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O agricultor familiar e o uso (in)seguro de agrotóxicos no município de Lavras/MG

Resumo

Introdução:

o paradigma do "uso seguro" de agrotóxicos sustenta-se em medidas de controle dos riscos envolvidos na manipulação desses produtos. No entanto, estudos realizados no Brasil revelam um quadro de exposição e danos à saúde de trabalhadores rurais.

Objetivo:

realizar uma análise da viabilidade de cumprimento das medidas de "uso seguro" de agrotóxicos no contexto socioeconômico da agricultura familiar.

Métodos:

estudo transversal com aplicação de questionário em 81 pequenas propriedades rurais do município de Lavras/MG, em 2013.

Resultados:

constatou-se que os funcionários do comércio são os responsáveis pela indicação para o uso e aquisição desses produtos; o transporte e o armazenamento são realizados em veículos e construções não adaptados às exigências de segurança; existe inviabilidade técnica para seguir as medidas relacionadas aos Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e às regras de preparo e aplicação do agrotóxico; as dificuldades e os custos envolvidos para a devolução das embalagens vazias são os principais motivos para a sua não realização; a lavagem das vestimentas e EPIs contaminados é feita como atividade doméstica sem infraestrutura de segurança.

Conclusão:

a tecnologia agroquímica não pode ser utilizada sob o conceito de controle de riscos na estrutura geral das unidades produtivas de agricultura familiar.

Palavras-chave:
agrotóxicos; risco; vigilância sanitária ambiental; saúde da população rural; fatores socioeconômicos

Abstract

Introduction:

the pesticides "safe use" paradigm relies on the hazard control measures concerning handling of these products. However, studies carried out in Brazil reveal a scenario of rural workers' exposure and health problems.

Objective:

to analyze the feasibility of pesticides "safe use" measures in the social and economic context of the family farmers from Lavras, Minas Gerais, Brazil.

Methods:

cross-sectional study with with 81 small family farms, in Lavras, Minas Gerais, Brazil, in 2013.

Results:

purchase, transportation and storage facilities do not meet the "safe use" requirements; there is technical unfeasibility to follow safety measures related to Personal Protective Equipment (PPE) as well as the rules concerning the preparation and application of pesticides; social and economic obstacles are the main reasons for not returning empty containers and for washing contaminated clothes and PPE at home.

Conclusion:

considering the general structure of family farms production, agrochemical technology cannot be employed under the "safe use" paradigm.

Keywords:
pesticide; hazard; environmental health surveillance; rural population health; socioeconomic factors

Introdução

Em decorrência do aumento dos casos de intoxicação por agrotóxicos nos países em desenvolvimento e da pressão exercida por organizações não governamentais e por órgãos internacionais de saúde, como a World Health Organization (WHO), e de meio ambiente, como a United Nations Environment Programme (UNEP), a Food and Agriculture Organization (FAO/ONU) lançou, em 1986, o Código Internacional de Conduta para Distribuição e Uso de Agrotóxicos11. Food and Agriculture Organization of the United Nations. International Code of Conduct on Pesticide Management [Internet]. c2007-13 [citado em 2013 dez 19] Disponível em: http://www.fao.org/agriculture/crops/thematic-sitemap/theme/pests/code/en/
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, contando, em sua elaboração, com estreita participação do International Group of National Associations of Agrochemical Manufacturers (GIFAP) - associação das indústrias químicas responsável por garantir os interesses do setor em âmbito internacional. O código estabelece padrões de conduta para o comércio e uso eficiente e seguro dos agrotóxicos, listando diretrizes para governos, indústrias, empregadores e trabalhadores rurais. Em suma, o código afirma a segurança dos agrotóxicos desde que sejam utilizados de forma correta22. Murray DL, Taylor PL. Claim no easy victories: evaluating the pesticide industry's global safe use campaign. World Dev. 2000;28(10):1735-49.), (33. Wesseling C, Chaverri RFC. Safe use of pesticides: a developing country's point of view. Oxford: Taylor & Francis; 2007. p. 558-81..

No início da década de 1990, baseado nesse código de conduta, a GIFAP (na época renomeada para Global Crop Protection Federation - GCPF - e atualmente para CropLife International) lançou a Campanha de Uso Seguro de Agrotóxicos, cujo projeto piloto foi desenvolvido na Guatemala, Quênia e Tailândia. Apesar da divulgação pela GCPF de resultados supervalorizados, baseados em dados falaciosos, desde então, os debates e ações públicas destinadas a populações expostas aos riscos e danos dos agrotóxicos nos países em desenvolvimento se concentram nas estratégias de "uso seguro" (22. Murray DL, Taylor PL. Claim no easy victories: evaluating the pesticide industry's global safe use campaign. World Dev. 2000;28(10):1735-49..

No Brasil, as leis, decretos e normas que regulamentam a produção, comercialização, fiscalização e utilização de agrotóxicos44. Brasil. Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília; 12 jul 1989.), (55. Brasil. Decreto nº 4.074, de 8 de janeiro de 2002. Regulamenta a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, que dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília; 8 jan 2002.), (66. Brasil. Portaria nº 86, de 3 de março de 2005. Aprova a norma regulamentadora de segurança e saúde no trabalho na agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura - NR 31. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília; 4 mar 2005. incorporaram, a partir de 1989, as diretrizes do Código Internacional de Conduta para a Distribuição e Uso de Agrotóxicos11. Food and Agriculture Organization of the United Nations. International Code of Conduct on Pesticide Management [Internet]. c2007-13 [citado em 2013 dez 19] Disponível em: http://www.fao.org/agriculture/crops/thematic-sitemap/theme/pests/code/en/
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como base conceitual e seguiram a cartilha do "uso seguro" como paradigma de proteção da saúde humana e do meio ambiente77. Rigotto RM, Rosa IF. Agrotóxicos. In: Caldart RS, et al. Dicionário da educação do campo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Expressão Popular; 2012. p. 86-94.. Além de desconsiderar o incentivo aos modelos de produção de alimentos de base ecológica e ao desenvolvimento de tecnologias alternativas para a preservação da produção, este marco regulatório exclui 12,3 milhões de trabalhadores "autônomos" rurais familiares, categoria que corresponde a 84,4% dos estabelecimentos rurais do País, emprega 74% da mão de obra do campo e provêm 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros88. Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2006 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2009 [citado em 2013 mar 3]. Disponível em: http://www.mma.gov.br/estruturas/sds_dads_agroextra/_arquivos/familia_censoagro2006_65.pdf
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. Estes agricultores têm livre acesso a agrotóxicos, porém não têm definidas a fiscalização e as garantias trabalhistas da forma "segura" de utilização destes produtos.

As consequências desse estímulo estatal e industrial à utilização intensiva de agrotóxicos, associadas a políticas públicas de saúde, meio ambiente e trabalho baseadas no paradigma do "uso seguro", têm se revelado nos crescentes casos de intoxicações agudas99. Oliveira-Silva JJ, et al. Influência de fatores socioeconômicos na contaminação por agrotóxicos, Brasil. Rev. Saúde Pública. 2001;35(2):130-5.), (1010. Faria NMX, et al. Trabalho rural e intoxicações por agrotóxicos. Cad. Saúde Pública. 2004;20(5):1298308.), (1111. Schmidt MLG, Godinho PH. Um breve estudo acerca do cotidiano do trabalho de produtores rurais: intoxicações por agrotóxicos e subnotificação. Rev. Bras. Saúde Ocup. 2006;31(113):27-40.), (1212. Pignatti WA, Machado JMH, Cabral JF. Acidente rural ampliado: o caso das "chuvas" de agrotóxicos sobre a cidade de Lucas do Rio Verde MT. Ciênc. Saúde Coletiva. 2007;12(1):105-14.), (1313. Veiga MM, et al. A contaminação por agrotóxicos e os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Rev. Bras. Saúde Ocup. 2007;32(116):57-68.), (1414. Faria NMX, Rosa JAR, Facchini LA. Intoxicações por agrotóxicos entre trabalhadores rurais de fruticultura, Bento Gonçalves, RS. Rev. Saúde Pública. 2009;43(2):335-44.), (1515. Bedor CNG. Vulnerabilidades e situações de riscos relacionados ao uso de agrotóxicos na fruticultura irrigada. Rev. Bras. Epidemiol. 2009;12(1):39-49.), (1616. Preza DLC, Auguto LGS. Vulnerabilidades de trabalhadores rurais frente ao uso de agrotóxicos na produção de hortaliças em região do Nordeste do Brasil. Rev. Bras. Saúde Ocup. 2012;37(125):8998.), (1717. Cabral ERM. Exposição aos agrotóxicos: implicações na saúde de trabalhadores agrícolas de uma região de Campinas-SP. Campinas. Dissertação [Mestrado em Saúde Coletiva] - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2012.), (1818. Santana VS, Moura MCP, Nogueira FF. Mortalidade por intoxicação ocupacional relacionada a agrotóxicos, 2000-2009, Brasil. Rev. Saúde Pública. 2013;47(3):598-606. e crônicas1919. Salvi RM, et al. Neuropsychiatric evaluation in subjects chronically exposed to organophosphate pesticides. Toxicol Sci. 2003;72:267-71.), (2020. Neves PDM, Bellini M. Intoxicações por agrotóxicos na mesorregião norte central paranaense, Brasil - 2002 a 2011. Ciênc. Saúde Coletiva. 2013;18(11):3147-56.), (2121. Chrisman JR, et al. Pesticide sales and adult male cancer mortality in Brazil. Int J Hyg Environ Health. 2009;212(3):310-21., principalmente, entre os agricultores familiares.

No entanto, ao analisar estudos realizados em diversas regiões rurais brasileiras2222. Abreu PHB, Alonzo HGA. Trabalho rural e riscos à saúde: uma revisão sobre o "uso seguro" de agrotóxicos no Brasil. Ciênc. Saúde Coletiva. 2014;19(10):4197-208. nota-se que estes não apresentam, simultaneamente, dados sobre todas as atividades de trabalho que envolvem exposição e contaminação por agrotóxicos. Da mesma forma, se considerada a ampla gama de medidas descritas nos manuais de segurança, as análises do "uso seguro" dentro de cada uma dessas atividades tem sido realizadas de forma restrita2222. Abreu PHB, Alonzo HGA. Trabalho rural e riscos à saúde: uma revisão sobre o "uso seguro" de agrotóxicos no Brasil. Ciênc. Saúde Coletiva. 2014;19(10):4197-208..

Considerando-se, portanto, que a abordagem fragmentada e pouco abrangente do "uso seguro" de agrotóxicos pode ser limitada para demonstrar a insuficiência deste paradigma no contexto socioeconômico da agricultura familiar e para revelar as consequências sanitárias e ambientais de sua adoção no marco legal e nas políticas públicas para a agricultura familiar, este trabalho objetiva identificar as práticas de uso de agrotóxicos nas atividades de aquisição, transporte, armazenamento, preparo e aplicação, descarte de embalagens vazias e lavagem de roupas e equipamentos contaminados.

Métodos

Estudo transversal realizado nas 19 comunidades que constituem a zona rural de Lavras, Minas Gerais, em 2013, onde residiam, aproximadamente, 5% dos

habitantes do município2323. Brasil. Censo demográfico 2010 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE, 2011 [citado em 2013 mar 3]. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/resultados_do_censo2010.php
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. Tais comunidades são núcleos populacionais historicamente estabelecidos e espacialmente distribuídos no entorno rural do município, e são utilizadas pelo governo municipal para organizar e gerir a prestação de serviços públicos, como assistência técnica rural, reparação de estradas e a Estratégia Saúde da Família (ESF).

A definição da população de agricultores familiares para a realização deste estudo se daria, inicialmente, pela utilização do cadastro de agricultores familiares que a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) afirmava dispor. Identificou-se, porém, que esse "cadastro" se tratava de uma relação nominal de agricultores familiares que buscaram atendimento nesta instituição em algum momento, não estando os nomes agrupados por "família", "propriedade", "comunidade" ou qualquer outra forma de categorização. Esta relação tinha 1.613 nomes (incluindo, por exemplo, mais de um membro da mesma família, pessoas que se mudaram da zona rural e até falecidas) e o respectivo número de documento pessoal (CPF ou RG). Porém, tanto a Secretaria Municipal de Assuntos Rurais quanto a própria Emater local, estimam haver em torno de 600 unidades produtivas de agricultura familiar em Lavras.

A solução encontrada para definir com maior precisão a população a ser estudada, bem como a distribuição proporcional das famílias de agricultores familiares nas comunidades da zona rural do município, foi a obtenção da lista de famílias/unidades produtivas atendidas por cada um dos Agentes Comunitários de Saúde da Zona Rural e por duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) que atendem comunidades rurais localizadas em suas proximidades. Como estas listas não discriminam quais famílias caracterizam-se como agricultores familiares ou como médios e grandes produtores, cruzou-se os nomes dos representantes das famílias com os nomes da relação nominal de agricultores familiares da Emater. Desta forma, foram identificadas 440 famílias/unidades produtivas distribuídas nas 19 comunidades rurais do município. Este número foi definido como a população-alvo do estudo.

Seguindo a distribuição espacial das comunidades no entorno do município, foram definidas quatro regiões rurais:

  • Norte: Funil e Paiol, totalizando 18% das famílias/unidades produtivas;

  • Sul: Serrinha, Cachoeirinha, Tomba, Faria e Ponte Alta, totalizando 19% das famílias/unidades produtivas;

  • Leste: Fonseca, Tabuões e Itirapuã, totalizando 12% das famílias/unidades produtivas;

  • Oeste: Queixada, Engenho de Serra, Pimentas, Maranhão, Rosas, Três Barras, Salto das Três Barras, Cajuru e Boa Vista, totalizando 51% das famílias/unidades produtivas;

Para obter o tamanho da amostra foi utilizado cálculo amostral para proporções, considerando-se os seguintes parâmetros: nível de significância de 5%, erro de amostragem de 10% e prevalência de 0,50. Assim, do total de 440 unidades produtivas de agricultura familiar foram amostradas 81 propriedades2424. Cochran WG. Sampling Techniques. New Jersey: John Wiley & Sons; 1977., sendo estas as unidades de análise da pesquisa. O emprego de erro de amostragem de 5% resultaria em um tamanho amostral de quase 50% das unidades produtivas. Desta forma, por se tratar de um estudo descritivo e não analítico, optou-se por assumir um erro maior (10%) e obter um tamanho amostral factível. As 81 unidades produtivas e famílias visitadas e entrevistadas foram distribuídas proporcionalmente segundo o número de famílias em cada uma das quatro regiões rurais.

Para selecionar os entrevistados, houve distribuição dos nomes dos representantes das famílias/unidades produtivas, de cada comunidade, nas quatro regiões rurais, mantendo, neste momento, os nomes de cada comunidade separados e em ordem alfabética. Na região Norte, por exemplo, os primeiros 39 nomes da lista referiam-se aos representantes das famílias da comunidade do Funil em ordem alfabética e os próximos 40 nomes referiam-se aos representantes das famílias da comunidade do Paiol, também em ordem alfabética. Então, ao ordenar todos os 79 nomes em ordem alfabética, criou-se uma lista aleatória da região, "embaralhando-se" as famílias da comunidade do Funil e do Paiol. O mesmo foi realizado para as demais regiões rurais.

Em seguida, apresentou-se a lista das regiões aos Agentes Comunitários de Saúde da zona rural e das UBS. Estes fizeram a identificação das famílias/unidades produtivas que "com certeza usavam" ou "provavelmente usavam" agrotóxicos e das que "com certeza não usavam". Após este filtro, uma nova lista foi elaborada, mantendo a ordenação já citada, composta apenas pelos agricultores que "com certeza" ou "provavelmente usavam" agrotóxicos. Considerando-se o tamanho da lista pós-filtro e o número de entrevistas necessárias em cada região, fizemos o sorteio para definir quais famílias seriam entrevistadas e as "famílias suplentes", substitutas das famílias sorteadas para a amostra em caso de impossibilidade de realização de alguma entrevista. Obteve-se, assim, uma amostra aleatória sistemática de valor representativo para a população de agricultores familiares do município.

Para levantamento dos dados foi elaborado um questionário semiestruturado composto por dois eixos de perguntas: Caracterização Socioeconômica e Práticas de Trabalho Relacionadas ao Uso de Agrotóxicos. As perguntas foram elaboradas com base em publicações da associação das indústrias químicas no Brasil - Associação Nacional de Defesa Vegetal (ANDEF)2525. Iwami A, et al. Manual de uso correto e seguro de produtos fitossanitários. São Paulo: Linea Creativa; 2010.), (2626. Associação Nacional de Defesa Vegetal. Manual de armazenamento de produtos fitossanitários. Campinas: Linea Creativa; 2010.), (2727. Associação Nacional de Defesa Vegetal. Manual de transporte de produtos fitossanitários. Campinas: Linea Creativa; 2010.), (2828. Associação Nacional de Defesa Vegetal. Manual de uso correto de equipamentos de proteção individual. Campinas: Linea Creativa; 2003.), (2929. Associação Nacional de Defesa Vegetal. Manual de segurança e saúde do aplicador de produtos fitossanitários. Campinas: Linea Creativa; 2006.), (3030. Associação Nacional de Defesa Vegetal. Boas práticas agrícolas no campo [Internet]. c2010 [citado em 2013 mar 21]. Disponível em: http://www.andefedu.com.br/uploads/img/manuais/arquivo/manual_de_boas_praticas.pdf
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-, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)3131. Brasil. Cartilha sobre Agrotóxicos: série trilhas do campo [Internet]. 2011 [citado em 2013 mar 2]. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/documents/111215/451956/Cartilha+sobre+Agrot%C3%B3xicos+S%C3%A9rie+Trilhas+do+Campo/6304f09d-871f-467b-9c4a-73040c716676
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, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)3232. Chaim A, Frighetto RTS, Valarini PJ. Manejo de agrotóxico e qualidade ambiental: manual técnico. Jaguariúna: Embrapa Meio Ambiente; 1999. e da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro - Ministério do Trabalho e Emprego)3333. Garcia EG, Alves Filho JP. Aspectos de prevenção e controle de acidentes no trabalho com agrotóxicos. São Paulo: Fundacentro; 2005.. Foram entrevistados agricul tores familiares maiores de 18 anos que trabalham na propriedade da família, mesmo que não exclusivamente, sendo utilizada a definição de agricultura familiar descrita na Lei nº 11.326/20063434. Brasil. Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília; 25 jul 2006..

Para a caracterização socioeconômica dos agricultores foram entrevistados os responsáveis pelas propriedades (proprietário ou outro familiar que tivesse o mesmo nível de responsabilidade e de decisão quanto à produção). Para o levantamento dos dados relacionados às práticas de trabalho com agrotóxicos foram entrevistados trabalhadores da propriedade que realizam atividades com exposição direta, sendo, neste trabalho, os que manipulam os agrotóxicos, adjuvantes e produtos afins em quaisquer das atividades de aquisição, transporte, armazenamento, preparo e aplicação, destino final das embalagens vazias e lavagem de roupas e de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) contaminados. Desta forma, foram aplicados os eixos "Caracterização Socioeconômica" e também os blocos de perguntas do eixo "Práticas de Trabalho Relacionadas ao Uso de Agrotóxicos" aos agricultores familiares responsáveis pelas unidades produtivas que realizavam as atividades de trabalho com exposição direta. Entretanto, nos casos em que esses agricultores não realizavam alguma dessas atividades, outros trabalhadores da unidade produtiva foram entrevistados.

O trabalho teve como critério de exclusão agricultores familiares que não utilizavam agrotóxicos em suas propriedades e trabalhadores rurais menores de 18 anos.

Devido à extensão do trabalho de campo, as entrevistas foram realizadas em duas etapas, divididas entre os dias 15 de julho e 7 agosto e entre os dias 10 e 12 de dezembro de 2013. Os dados coletados foram inseridos em banco eletrônico e analisados utilizando-se o software EpiDataAnalysis (versão 2.2.2.182)3535. Epidata. Computer program, version 2.2.2.182. Odense (Denmark): EpiData Association; 20002008.. Foi realizada a análise descritiva das características socioeconômicas dos agricultores familiares, das características das unidades produtivas e do padrão de uso de agrotóxicos. Em seguida, foi feita a análise das práticas de trabalho relacionadas ao uso de agrotóxicos, identificando sua adequação conforme medidas preconizadas pelo paradigma do "uso seguro" de agrotóxicos nos manuais utilizados para a elaboração do questionário.

O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas sob parecer número 313.375, de 24 de junho de 2013. Obteve-se, também, autorização da Secretaria Municipal de Saúde de Lavras-MG para o desenvolvimento e realização das entrevistas na zona rural do município.

Resultados

No total, 136 trabalhadores foram entrevistados nas 81 unidades produtivas visitadas, sendo 81 agricultores familiares responsáveis pelas propriedades e outros 55 trabalhadores que manipulavam agrotóxicos. Apenas os responsáveis por duas unidades produtivas se recusaram a participar do estudo, sendo estas substituídas por unidades "suplentes" previamente sorteadas para esta finalidade. O estudo não apresentou perdas.

Os limites mínimo e máximo das áreas das unidades produtivas visitadas foram de 0,4 e 115,0 ha, com média de 31,7 e mediana de 24,0 ha. A mão de obra geral (pessoas que trabalhavam diretamente com agrotóxicos ou não) variou entre 1 e 12 trabalhadores por propriedade (Tabela 1).

Tabela 1
Unidades produtivas de agricultura familiar segundo características socioeconômicas. Lavras, MG, 2013.

Segundo o informado nas entrevistas, a produção da agricultura familiar em Lavras é diversificada, com culturas de frutas (8,7%), folhas e legumes (7,8%), tubérculos (3,2%), eucalipto (0,9%) e feijão (11,0%). Os destaques, porém, são as culturas de café (18,3%), milho e cana (27,4%) e a criação de gado leiteiro (22,8%). É importante ressaltar que as culturas de milho e cana estão relacionadas principalmente com a alimentação do gado leiteiro, não sendo produções de importância direta para o consumo das famílias ou para comercialização.

Com relação à renda familiar média mensal, as famílias apresentam certa homogeneidade no que diz respeito à receita em salários-mínimos (Tabela 1), sendo que em 84,0% das unidades produtivas mais de três pessoas, chegando a 16, dependem dessa renda. Quanto à escolaridade dos agricultores responsáveis pela unidade de produção familiar, foram identificados 41 agricultores (50,6%) com até quatro anos de estudo formal, sendo cinco deles analfabetos. Ao se somar os 11 agricultores com até sete anos de estudo, temos 64,2% dos responsáveis pelas unidades produtivas que não concluíram o ensino fundamental (Tabela 1).

Em apenas 8,6% das unidades produtivas era utilizado um único tipo de agrotóxico. Em 55,6% das propriedades eram utilizados de dois a cinco produtos e em 35,8% este número variava entre seis e vinte produtos (Tabela 1). Este padrão de uso de agrotóxicos com exposição multiquímica concentrava-se em até dois trabalhadores em 69,1% das unidades produtivas. Na análise também se constatou que nas 81 propriedades eram utilizados 127 produtos comerciais, formulados a partir de 88 ingredientes ativos pertencentes a 54 grupos químicos distintos. Destes 127 agrotóxicos, 52 (40,9%) são classificados como Extremamente Tóxicos (classe I) e Altamente Tóxicos (classe II).

A Tabela 2 apresenta os dados referentes às práticas de trabalho relacionadas ao uso de agrotóxicos entre os agricultores familiares de Lavras. Os resultados mais relevantes são analisados na discussão deste trabalho.

Tabela 2
Unidades produtivas de agricultura familiar segundo práticas de trabalho relacionadas ao uso de agrotóxicos. Lavras, MG, 2013.

Discussão

Os elevados riscos envolvidos na utilização de agrotóxicos e a própria inadequação de priorizar o controle destes riscos através do paradigma industrial do "uso seguro" são evidenciados pelo excessivo número de restrições para que a manipulação desses produtos possa ser considerada "correta e segura".

Essas evidências foram o norte para a realização desta pesquisa, que se mostrou capaz de apreender as características socioeconômicas de agricultores familiares e suas práticas em relação às complexas medidas de segurança nas atividades de aquisição, transporte, armazenamento, preparo e aplicação, destino final de embalagens vazias e lavagem de roupas/EPIs contaminados.

Aquisição

A atividade de aquisição é um dos pilares do paradigma do "uso seguro" de agrotóxicos e é determinante para a potencialidade do risco nas demais atividades. É no momento da compra que se define a toxicidade do agrotóxico a ser transportado, armazenado, preparado, aplicado e que terá a embalagem vazia descartada após o uso e as roupas contaminadas a serem lavadas. Além disso, o momento da compra é, segundo os manuais de segurança, importante para dar informações e instruções sobre os procedimentos e cuidados a serem seguidos em cada uma das atividades de manipulação dos agrotóxicos.

Os manuais ainda enfatizam que é "fundamental consultar um Engenheiro Agrônomo, para que os problemas da lavoura sejam avaliados corretamente" e que a apresentação de receituário agronômico, elaborado por Engenheiro Agrônomo, é imprescindível para a efetuação da compra2525. Iwami A, et al. Manual de uso correto e seguro de produtos fitossanitários. São Paulo: Linea Creativa; 2010.), (3030. Associação Nacional de Defesa Vegetal. Boas práticas agrícolas no campo [Internet]. c2010 [citado em 2013 mar 21]. Disponível em: http://www.andefedu.com.br/uploads/img/manuais/arquivo/manual_de_boas_praticas.pdf
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. Com relação a estes procedimentos, nos dados obtidos na zona rural de Lavras-MG, foi constatado conflito de interesse nestas situações, uma vez que a consulta ao Engenheiro Agrônomo funcionário do local de comercialização dos agrotóxicos e a utilização de receita agronômica fornecida por esse profissional predominam entre as respostas dos agricultores familiares (Tabela 2).

A análise do uso da receita agronômica pelos 37 agricultores familiares que relataram o uso de agrotóxicos classificados como Extremamente ou Altamente Tóxicos, revela que 29 deles (78,4%) recebem este instrumento de segurança de Engenheiros Agrônomos funcionários dos estabelecimentos comerciais. Desta forma, se a aquisição e manipulação de produtos com maior risco de intoxicação aguda não está sendo influenciada diretamente pelos Engenheiros Agrônomos das casas agropecuárias e cooperativas, através de práticas comerciais que envolvem pressão e incentivo das indústrias químicas através de metas de venda e bonificação, no mínimo, não está sendo desestimulada ao passar pelo crivo desses profissionais e de seus receituários.

Em relação às atitudes do agricultor familiar na atividade de aquisição de agrotóxicos, é preciso considerar, principalmente, as características de renda e escolaridade apresentadas na Tabela 1. O agricultor familiar, inserido em um modelo de produção convencional de uso de agrotóxicos e num contexto de renda familiar limitada, não pode ser responsabilizado por não "optar" pela contratação de um Engenheiro Agrônomo particular para a avaliação de sua lavoura e obtenção da receita agronômica antes da compra do agrotóxico, sendo que os estabelecimentos comerciais disponibilizam "gratuitamente" este serviço.

Transporte

Os manuais de "uso seguro" definem que não existe segurança no transporte de agrotóxicos caso esta atividade não seja realizada em caminhonetes ou caminhões, devidamente equipados segundo as normas de segurança. No entanto, as entrevistas revelaram a "inadequação" dos veículos e das formas de transporte realizados (Tabela 2). Nesse contexto, o agricultor familiar não pode ser responsabilizado por não ter condição financeira para comprar um veículo considerado adequado pelo "uso seguro" e pelo fato de a entrega profissional não ser obrigatória em toda compra (inclusive as de pequenas quantidades).

Outra prática enfatizada nos manuais é a proibição do transporte de agrotóxicos com outros produtos, como alimentos, medicamentos, utensílios domésticos, rações e sementes. No entanto, o transporte exclusivo de agrotóxicos na caçamba é medida de "uso seguro" de viabilidade econômica e prática questionável. O agricultor familiar reside na zona rural e sempre que se desloca até a cidade, gastando parte de sua renda com combustível e de seu tempo de trabalho, busca realizar o máximo de atividades possíveis. Se ele precisa comprar agrotóxicos e qualquer outro tipo de produto, não é de se esperar que ele realize espontaneamente duas viagens com o veículo até a propriedade, uma para transportar os agrotóxicos e outra para os demais produtos. Conforme as características socioeconômicas apresentadas na Tabela 1, os agricultores familiares apresentam, de forma geral, renda limitada e, por isso, é compreensível que busquem não elevar seus gastos com combustível e não desperdiçar tempo de trabalho unicamente para seguir uma medida de segurança sobre a qual eles não receberam instruções e apoio adequados.

Armazenamento

Importante medida de segurança para a saúde de trabalhadores rurais e para o meio ambiente, o armazenamento "correto" de agrotóxicos não foi observado, de forma geral, nas simples estruturas e instalações das unidades produtivas visitadas e no contexto de desinformação e falta de apoio institucional da agricultura familiar em Lavras (MG). A maior parte dos agricultores familiares cita que suas propriedades não possuem local de armazenamento que atende aos requisitos de segurança (Tabela 2). Nestes dados se observa que, mesmo quando relatam armazenar os agrotóxicos exclusivamente em estrutura independente da residência, os agricultores familiares não estão necessariamente seguros. É importante ressaltar que não existem programas públicos municipais de financiamento para construção de armazéns adequados para o acondicionamento dos agrotóxicos e, por isso, os agricultores familiares utilizam as estruturas existentes em suas unidades produtivas, como "casinhas", tulhas, paióis e garagens, onde geralmente, outros utensílios também costumam ser guardados. Além disso, a maior parte destes agricultores não recebeu informação ou treinamento, de qualquer instituição pública ou privada, sobre quais os requisitos necessários para o armazenamento "seguro" e sobre a necessidade de construções consideradas propícias.

Com relação à distância do local de armazenamento até residências, a maioria das propriedades não está de acordo com o preconizado nos manuais de "uso seguro" (Tabela 2). Conforme apresentado na Tabela 1, a maior parte das propriedades de agricultura familiar em Lavras possui menos de 30 ha de área, sendo muitas vezes inviável a construção de local de armazenamento a mais de 30 metros da residência. Como também mencionado anteriormente, os agricultores usam estruturas disponíveis, que existem há anos nas propriedades, estando a mais de 30 metros das residências ou não. Não é plausível, portanto, responsabilizar os agricultores familiares por não construírem, espontaneamente, novas estruturas que mantenham distância "segura" das residências, sendo que estes agricultores vivem em situação de limitação de renda e de informação.

Preparo e aplicação do agrotóxico

O preparo e a aplicação são as atividades de trabalho nas quais, invariavelmente, o agrotóxico é removido de sua embalagem para exercer sua finalidade tóxica no ambiente externo.

Durante o preparo, os riscos de exposição e intoxicação são elevados, pois é neste momento que as substâncias tóxicas presentes nas formulações dos produtos estão concentradas. Desta forma, respingos no corpo ou inalação podem causar intoxicação aguda ou contribuir para agravos de longo prazo. Entretanto, fatores como a falta de local "adequado" para o preparo, levando à diluição e mistura de produtos já na área de cultivo, ao preparo direto no pulverizador sem a disponibilidade de instrumentos "corretos" e à utilização de água parada e suja (levada para a área de cultivo em tambores) são predominantes no contexto do trabalho agrícola familiar identificado em Lavras-MG. A comercialização de embalagens de 20 litros de agrotóxicos, cujo consumo é estimulado pelo valor proporcionalmente menor, também dificulta a manipulação do produto durante o preparo, podendo levar a derramamentos e respingos. Neste contexto, a maioria dos entrevistados afirmou já ter derramado ou respingado agrotóxico no corpo durante o preparo. Esta situação se torna alarmante ao se constatar que apenas cinco trabalhadores afirmaram utilizar todas as peças do EPI descritas nos manuais de segurança como indispensáveis para a "adequada" proteção da saúde (Tabela 2).

Situações semelhantes, de inadequação das regras de "uso seguro" às condições reais, foram identificadas na atividade de aplicação dos agrotóxicos: com o contato dos agrotóxicos com o corpo desprotegido, que ocorre no contato direto do aplicador costal (equipamento de aplicação relatado como mais utilizado) com o corpo, o que faz com que, inevitavelmente, qualquer vazamento atinja as costas do agricultor; com as variações das condições climáticas, uma vez que a decisão de não realizar a aplicação em dias de chuva e ventos fortes pode ocasionar perdas econômicas posteriores; com o deslocamento do agricultor para aplicação nas estreitas "ruas" formadas entre as fileiras dos cultivos e dentro de currais; e, por fim, com a inviabilidade de uso completo dos EPIs em ambiente aberto1313. Veiga MM, et al. A contaminação por agrotóxicos e os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Rev. Bras. Saúde Ocup. 2007;32(116):57-68. e com a impossibilidade de seguir as complexas formas consideradas "corretas", pelos manuais de segurança, de vestir e desvestir estes equipamentos (Tabela 2).

Em relação ao Período de Reentrada, o mesmo contexto de baixa escolaridade e de inviabilidade de assimilar e cumprir numerosas e complexas medidas de segurança leva ao desconhecimento desta medida pela maior parte dos entrevistados, o que pode comprometer a saúde dos trabalhadores rurais e de seus familiares. Este desconhecimento faz com que os agricultores familiares não atentem à necessidade de placas de advertência sobre o período em que a entrada sem EPIs na área de cultivo onde os agrotóxicos foram aplicados deveria ser evitada (Tabela 2). No entanto, mesmo com esses avisos, a proteção da saúde através desta medida de segurança é questionável devido à proximidade das residências com as áreas de cultivo, principalmente, nas propriedades de menor área (Tabela 1).

Destino final das embalagens vazias

O descarte das embalagens vazias de agrotóxicos nas 81 unidades produtivas visitadas em Lavras-MG não condiz, em sua totalidade, com as medidas de "uso seguro" descritas nos manuais de segurança.

Pouco mais da metade dos agricultores familiares entrevistados sempre devolvem as embalagens vazias de agrotóxicos aos estabelecimentos comerciais onde foram adquiridas. Em nenhuma das 19 comunidades, ou em suas proximidades, existe posto de coleta (público ou privado) de embalagens vazias de agrotóxicos. As casas comerciais, representantes, cooperativas e as instituições públicas municipais também não têm programas de recolhimento ativo dessas embalagens. Desta forma, a responsabilidade pela realização da dispendiosa medida de segurança, de se deslocar até o estabelecimento comercial onde os agrotóxicos foram adquiridos, sempre com a nota fiscal de compra em mãos para comprovar a aquisição no local, para devolver as embalagens vazias, recai sobre o agricultor familiar.

Lavagem das roupas/EPIs contaminados

É nesta atividade que fica evidente a exposição direta de mulheres aos agrotóxicos, na agricultura familiar de Lavras-MG. Em 81,5% das unidades produtivas visitadas, elas são as responsáveis por lavar tanto as roupas comuns, utilizadas pelos agricultores que não utilizam os EPIs durante o preparo e a aplicação dos agrotóxicos, quanto as roupas de proteção.

Os manuais de "uso seguro" de agrotóxicos descrevem a necessidade de utilização de luvas e avental para a realização desta atividade2525. Iwami A, et al. Manual de uso correto e seguro de produtos fitossanitários. São Paulo: Linea Creativa; 2010.), (2828. Associação Nacional de Defesa Vegetal. Manual de uso correto de equipamentos de proteção individual. Campinas: Linea Creativa; 2003.), (3030. Associação Nacional de Defesa Vegetal. Boas práticas agrícolas no campo [Internet]. c2010 [citado em 2013 mar 21]. Disponível em: http://www.andefedu.com.br/uploads/img/manuais/arquivo/manual_de_boas_praticas.pdf
http://www.andefedu.com.br/uploads/img/m...
. Entretanto, o quadro geral de desinformação encontrado na agricultura familiar de Lavras-MG, fruto da negligência de órgãos públicos de saúde, agricultura, trabalho e meio ambiente e das indústrias químicas, faz com que a atividade seja realizada da mesma forma como as trabalhadoras e trabalhadores rurais costumam proceder para lavar as demais roupas da família (Tabela 2).

Segundo os manuais de "uso seguro", o local de realização da atividade não só deveria ser distante da residência e da circulação de pessoas desprotegidas como também deveria ser em tanques de utilização exclusiva para roupas contaminadas por agrotóxicos, contendo encanamento destinado para fossa séptica de tratamento de resíduos químicos. Estas exigências, que não levam em consideração o contexto econômico e estrutural da agricultura familiar, não são observadas nas unidades produtivas visitadas para a realização deste trabalho (Tabela 2). Nestes casos, a inexistência de tanque exclusivo para as roupas e EPIs contaminados corresponde à exposição das roupas pessoais a resíduos de agrotóxicos e o despejo da água contaminada em locais que não as fossas sépticas corresponde à contaminação direta das pessoas, animais, solo, lençóis freáticos e fluxos de água.

Conclusão

Nos resultados obtidos neste trabalho constatamos a inviabilidade do cumprimento do "uso seguro" de agrotóxicos no contexto da agricultura familiar do município de Lavras, Minas Gerais. Consequentemente, é preciso desresponsabilizar os trabalhadores rurais pelos danos e agravos envolvidos na utilização destes produtos. Desenvolvida e projetada para a utilização na estrutura produtiva industrial do agronegócio, a tecnologia agroquímica não pode ser utilizada sob os conceitos de segurança e de controle de riscos na estrutura econômica, social, física, administrativa e laboral das unidades produtivas de agricultura familiar estudadas. Independentemente da elevação do nível de educação dos agricultores familiares e do fornecimento de treinamentos sobre o tema, a complexidade e o custo das medidas de segurança são incompatíveis com tal estrutura. Desta forma, afirmamos que, intitulado de uso "inadequado", "indevido" e/ou "incorreto" devido às atitudes de "descaso", "descuido", "desleixo", "recusa", "desprezo" e/ou "descrença" do trabalhador rural (inclusive por estudos científicos que demonstram boa intenção em relação aos trabalhadores rurais), a utilização de agrotóxicos de forma insegura pelos agricultores familiares deve ser entendida e descrita como o uso viável e possível dentro de suas condições e estruturas gerais.

Sem, neste momento, analisar o (des)mérito do agronegócio e suas consequências para o contexto brasileiro de desigualdade econômica e social, de precarização do trabalho e de insegurança e risco à saúde de trabalhadores rurais, afirmamos que o agrotóxico é uma tecnologia inerente ao processo produtivo monocultor de larga escala, ou seja, ao agronegócio, e, por isso, deve ser destinado - com restrições, ressalvas, fiscalização e perspectiva de redução do uso - única e exclusivamente para este modelo de produção. No Brasil, no contexto da agricultura familiar, não existe viabilidade de utilização segura de agrotóxicos. Esta conclusão é estendida, aqui, para as demais unidades produtivas de agricultura familiar do País devido às semelhanças dos dados estruturais desta categoria identificados em Lavras com os dados nacionais apresentados pelo Censo Agropecuário88. Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2006 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2009 [citado em 2013 mar 3]. Disponível em: http://www.mma.gov.br/estruturas/sds_dads_agroextra/_arquivos/familia_censoagro2006_65.pdf
http://www.mma.gov.br/estruturas/sds_dad...
, de 2006, e com a estrutura geral apresentada em estudos realizados em diversas regiões do Brasil3636. Rigotto RM. O Censo e os agrotóxicos: o uso seguro é possível? 17 dez 2010 [citado em 2014 jan 20]. In: Comissão Pastoral da Terra [Internet]. Goiânia: CPT. Disponível em: http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/noticias-2/15-artigos/509o-censo-e-os-agrotoxicos-o-uso-seguro-e-possivel
http://www.cptnacional.org.br/index.php/...
.

Neste trabalho constatamos, de forma sistemática, que o controle dos riscos de intoxicação no contexto geral da agricultura familiar não pode ser feito através do paradigma do "uso seguro" de agrotóxicos. Desta forma, o incentivo e o suporte a áreas livres de agrotóxicos e a tecnologias de produção mais justas, independentes, eficientes e rentáveis, como forma de valorizar as características e a tradição da agricultura familiar, devem ser prioridades do Estado e da sociedade civil.

Agradecimentos

Os autores agradecem o acolhimento e a dedicação dos agricultores familiares de Lavras/MG e o apoio de Rosemeire de O. Ferraz, estatística do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

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  • Pedro Henrique Barbosa de Abreu recebeu bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) durante a realização do mestrado.
  • 2
    Trabalho baseado na dissertação de mestrado de Pedro Henrique Barbosa de Abreu, sob o título "O agricultor familiar e o uso (in)seguro de agrotóxicos no município de Lavras, MG", apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas em fevereiro de 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2015
  • Revisado
    25 Abr 2016
  • Aceito
    29 Abr 2016
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