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Políticas públicas de saúde do trabalhador no Brasil: oportunidades e desafios

Public occupational health policies in Brazil: opportunities and challenges

DEBATEDOR

Políticas públicas de saúde do trabalhador no Brasil: oportunidades e desafios

Public occupational health policies in Brazil: opportunities and challenges

Claudia Vasques ChiavegattoI; Eduardo AlgrantiII

IDepartamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: cauvasques@yahoo.com.br

IIServiço de Medicina, Fundacentro, São Paulo, SP, Brasil

O ensaio de Costa, Lacaz, Jackson Filho e Vilela apresenta uma crítica à forma como historicamente vêm sendo tratadas as questões do binômio saúde-trabalho no Brasil, pautada em interesses econômicos muitas vezes velados e atualmente regidos pela política neoliberal do Estado. Artigo lúcido, traz questões cujas respostas são fundamentais para o desenvolvimento efetivo de ações de saúde do trabalhador, como a identificação e o compartilhamento de experiências de sucesso, a construção compartilhada de políticas públicas e o reconhecimento dos nós críticos do processo de desenvolvimento destas ações, tanto no tangente à organização do trabalho nos serviços de saúde básica ou especializados, quanto no tocante a questões macroestruturais de economia e política.

A atenção à Saúde do Trabalhador contempla três níveis de atuação: a) a vigilância, aqui incluídas as ações destinadas à definição dos perigos e dos riscos inerentes a um processo de trabalho e à consequente promoção de medidas que visam ao adequado controle dos perigos e riscos e de controle médico, assim como um programa que permita a coleta e a análise dos dados gerados; b) a assistência à saúde, incluindo serviços de acolhimento, atenção, condutas clínicas e ocupacionais e um sistema de benefícios justo; e c) a abordagem e a conduta apropriadas aos determinantes sociais, individuais ou de grupos, que impactam negativamente na saúde da maioria dos trabalhadores.1 1 Disponível em: < ttp://whqlibdoc.who.int/publications/2010/9789248563706_por.pdf>. Acesso em: 28 maio 2013

Pela interdisciplinaridade da área e o amplo leque de ações, há necessidade da interveniência de setores públicos distintos, representados pelo Trabalho, pela Saúde e pela Previdência, que deveriam atuar de forma conjunta e complementar. Estes setores, entretanto, trabalham com lógicas absolutamente distintas, fazendo com que a integração aconteça apenas em intenções e discursos, sem resultados práticos de expressão.

O setor Trabalho envereda por uma lógica de "tripartismo" para definir e pautar suas ações, permitindo pouca flexibilidade de ações, diferentemente do setor Saúde, que adota uma política de "pactuação" para desenvolver ações regionais e locais de saúde sujeita a constantes flutuações na dependência dos interesses políticos envolvidos. A Previdência acaba sendo o repositório final que acolhe as consequências de uma política ineficaz, adotando, por sua vez, um enfoque reducionista que privilegia uma visão contábil do grave problema das doenças e dos acidentes do trabalho. Tanto o setor Trabalho, quanto Previdência têm sua ingerência restrita aos trabalhadores formais. Somente o setor Saúde é capaz de levar a atenção aos trabalhadores informais, que representam cerca de 48% da população trabalhadora.2 2 Disponível em: < http://www.ipeadata.gov.br/>. Acesso em: 26 maio 2013.

Desde os anos 1990, o serviço público vem sofrendo profundas alterações. O chamado "desmonte" do serviço público não o é na realidade. Muito mais, trata-se de um "remonte" em que se privilegiam as áreas arrecadatórias em detrimento das áreas de normatizações, regulamentação e controle. O tema Saúde e Trabalho é um exemplo típico: a área do Trabalho tem privilegiado a questão da formalização do vínculo trabalhista em claro detrimento à inspeção de locais de trabalho por trazer visibilidade ao governo na forma de "novos postos de trabalho" e por aumentar a arrecadação. O setor Saúde criou a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast) com sua rede de Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerests) de distintos níveis e, mais recentemente, editou a Política Nacional de Saúde dos Trabalhadores e Trabalhadoras (BRASIL, 2012), entretanto, a estruturação da rede enfrenta enormes obstáculos pela limitada importância desta área dentro da estrutura ministerial, aliada a interesses políticos que, com frequência, têm um grande impacto na constituição, nas atribuições e na autonomia dos Cerests. A Previdência, se por um lado inovou com a criação do Nexo Técnico Epidemiológico, criou mecanismos restritivos, como a alta programada de benefícios e a quase inexistência de reabilitação profissional, criando uma legião de doentes e acidentados que não têm o amparo do Estado nos seus direitos básicos.

A alta ineficiência do Estado cria um vazio que, por uma simples lei física, acaba sendo ocupado pelo Ministério Público (MP) e pelos Tribunais Regionais de Trabalho simplesmente porque não há instâncias a recorrer. Louve-se aqui a atuação do MP, que vem sendo um real parceiro para que um mínimo de equidade seja adicionado aos graves problemas individuais e de grupos que enfrentamos na rotina. Um tema de grande interesse a ser pesquisado é o custo envolvido na crescente judicialização das questões de saúde e trabalho. É provável que sejam muito superiores aos gastos envolvidos com a vigilância e a assistência à saúde, tanto para o Estado, quanto para as empresas.

Recentemente foi publicada a Política Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho (BRASIL, 2011) que, como bem comentado por Costa e colegas, nada mais é do que o rol de atribuições de cada um dos setores, sem que haja a definição de linhas práticas de política que os integrem. Os autores dissertam sobre os problemas a serem enfrentados, referindo-se a algumas experiências pontuais bem-sucedidas, e ao mesmo tempo apontam os obstáculos, assim como a possibilidade da rede básica, auxiliada pelos Cerests, ter uma ação efetiva de impacto, principalmente no que concerne ao mercado informal. São desafios hercúleos em um contexto atual desfavorável.

Desde a criação do SUS, com a promulgação da Lei nº 8.080 (BRASIL, 1990), têm sido numerosos os percalços do caminho em busca do desenvolvimento de ações abrangentes e integrais de saúde do trabalhador. Entende-se que a atenção integral aos trabalhadores deva ter como carro chefe ações desenvolvidas pela atenção primária, mas, não obstante, lançam os autores questionamento que se faz necessário: "Será possível acreditar que ações de vigilância e intervenção ocorrerão a partir das ações da rede básica"? A resposta a tal inquisição deve ser SIM, mas existe a demanda de trabalho árduo para a superação dos inúmeros entraves a este caminho, que, apesar de recomendado e lógico, é também absolutamente desafiador. Alguns obstáculos começam a ser superados.

Se a princípio argumentava-se sobre a resistência dos profissionais da atenção primária, sobrecarregados de atividades e programas pelo governo federal, hoje caminhamos para a ampliação do olhar da atenção primária sobre o trabalho e para o reconhecimento dos seus reflexos sobre o viver e adoecer dos trabalhadores, de sua família e da comunidade, demonstrado por estudos que apontam o reconhecimento destes profissionais quanto ao seu papel no desenvolvimento das ações de saúde do trabalhador (CHIAVEGATTO, 2010; LACERDA E SILVA, 2009).

Entretanto, a estratégia de inserir estas ações na atenção primária só será efetiva se forem estruturadas profundas mudanças para a superação das dificuldades que se apresentam e que estão fundamentalmente ligadas a questões como o subdimensionamento das equipes, a formação e a capacitação inadequadas e a carência de suporte técnico efetivo, com procedimentos de referência e contrarreferência deficientes, dentre outras (DIAS et al., 2011).

Neste novo cenário, a Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde (CGSAT) tem adotado como estratégia a integração da vigilância em Saúde do Trabalhador junto aos demais componentes da vigilância em saúde, comentada no texto de Costa e colegas como de difícil resultado prático, dada a complexidade de ações próprias da área de Saúde do Trabalhador; a análise do perfil produtivo e da situação de Saúde dos Trabalhadores; a efetiva estruturação da Renast, no contexto da Rede de Atenção à Saúde (RAS); o fortalecimento e a ampliação da articulação intersetorial; o estímulo à participação da comunidade, dos trabalhadores e do controle social; o desenvolvimento e a capacitação de recursos humanos; e o apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas (VILAS BOAS, 2011).

Dentre tais iniciativas estratégicas, podemos citar projetos de apoio matricial em saúde do trabalhador, nos quais tanto Cerests, quanto instâncias de gestão e referências técnicas em Saúde do Trabalhador e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) asseguram suporte assistencial e técnico-pedagógico à atenção básica, assim como à atenção especializada e hospitalar; o compartilhamento de experiências exitosas através de mostras e oficinas; o estabelecimento de cooperação técnica com a Universidade Federal de Minas Gerais para a produção de conhecimento na área (DIAS, 2012); a revisão do Caderno de Atenção Básica número 5 (BRASIL, 2002) e a elaboração do Caderno de Atenção Básica - Núcleo de Apoio à Saúde da Família (BRASIL, 2010), dentre outras.

Caminhamos para um novo momento da Saúde do Trabalhador com foco na prevenção e na promoção à saúde e os objetivos não serão alcançados sem um planejamento estratégico. Os dados sobre o trabalho até então sistematizados no Brasil são frágeis e de difícil acesso, restritos à parcela inserida no mercado formal da economia e sob a tutela da Previdência Social. Merece destaque neste contexto a iniciativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT) na produção de estatísticas apropriadas para monitorar o progresso do trabalho decente, iniciativa da qual o Brasil faz parte e relativo ao qual, em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e com o apoio do Ministério do Trabalho e Emprego, do Fórum Nacional de Secretarias do Trabalho (Fonset) e a colaboração do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vem ampliando a produção de indicadores capazes de refletir o real cenário do binômio saúde-trabalho no Brasil, incluindo crescentemente parcelas de trabalhadores até então à margem das estatísticas oficiais (GUIMARÃES, 2012).

Nesta nova era de produção de indicadores, o Sistema Único de Saúde deve assumir o seu papel na geração de dados enquanto instância com amplo acesso aos riscos domiciliados e à população trabalhadora na informalidade. Reforçando o ensaio de Costa e colegas, somente uma política de Estado adequada poderá dar sustento a este enfoque.

Referências

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______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 ago. 2012. Seção I, p. 46-51. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html>. Acesso em: 13 jun. 2013.

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DIAS, E. C. (Coord.). Desenvolvimento de conceitos e instrumentos facilitadores da inserção de ações de saúde do trabalhador na atenção primária de saúde, no SUS. Belo Horizonte: UFMG, 2012. (Relatório técnico final)

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CHIAVEGATTO, C . V. A Atenção Primária e sua percepção quanto ao desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador no SUS em Minas Gerais. 2010. 128 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública)-Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2010.

LACERDA E SILVA, T. Contribuição ao processo de capacitação dos ACS para o desenvolvimento de ações de saúde do Trabalhador. 2009. 146 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública)-Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, 2009.

GUIMARÃES, J. R. S. Perfil do trabalho decente no Brasil: um olhar sobre as unidades da Federação. Brasília: OIT, 2012.

VILAS BOAS, S. W. Apresentação do manual da gestão da Renast. In: ENCONTRO NACIONAL DA RENAST, 5., 2011. Relatório final. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: <http://189.28.128.179:8080/pisast/saude-do-trabalhador/v-encontro-nacionalrenast>. Acesso em: maio. 2013

Recebido: 10/06/2013

Aprovado: 13/06/2013

  • BRASIL. Lei nş 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 13 jun. 2013.
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  • DIAS, E. C. (Coord.). Desenvolvimento de conceitos e instrumentos facilitadores da inserção de ações de saúde do trabalhador na atenção primária de saúde, no SUS Belo Horizonte: UFMG, 2012. (Relatório técnico final)
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  • GUIMARÃES, J. R. S. Perfil do trabalho decente no Brasil: um olhar sobre as unidades da Federação. Brasília: OIT, 2012.
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    Disponível em: <
    http://www.ipeadata.gov.br/>. Acesso em: 26 maio 2013.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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