações pode ser mais ou menos restrito, dependendo da capacidade do Fórum para aglutinar forças sociais em torno dos problemas, uma vez que sua função essencial consiste em coordenar ações diversas e não assumir atividades operacionais.

Esta é, evidentemente, apenas uma das ações possíveis do Fórum, que envolveria uma ampla gama de agentes sociais. Mas outras ações mais específicas podem e devem ser consideradas, visando objetivos mais pontuais e imediatos, conforme demanda de seus representantes. Esse arranjo com grupos e funções diferenciadas foi pensado em resposta a problemas de fundo relacionados à produção de conhecimentos e à condução das ações de melhoria das condições de trabalho. Na aparência, esses problemas eram puramente pragmáticos, mas, com o tempo, revelaram-se profundos e complexos, exigindo um aparato específico, dividido em equipes com funções distintas (ver esquema em Lima, 2003), subordinado, mas diferenciado das instâncias inicialmente previstas no estatuto do Fórum: coordenação, conselho consultivo e assembléia. Inicialmente, as dificuldades no funcionamento do Fórum manifestaram-se como questões de natureza puramente pragmáticas: tom de denúncia e de conflito aberto entre trabalhadores e empregadores, falta de informações sobre questões controversas envolvendo saúde e trabalho, como terceirização e acidentes, descontinuidade das ações, devido à falta de equipes responsáveis pelo encaminhamento das proposições, uma vez que os representantes das instituições, todos com uma ampla experiência colocada à disposição do Fórum durante as assembléias, eram pessoas sobrecarregadas com seus próprios trabalhos. As soluções imaginadas, como convidar especialistas para dar palestras sobre os problemas controversos e criar comissões responsáveis por projetos específicos, apenas adiaram o reconhecimento de que os objetivos do Fórum, coerentemente com sua natureza supra-institucional, somente poderiam ser alcançados se fossem criadas outras instâncias de apoio e de caráter operacional. Ao mesmo tempo em que se revelou a falta de conhecimento sistematizado para sustentar decisões e programas de ação, verificou-se a precariedade dos recursos para encaminhar ações de ampla envergadura social. Não apenas faltavam conhecimentos sobre certos problemas de saúde do trabalhador, como também inexistia uma instituição ou agentes que pudessem se dedicar à implementação de programas de ação apoiados no que já se conhecia.

Em um texto anterior (LIMA, 2003), relatamos como esta organização serviu para orientar uma intervenção na construção civil, constituindo-se um grupo de trabalho (Comissão Técnica: área temática construção civil) que definiu como prioridade analisar os efeitos da terceirização sobre a segurança. Os dados disponíveis revelaram-se, todavia, de natureza geral sobre os acidentes na construção civil, não permitindo chegar a conclusões específicas sobre a relação entre terceirização e acidentes. Existiam algumas pesquisas sobre terceirização e segurança, realizadas em outros setores (siderurgia, petroquímica), mas ainda se conhece pouco a realidade da terceirização na construção civil, apesar dessa prática já ser tradicional nesse setor. Este é um exemplo de como as competências específicas podem se influenciar. No início dos trabalhos da Comissão, a impressão geral era que já se conhecia bem a realidade da construção civil. Após certo tempo, percebeu-se que havia mais dúvidas que certezas, em especial quanto à relação entre terceirização e acidentes. Após algumas reuniões da Comissão, não foi possível estabelecer um consenso entre os participantes sobre as causas dos acidentes entre os terceirizados. Para alguns, o acidente decorre "do não atendimento à legislação", para outros é necessário alterar a legislação atual, pois, implicitamente, ela leva à negligência das condições de segurança, sobretudo devido à concorrência predatória. As formas de contratação de obras e serviços, inclusive pelos órgãos públicos, deveriam ser modificadas. Assim, antes de se estabelecerem formas de intervenção e de negociação social a respeito desse problema, se propôs responder à seguinte questão: a terceirização, em suas diversas formas, modifica qualitativamente e quantitativamente os acidentes de trabalho? Antes que fosse iniciada qualquer ação prática, como a elaboração dos termos da Convenção Coletiva sobre segurança do trabalho, mostrou-se necessário sistematizar as diversas experiências (DRT, Sindicatos, Seconci...) pelo filtro do habitus acadêmico. Mais detalhes sobre este caso podem ser obtidos em Lima (2003). Para discutir a pertinência desta proposta, é mais interessante ver como os arranjos e procedimentos sugeridos se ajustam a casos que se desenrolaram sem esta orientação a priori. A experiência dos mineiros do mármore e granito no Espírito Santo é exemplar4 4 As negociações em torno das condições de trabalho dos motociclistas profissionais também poderia ser discutida à luz deste arranjo. Várias ações já foram encaminhadas desde a pesquisa de Diniz (2003), inclusive se apoiando no Fórum (ver DINIZ; JACKSON FILHO; SAMPAIO, 2006). como articulação supra-institucional, ainda que não tenha sido pensada ou organizada desta forma.

Acidentes de trabalho no setor de mármore e granito: histórico e perspectivas de intervenção

Este projeto se apóia nos resultados do projeto especial de qualificação profissional (ProEsQ) "Conexões de Saberes", produzidos ao longo dos anos 2006 e 2007 (ver CUNHA, 2007), sistematizando-os com o objetivo de definir um programa de pesquisa-ação para tratar especificamente da segurança do trabalho na extração e beneficiamento do mármore e do granito. Além da experiência do projeto "Conexões de Saberes", esta proposta recupera estudos anteriores (OLIVEIRA, 2005; MOULIN, 2006) que registraram a longa luta dos trabalhadores do setor pela saúde, propiciando uma perspectiva global das transformações ocorridas desde a Caminhada dos Mártires, cerca de 20 anos atrás. Com este recuo, é possível identificar e avaliar os determinantes mediatos e imediatos das transformações ocorridas no setor, o que permitiu obter avanços e também o que, hoje, cria obstáculos para a redução dos acidentes, comparativamente a outros setores econômicos, inclusive na própria mineração.

Mesmo que as informações estatísticas não sejam inteiramente confiáveis, observações in loco, alguns dados disponíveis e relatos dos próprios mineiros permitem afirmar que houve uma redução significativa do número de acidentes graves e fatais graças às ações e à mobilização social iniciadas desde os anos 1980. No entanto, ainda há uma diferença também significativa entre as condições de trabalho neste Setor e em outros tipos de exploração mineral, como o ouro ou o ferro, onde os acidentes fatais se tornaram eventos raros. Durante as reuniões do projeto "Conexões de Saberes", eram freqüentes as surpresas de mineiros de outros setores com os relatos dramáticos dos participantes do Sindimármore. Dada a natureza, desses depoimentos orais, nem sempre era possível situar os casos de acidentes em seu real tempo histórico, o que reforçava ainda mais a impressão da precariedade das condições de trabalho na indústria do mármore e do granito, e a necessidade de retomar as denúncias para dar visibilidade social a uma situação intolerável. Com este projeto, esperamos organizar as informações já disponíveis e aprofundar o conhecimento da realidade do setor, de modo a permitir uma reflexão sobre a produção social dos acidentes na produção de mármore e granito e definir ações mais eficazes para atuar na prevenção.

Apesar de todas as iniciativas ao longo de quase 20 anos de luta para melhorar as condições de trabalho no setor, desde a "Caminhada dos Mártires" de 1º de maio de 1990, e sem deixar de reconhecer as melhorias e avanços obtidos, a produção de mármore e granito ainda ostenta o recorde de acidentes registrados no Espírito Santo. Tomando como referência as informações disponíveis em Oliveira (2005), houve uma redução da quantidade de acidentes em termos absolutos, mas sem alterar a situação em termos relativos, uma vez que a proporção dos acidentes registrados no setor persiste em torno de 50% do número total de acidentes registrados no Espírito Santo, o que gera uma série de questões. O que, de fato, mudou neste setor nos últimos 15 anos para permitir alcançar esses resultados? Quais são, de fato, os resultados em termos de melhorias das condições de trabalho? Em que proporção foi reduzida a ocorrência de acidentes? Se existem empresas ou um sub-setor "melhor organizado", o da produção de rochas ornamentais, por que se instaurou essa diferenciação? Que medidas foram e são mais eficazes? Acontecem igualmente em todas as empresas, micro, pequenas ou grandes, no norte e no sul do estado? Por que o setor, como um todo, ainda permanece sendo de alto risco, registrando um número ainda elevado de acidentes fatais, apesar das transformações? Por que essas transformações não se estenderam ao setor de pedras marruadas?

Responder a estas questões é essencial tanto para avançar na compreensão das causas dos acidentes como nas formas de ação necessárias para tornar a prevenção mais efetiva e superar os limites atuais das intervenções dos agentes sociais envolvidos no problema, a saber: poder público (MTE, DNPM, MPT), sindicatos patronais e de trabalhadores, universidades e instituições de pesquisa (Fundacentro etc.) e pesquisadores.

No decorrer dos encontros do projeto "Conexões de Saberes", em 2007, ficou evidente que uma das maiores dificuldades para elaborar um diagnóstico mais preciso do problema dos acidentes no setor foi a falta de informações detalhadas sobre os acidentes, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. Mesmo os dados sobre a evolução dos acidentes são pouco confiáveis, quando analisados em termos relativos. A rigor, para efeito de comparação da taxa de acidentes no setor de mármore e granito com o restante da economia capixaba, a quantidade de acidentes deveria ser ponderada pela quantidade de homens-horas trabalhadas, ou PEA, em cada setor da economia. É claro que a grande diferença assinalada pelos poucos dados disponíveis (50% dos acidentes para 7% do PIB) é bastante significativa, mas seria bem mais precisa e instrutiva se as comparações fossem feitas não diretamente em valor, mas em termos de parâmetros físicos que retratam melhor o processo de produção. Como se sabe, um setor como a siderurgia ou mesmo sub-setores da mineração intensivos em tecnologia produzem alto valor agregado empregando poucos trabalhadores. Por si só, comparações nestes termos, considerando as características do processo de produção, já indicariam algumas possíveis causas da maior prevalência de acidentes neste setor, assim como eventuais diferenciações internas entre sub-setores.

No caso dos acidentes neste setor, seria importante identificar tipo de produto (amarroado) e tipo de exploração (bancada ou vertical), descrever em detalhe as circunstâncias em que aconteceu o acidente, considerando a tarefa em execução, tipo de produto, equipamento utilizado, município, tamanho da empresa, a função do trabalhador e sua experiência, seqüência de eventos imediatos etc., o que somente uma análise aprofundada e sistemática de cada acidente permitiria identificar e correlacionar. A manutenção das tendências de diminuição dos acidentes que têm sido registradas nos últimos 20 anos depende desse aprofundamento da compreensão dos mecanismos de cada acidente, de modo a oferecer orientações para a prática da prevenção, de melhorias das condições materiais e organizacionais de trabalho e elaboração de normas de segurança. Pelos relatos dos acidentes que ainda ocorrem, percebe-se facilmente que continuam a persistir condições de trabalho precárias, semelhantes aos tempos heróicos do início da exploração nos anos 1960 e 1970. Mas a diversidade das condições de trabalho entre as empresas do setor impede qualquer generalização, o que justifica, mais uma vez, análises que procurem estabelecer de forma mais precisa as circunstâncias em que ocorrem os acidentes. Associar os acidentes ao "setor do mármore e granito", tomado como um todo homogêneo, pode levar a ações pouco eficazes para diminuir esses índices ainda intoleráveis de acidentes graves e fatais.

Intervenções no setor do mármore e do granito vêm acontecendo desde a década de 1980, inicialmente com ações da Igreja, posteriormente sustentadas pelo movimento de organização dos próprios trabalhadores, o que atraiu a atenção do poder público e da mídia. A história dessa luta pela vida e por melhores condições de trabalho está documentada no livro de Oliveira (2005), na tese de Moulin (2006) e, mais recentemente, resgatada por Cunha (2007). Nos relatos e documentos já produzidos, pode-se identificar algumas linhas de força das análises que dizem respeito à natureza do setor, sua evolução histórica e como essas transformações ocorreram. Esse reconhecimento é importante para avaliação retrospectiva das intervenções, diagnóstico da situação atual e definição de perspectivas de ação. Sem prejuízo de outras avaliações, os seguintes traços nos pareceram relevantes: 1) a complexidade das relações de trabalho e do setor do mármore e do granito; 2) a cultura local, religiosa e patriarcal, que ajuda a propiciar a "naturalização" dos riscos e a percepção dos acidentes como fatalidade; 3) a invisibilidade social das condições de trabalho no setor; 4) a organização social dos trabalhadores: a criação do sindicato e a emergência da saúde como ação prioritária; 5) a intervenção na forma de ações de conscientização e de mobilização social; 6) a relação entre a natureza dos processos tecnológicos e da organização da produção e os acidentes.

A primeira constatação que se pode fazer a partir de relatos de todos aqueles que se aproximaram pela primeira vez da realidade dos mineiros é a tomada de consciência com relação à teia complexa de relações objetivas e subjetivas que os enredavam. Esta era uma condição indispensável para se inserir como agente no movimento de organização que então se esboçava, a começar pelo forte sentimento de indignação moral em relação às condições de vida e de trabalho dos mineiros. Mas é importante que esse sentimento seja o motor para um conhecimento das condições objetivas do setor, como condição para que se definam estratégias de intervenção e ações cada vez mais eficazes na diminuição dos acidentes. Desse ponto de vista, é necessário reconhecer a heterogeneidade das empresas do setor:

Do ponto de vista da conduta dos patrões, nas relações de trabalho há uma complexidade de situações. Ao lado dessas firmas clandestinas e/ou desorganizadas, há também uma parte do empresariado que se empenha em cumprir pelo menos o que rege a legislação, do ponto de vista da saúde e segurança - que todos entendemos como insuficiente, mas que ainda é o paradigma mínimo a que o sindicato reivindica. A necessidade de certificação de qualidade para exportação faz com que muitos procurem proceder da forma prescrita. As firmas de porte médio são em geral mais organizadas, se comparadas com as pequenas, têm, em geral, mais recursos para procederem a treinamentos. Muitas vezes têm um técnico em saúde e segurança, disponibilizam um maquinário mais atualizado, de maneira que operam quase sem problemas. (MOULIN, 2006, p. 125)

Uma marca distintiva dos mineiros é o forte sentimento religioso, como se apenas poderes divinos pudessem controlar as forças naturais das rochas e protegê-los de um trabalho realizado em condições brutas e naturalmente perigosas. A "naturalização" do risco, o sentimento de impotência, a representação de que o acidente foi uma fatalidade ou culpa do próprio acidentado criam barreiras para que se compreendam suas causas objetivas e subjetivas5 5 Por causas subjetivas, referimos-nos não apenas às representações sociais e aos valores culturais que atribuem um sentido aos acidentes, como analisados por Moulin (2006), mas também aos processos sócio-cognitivos que sempre precedem a avaliação de uma situação de trabalho específica, a atribuição de riscos e o controle da ação. Nessa perspectiva da análise sócio-cognitiva dos acidentes, o risco está sempre presente, não pode ser eliminado conforme pretendido pela engenharia de segurança, mas deve ser controlado pelos trabalhadores por meio da experiência e de estratégias de ação coletivas. e, portanto, que possam ser propostas mudanças dos processos de produção e de trabalho.

No caso dos mineiros do mármore e do granito e de seus familiares, sobretudo na época heróica do início da exploração, misturam-se os sentimentos de indiferença, resignação e fatalidade diante dos acidentes, inseridos e alimentados pelas relações patriarcais remanescentes da cultura agrária local.

Esse espaço de confronto entre capital e trabalho foi estudado desde os primórdios da atividade no setor de rochas, quando sequer podemos afirmar se havia ali relações capitalistas estabelecidas. Trata-se de um processo de trabalho em transição, cujos atores vieram de um mundo rural para um tipo de trabalho de extração de pedra e que vai se consolidando até os dias atuais, quando a atividade está inserida no mercado internacional globalizado. (MOULIN, 2006, p. 24-25)

Esta caracterização de um mundo em transição, ao mesmo tempo em que nos ajuda a explicar as causas e a manutenção dos acidentes em números elevados, sem que os agentes sociais envolvidos reagissem, também revela, hoje, um novo patamar, caracterizado pela maturação dos empreendimentos capitalistas e pelo desenvolvimento de capacidades gerenciais em boa parte das empresas, todavia, sem que se tenha evitado a ocorrência de acidentes fatais.

Outra característica marcante da história do setor do mármore e do granito é o grau de invisibilidade social de situações tão trágicas, em parte devido à localização das unidades de extração das rochas, distante de centros urbanos, o que até hoje coloca dificuldades para a fiscalização por parte do Estado e do sindicato. Mesmo os habitantes do Espírito Santo desconheciam a realidade das condições de trabalho dos mineiros e os dramas vividos por suas famílias. À "naturalização" dos acidentes e à resignação dos envolvidos diante da "má sorte da vida", acrescenta-se o desconhecimento desta realidade por parte da população, instituições e poder público.

A recusa a aprofundar as análises de acidentes e a sistematizar procedimentos já adotados por indústrias e empresas de ponta ainda parece ser um limite do setor do mármore e do granito, mesmo que o sindicato tenha transformado em parte a cultura do silêncio e da culpabilização das vítimas:

Mas acidentar-se é uma fatalidade que (para a comunidade) não tem explicação. Não enunciam a possibilidade de investigação do acidente. Ainda não conquistaram força política para tal embate e pode estar em jogo uma sutil atribuição de culpa à vítima pelo acidente. Não se fala mal dos mortos - aqui está se explicitando uma hipótese, fruto de ilações originadas no conjunto das entrevistas, das conversas informais e pode-se considerar ela mesma (por enquanto) um tabu. Nesse horizonte, o discurso sindical emerge como contraponto, já que, para além da fatalidade, vai sistematicamente apontar as incoerências do modo de produção no setor de rochas que levam ao acidente e à morte. Ainda assim, as análises do acidente do trabalho devem se aprofundar cada vez mais, tornando ainda mais claro e transparente para trabalhadores e suas famílias as diversas forças sociais e econômicas em jogo na ocorrência do acidente. (MOULIN, 2006, p. 131-132)

Se, por um lado, tenta-se transformar a consciência dos trabalhadores e de seus familiares para romper com os vínculos patriarcais, de outro, procura-se divulgar a realidade trágica desses trabalhadores para mobilizar a sociedade em torno da mudança necessária das condições de trabalho. De um lado, mudança das consciências, via explicitação das contradições entre capital e trabalho rompendo com laços tradicionais herdados da cultura rural e alimentados pelo valor do trabalho heróico da implantação do setor; de outro, a informação ao grande público em relação ao que se passava sob o brilho das pedras ornamentais.

Diante do desconhecimento que tornava invisível a realidade do setor do mármore e do granito, a produção de informações e sua divulgação passaram a ser uma das prioridades do próprio sindicato, o que, se não produziu efeitos diretos sobre as condições de trabalho, propiciou a mobilização social para que as transformações começassem a acontecer, inclusive entre os empresários mais modernos do setor.

Outra opção estratégica do sindicato foi iniciar ações indenizatórias de forma sistemática, o que ampliou a visibilidade social dos acidentes e gerou produção de informações sobre as precárias condições de trabalho dos mineiros (OLIVEIRA, 2005).

Além das condições de trabalho serem extremamente precárias no setor, a invisibilidade social impedia a produção de dados e informações, faltavam também conhecimentos sistematizados e tecnicamente legitimados sobre doenças e acidentes, suas causas, formas de prevenção e sobre os direitos dos trabalhadores. Assim, além da divulgação em seminários e eventos, as ações judiciais tiveram um efeito mais profundo: também serviram para produzir o conhecimento técnico onde ele ainda não existia, facilitando a visibilidade social de uma realidade que, de certa forma, saltava aos olhos de quem se dispusesse a enxergar, mas que permanecia apenas registrada na experiência dos trabalhadores.

Os relatos e as análises do setor são unânimes em ressaltar a importância da criação e o fortalecimento do Sindimármore, que desde o início se vinculou estreitamente à questão da saúde. Este ponto é bem mais significativo quando se sabe que as reivindicações a respeito da saúde e segurança do trabalho nem sempre são prioritárias nas estratégias e negociações sindicais, mas parece ter sido determinante no caso do setor do mármore e do granito para explicar a redução dos acidentes e outras conquistas em higiene do trabalho, como a proibição de processos de produção a seco.

O que chama atenção nos relatos do surgimento do Sindimármore e de seu fortalecimento é precisamente a priorização da saúde em várias decisões estratégicas. Mesmo que a meta ousada de "acidente zero" ainda não tenha sido alcançada, sem esta estratégia deliberada de luta pela saúde certamente os resultados seriam piores. Por outro lado, a tenacidade com que os diretores do Sindimármore defendem esta causa mostra também que esta força de pressão social deve estar associada a outros processos sociais (produção de conhecimento, opinião pública, apoio institucional etc.) para produzir efeitos em termos de melhorias das condições de trabalho. Ao longo da década de 1990, o sindicato fortalece-se juntamente com a luta pela saúde e segurança, principalmente com o seminário organizado pela Fundacentro, que dá um caráter científico às demandas apresentadas pelo sindicato.

Além das ações judiciais, a intervenção do Sindimármore no campo da saúde tem se organizado em torno de três linhas estratégicas que se alimentam reciprocamente:

1) denúncias da realidade dos trabalhadores, em seminários e eventos especializados e na mídia em geral;

2) mobilização e negociação social, com participação em comissões tripartites para elaboração de normas técnicas;

3) produção de conhecimento sobre as condições de trabalho no setor.

As denúncias atingiram um público mais amplo, ganhando espaços nobres no canal de televisão de maior audiência, o que aumentou a visibilidade social da realidade desconhecida do setor do mármore e do granito, que ganhou espaço em fóruns internacionais.

Ao mesmo tempo em que os trabalhadores ampliavam a própria conscientização de seus direitos, aumentado a penetração do sindicato no setor, criava-se uma urgência social que exigia uma ampla mobilização de agentes públicos e instituições técnicas:

Em 1992 foi realizada, pelo Sindimármore junto com a Confederação [CNTSM], o seminário... a Campanha, denominada IADZ, (Índice de Acidentes e Doenças Zero), 'Risco de Acidentes e Doenças Zero'... Aí realizou-se dois seminários tripartite, atualizando os conhecimentos sobre as situações de trabalho e meio ambiente. Esses seminários com a Fundacentro... principalmente o Seminário da IADZ... deve servir de parâmetro para os órgãos públicos responsáveis pela saúde, segurança e prevenção do meio ambiente, que cooperam com a implementação de resoluções. (CUNHA, 2007, p. 52)

Neste seminário foi formada uma comissão tripartite com objetivo de visitar as empresas para levantamentos de irregularidades e em seguida reunir-se com os empresários para orientar sobre a prevenção contra acidentes. Com os trabalhos realizados por esta comissão intermunicipal, viu-se a necessidade da implantação de uma comissão ainda mais ampla. No âmbito da Comissão Nacional do Setor Mineral, que discutia a NR22, com representação do Sindimármore, surgiu a Subcomissão Nacional Permanente do Setor do Mármore e Granito, na qual se passou a discutir os problemas do setor em amplitude nacional.

Alguns aspectos podem ser ressaltados nesta história. Chamar a atenção da mídia para mostrar em rede nacional uma realidade ainda desconhecida é por si mesmo uma conquista, mas a contribuição positiva desta visibilidade para um público leigo depende da direção que se dá à representação social sobre as causas dos acidentes: se as vítimas são responsabilizadas ou se as denúncias mostram as más condições de trabalho como determinante essencial dos acidentes. O caso dos motociclistas profissionais é exemplar nessa relação ambígua com a mídia, que espontaneamente dá visibilidade à dura realidade desta categoria, mas alimentando representações sociais que responsabilizam os "motoboys" pelos acidentes, reforçando os preconceitos do público em relação a esses profissionais.

Os relatos referentes aos anos de implantação do setor evidenciam uma série de riscos decorrentes de irregularidades ou de processos arcaicos: transporte irregular, procedimentos de detonação, extração sem projeto de exploração da jazida, falta de EPIs e EPCs, não qualificação de empresários, supervisores e dos próprios mineiros vindos de ocupações agropecuárias etc. Reconhecem também que a redução dos acidentes foi acompanhada das mudanças tecnológicas e do processo de produção, como a substituição do fio helicoidal pelo fio diamantado, a substituição da dinamite em parte do processo e a adoção de novos equipamentos de trans- porte de chapas.

A seqüência escolhida para relatar esta história não é arbitrária: começa pela indignação e perda do olhar ingênuo em relação à realidade dos mineiros e termina nas transformações materiais do processo de produção, tornadas possíveis após a conscientização de todos os envolvidos e pela mobilização social em torno do problema dos acidentes e da saúde dos trabalhadores das pedras cuja realidade foi divulgada internacionalmente.

Sob o mesmo termo de "conscientização", abrigam-se realidades diversas da formação de opinião pública à transformação da visão de mundo dos trabalhadores que quebram os laços patriarcais e se reconhecem como trabalhadores assalariados, exigindo seus direitos trabalhistas e de preservação da saúde. Nesse processo, o mesmo acontece com os empresários:

Profundamente marcante para nós, foi o empresariado em geral ter entendido que o Sindimármore viera para ficar, que não desistiria da luta em defesa da vida e da qualidade de vida, e assim descobriram que deveriam se organizar. Diversas empresas melhoraram o ambiente de trabalho, modernizando-o, fator preponderante na redução dos acidentes. (OLIVEIRA, 2005, p. 136-137)

Há, todavia, um risco ao privilegiar a transformação das consciências em detrimento das mudanças objetivas. A avaliação citada acima tem um certo viés ao atribuir as melhorias das condições de trabalho à pressão social do sindicato, o que, na verdade, é apenas um dentre outros determinantes dessas mudanças. Razões de ordem econômica, como ganhos de produtividade e melhorias de qualidade são igualmente importantes para explicar as mudanças tecnológicas do setor. A internacionalização da produção e a verticalização da cadeia produtiva com o beneficiamento da pedra são outros determinantes de mudanças técnicas que também trazem melhorias nas condições de trabalho.

Diante da complexidade que caracteriza o setor do mármore e do granito, desde sua implantação heróica nos anos 1960 e 1970, é temerário privilegiar uma das linhas de força em detrimento das outras. A nosso ver, ainda que isto não seja ressaltado suficientemente nos estudos anteriores, a principal lição do processo de intervenção é a conjugação de: 1) pressão social dos sindicatos, estendida à mídia, 2) produção de conhecimentos e sistematização de informações, que davam legitimidade às denúncias e ao material técnico para orientar as mudanças do processo de produção; 3) mobilização e negociação social, com envolvimento direto dos trabalhadores e dos empresários, com apoio, intermediação e ação técnica e fiscalizadora do Estado; 4) mudanças objetivas das tecnologias e métodos de produção.

No entanto, com as mudanças do setor, em parte resultante desse movimento social por melhores condições de trabalho, todo esse processo deve ser retomado, agora em novas bases, mais coerentes com a situação atual das empresas e dos processos de produção. A situação atual não é menos complexa do que há 20 anos, quando parecia não haver saída possível para reduzir os acidentes. Hoje, apesar da pouca confiabilidade dos dados, é certo que a quantidade de acidentes diminuiu em termos absolutos. Mas, para avançar em relação ao patamar atingido, impõem-se reconhecer a nova complexidade do setor.

A partir de certo ponto, nenhuma mudança é simples, porque os problemas se tornam complexos, ou melhor, adquirem uma nova complexidade que coloca em xeque as ações até então eficazes. Esse princípio se aplica a qualquer situação de trabalho, exigindo o reconhecimento da teia complexa dos determinantes do problema em cada caso, teia de relações sempre específica e mutável com o tempo. Atualmente, esta complexidade depende da diversidade das relações trabalhistas e empresariais que substituíram as relações patriarcais e pessoais, da modernização favorecida pelo crescimento de empresas do setor, pela internacionalização dos mercados, pela entrada de empresas de outros setores, multinacionais, progressos técnicos, novas formas contratuais da relação capital/trabalho, como terceirização de mão-de-obra e subcontratação de serviços.

Aprendemos com a experiência dos mineiros do mármore e do granito que as conquistas foram possibilitadas pela conjugação de denúncia, organização social dos trabalhadores, produção de conhecimentos, intervenção direta do sindicato e mobilização social. Sugerimos, agora, que esses ingredientes sejam combinados de outras formas, em doses e momentos diferentes. A denúncia, por exemplo, deve ter um caráter de reconhecimento histórico e de celebração da memória e, ao mesmo tempo, uma homenagem e reconhecimento social dos acidentados e de seus familiares e ponto de partida para o avanço na prevenção. Para isto, talvez o conhecimento da realidade do setor deva ter um novo lugar: preceder a mobilização social e não derivar dela, como aconteceu nos anos 1980 e 1990.

Considerações finais

A considerar as experiências do Fórum e da comissão técnica relatadas no início deste trabalho, podemos concluir por um fracasso, pois nenhuma ação concreta pôde ser concluída, como aconteceu no setor do mármore e granito. Continuamos sem compreender como a terceirização está produzindo acidentes na construção civil e os itens da convenção coletiva esboçada pela comissão técnica não chegaram a ser debatidos pelos agentes sociais, trabalhadores, empregadores privados e contratantes de obras públicas. Falta-nos ainda o distanciamento suficiente para entender as razões deste insucesso, mas algumas lições positivas podem ser extraídas precisamente deste fracasso e que nos remetem às questões de fundo que reforçam a necessidade de ações coordenadas.

Uma primeira conclusão diz respeito à falta de compreensão de fenômenos tão importantes quanto a terceirização, com impactos sobre todos os aspectos das relações de trabalho, em especial no tocante à repercussão sobre a segurança no trabalho. Com efeito, como as instituições sociais, das fiscalizadoras às regulamentadoras, podem intervir em situações que tendem a instituir formas contratuais tão diversas que não cabem mais nos quadros convencionais? Apesar dos trabalhos da comissão não terem permitido esclarecer a fundo quais são as novas relações contratuais na construção civil, a simples definição deste conjunto de problemas mostra a necessidade de uma abordagem articulada de diferentes instituições e dos agentes sociais diretamente envolvidos nessas transformações.

Por outro lado, a falta de entendimento entre os diferentes agentes sociais sobre a questão das relações entre terceirização e acidentes reforça a necessidade de uma confrontação entre diferentes instituições. Não, evidentemente, no sentido de se buscar um consenso, mas sim de se estabelecer um debate aberto e instruído segundo critérios científicos e de efetividade prática. A discordância, em si benéfica, entre diferentes perspectivas institucionais, se mantida distante deste "laboratório social" que começou a se construir no Fórum, pode levar a estratégias bastante dissonantes entre instituições que deveriam não pensar de modo idêntico, mas pelo menos pensar conjuntamente e coordenar suas ações sobre uma mesma realidade.

Finalmente, não nos parece que a organização do Fórum tenha que ser resgatada ou mesmo repetida em outros lugares, mas a lição maior que ele nos dá é a própria necessidade que lhe deu origem: a de estabelecer ações coordenadas em uma instância supra-institucional. A experiência do setor de mármore e granito do Espírito Santo, com suas conquistas e impasses atuais, também nos serve de inspiração quanto à efetividade de arranjos semelhantes ao aqui proposto. Entendemos por supra-institucional um espaço social que possa se beneficiar das competências específicas de várias instituições sem limitar-se a uma simples agregação de conhecimentos e práticas, que carregam vícios conjuntamente com virtudes. Se quisermos mudar algo no campo da saúde do trabalhador, não basta continuar fazendo o que fazemos, nem tampouco fazer mais ou fazer melhor, mas sim transformar nossas próprias práticas. As ações coordenadas exigem que cada um de nós se transforme ao se confrontar com a perspectiva do outro, ambos mediados pela necessidade de se confrontar com a transformação efetiva das condições de trabalho. O que esta experiência nos ensinou é que coordenar ações é muito mais do que somar hábitos e modos de ser arraigados em cada instituição; exige que cada um se confronte a uma realidade menos deformada pelo viés institucional e profissional e que nos defrontemos com a complexidade efetiva dos problemas reais6 6 Na França, tornou-se lei a realização de ações multidisciplinares na prevenção da saúde do trabalhador. Os franceses estão quebrando a cabeça para entender o que é e como fazer este trabalho de prevenção interdisciplinar! Talvez tenhamos que esperar que esta lei nos contamine (assim como ocorreu com os mapas de risco) para começarmos a pensar em ações coordenadas, no interior de um novo quadro legal e institucional. Nossa pretensão é que não precisemos esperar (nem podemos esperar) solução institucional para um problema cuja natureza é supra-institucional. Teremos que andar com nossas próprias pernas e pensar com nossas próprias cabeças, sem esperar pelas novas modas parisienses. .

É possível que uma das debilidades deste arranjo supra-institucional seja precisamente a falta de um quadro institucional definido para coordenar as ações setoriais ou outras que o Fórum definiu como prioritárias. Não é novidade que os técnicos, individualmente, estão todos sobrecarregados pelas tarefas de suas próprias instituições e que a duplicação de atividades induzida pelas ações de um Fórum o tornaria inviável. Assim, um princípio fundamental para o bom funcionamento do Fórum, que existe pela adesão voluntária, seria a potencialização das tarefas cotidianas, usuais, e não a criação de tarefas novas oriundas das demandas do coletivo supra-institucional. Isto quer dizer que a DRT não deixará de fiscalizar, nem o Ministério Público, de inquirir e instaurar processos, ou a Universidade de fazer suas pesquisas, mas sim que essas atividades serão realizadas em sintonia. Trata-se, assim, de melhorar a coordenação das ações já realizadas e não de criar novas demandas. A mudança primordial, como dissemos, consiste menos no tempo dedicado a certas tarefas ou nas próprias tarefas, mas sim na reorientação de seu conteúdo e sua articulação com objetivos práticos, coletivamente compartilhados.

Nesse sentido, é prejudicial, tanto o isolamento atual em que vivem as instituições, como também um certo efeito mimético, com duplicação de atividades e de competências. O caso da Fundacentro, em busca de uma identidade, é sintomático. Uma possibilidade é que ela se desenvolva como instituição de pesquisa, reproduzindo o que as universidades, mal ou bem, já fazem. Outra possibilidade, no quadro de ações coordenadas, é que a Fundacentro assuma a coordenação de programas prioritários, como uma de suas tarefas institucionais (a exemplo da Anact, na França). Por vezes é sugerido que a universidade desempenhe este papel de coordenação, como se fossem ações de extensão, mas esta tarefa escapa às competências e especificidades do habitus acadêmico. Por outro lado, a tarefa de coordenação de ações e programas prioritários não exclui a produção de conhecimento, se esta é a escolha da Fundacentro, mas a redirecionaria para produzir conhecimentos sobre a prática de transformação social das condições de trabalho e não apenas sobre os objetos de transformação (organização do trabalho, tecnologia, produtos etc.). Este último é, mais propriamente, o objeto das universidades. Da mesma forma, se a Fundacentro privilegia ações práticas através de seminários, cursos e palestras, está reproduzindo, volens nolens, a tarefa da universidade (cujo campo possível de ação é, por excelência, moldar consciências) e deixando inexplorado todo o rico e complexo campo da prática das transformações sociais das condições de trabalho. Esta poderia ser uma competência institucional específica que daria um lugar natural, um quadro institucional, a ações supra-institucionais, eliminado a debilidade que consiste em coordenar ações fora de qualquer instituição, caso que acaba, necessariamente, por ferir o princípio de não duplicação de tarefas. Evidentemente o importante, aqui, não é atribuir a uma ou outra instituição um campo definido de forma estrita, mas sim reconhecer que existe uma lacuna de uma organização social voltada para a prática de transformação social das condições de trabalho. Ainda está por definir como será o lócus onde esta ação será organizada.

Um dos riscos que sempre espreitou o Fórum em cada uma de suas ações (presente desde o momento em que se estabeleceram os objetivos de denúncia e de ações de responsabilidade) foi que objetivos institucionais ocupassem o espaço que deveria ser supra-institucional, vale dizer, de que certas instituições o transformassem em espaço instrumental de seus objetivos particulares. Desta forma, apenas seriam reproduzidos conflitos, contradições e litígios sociais em escala menor, fazendo com que o Fórum, conforme o momento, assumisse papel equivalente ao de outras instâncias sociais. Assim, abriu-se espaço para denúncias (o que tendia a afastar os representantes patronais) ou para palestras acadêmicas (que afastavam os que buscavam ação), e assim por diante. É fácil ver que a eficácia transformadora desta sociedade em miniatura seria também diminuída, abortando qualquer processo de negociação. Com isso não queremos dizer que o Fórum pudesse substituir as lutas e processos sociais em real grandeza ou mesmo que pudesse ser mais efetivo, operar, por exemplo, mais transformações do que a ação do direito do trabalho, da fiscalização estatal ou dos sindicatos. Um espaço supra-institucional não pode substituir as instituições, apenas tornar sua ação costumeira mais eficiente. Em termos práticos, até aonde a transformação pode ir deixa de ser algo explicável pelos quadros de referência institucionais e passa a ser determinado pelo processo social, que se apresenta como parte integrante do processo de negociação das condições de sua própria transformação. Agindo no interior e como parte integrante desse processo social de transformação, cada agente social ou institucional é obrigado a se educar. A construção das possibilidades depende um pouco de nossa capacidade, os indivíduos, de transformar o quadro institucional no interior do qual realizamos nosso trabalho.

Contato:

Departamento de Engenharia de Produção

Escola de Engenharia da UFMG

Av. Antônio Carlos, 6627

31.270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil

E-mail: fpalima@ufmg.br

Recebido: 04/04/2008

Revisado: 08/10/2008

Aprovado: 15/10/2008

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  • *
    Este artigo incorpora excertos de uma versão reduzida publicada em Takahashi, M. A. B. C.; Vilela, R. A. G. (Org.).
    A saúde do trabalhador e saúde ambiental. Piracicaba: CRST, 2003. p. 143-151.
  • 1
    A proposta que ganhou corpo neste texto é de inteira responsabilidade do autor, embora ela tenha tido uma ampla acolhida pelos membros do Fórum.
  • 2
    A inspiração dessas ações setoriais são as experiências francesas patrocinadas pela Anact -
    Agence Nationale d'Amélioration des Conditions de Travail. Dentre outros programas, a cada ano são direcionadas ações para setores considerados críticos (abatedouros, agroindústria...), contemplando um menu completo: levantamento de dados, diagnóstico, elaboração de recomendações, negociação e financiamento das melhorias. Para realizar estas atividades são envolvidos diversos agentes e instituições sociais.
  • 3
    Dada a natureza de ensaio deste relato, é impossível oferecer um quadro teórico que possa situar esta experiência e a proposta que esboçamos a partir dela, mas nos apoiamos em duas décadas de pesquisa e intervenção no campo da saúde do trabalhador. Por isso o relato em primeira pessoa, inadequado em textos científicos, mas que optamos por manter neste ensaio. No que diz respeito à produção do conhecimento, esta proposta filia-se ao paradigma ergológico, desenvolvido por Yves Schwartz e sua equipe de Aix-en-Provence. Sobre a ergologia, algumas obras de síntese e coletâneas oferecem uma boa visão: Schwartz (1998; e 2000); Schwartz e Durrive (2007). Para um primeiro balanço de uma experiência ainda em andamento no Brasil, de uma produção de conhecimento multi e transdisciplinar, inspirada na ergologia, ver Cunha e Orban (2005) e Cunha (2007). O debate iniciado no campo da ergonomia da atividade oferece um quadro analítico dos problemas do trabalho e de intervenção social (DANIELLOU, 2004, em especial a contribuição de Yves Schwartz, p. 141-180).
  • 4
    As negociações em torno das condições de trabalho dos motociclistas profissionais também poderia ser discutida à luz deste arranjo. Várias ações já foram encaminhadas desde a pesquisa de Diniz (2003), inclusive se apoiando no Fórum (ver DINIZ; JACKSON FILHO; SAMPAIO, 2006).
  • 5
    Por causas subjetivas, referimos-nos não apenas às representações sociais e aos valores culturais que atribuem um sentido aos acidentes, como analisados por Moulin (2006), mas também aos processos sócio-cognitivos que sempre precedem a avaliação de uma situação de trabalho específica, a atribuição de riscos e o controle da ação. Nessa perspectiva da análise sócio-cognitiva dos acidentes, o risco está sempre presente, não pode ser eliminado conforme pretendido pela engenharia de segurança, mas deve ser controlado pelos trabalhadores por meio da experiência e de estratégias de ação coletivas.
  • 6
    Na França, tornou-se lei a realização de ações multidisciplinares na prevenção da saúde do trabalhador. Os franceses estão quebrando a cabeça para entender o que é e como fazer este trabalho de prevenção interdisciplinar! Talvez tenhamos que esperar que esta lei nos contamine (assim como ocorreu com os mapas de risco) para começarmos a pensar em ações coordenadas, no interior de um novo quadro legal e institucional. Nossa pretensão é que não precisemos esperar (nem podemos esperar) solução institucional para um problema cuja natureza é supra-institucional. Teremos que andar com nossas próprias pernas e pensar com nossas próprias cabeças, sem esperar pelas novas modas parisienses.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Revisado
      08 Out 2008
    • Recebido
      04 Abr 2008
    • Aceito
      15 Out 2008
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