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COVID-19 como uma doença relacionada ao trabalho

COVID-19 as an occupational disease

Quase dois anos depois do anúncio da pandemia de COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e ainda em um cenário incerto, trazemos algumas reflexões acerca da conjuntura vivenciada ao longo desse período com vistas a apontar desafios a serem compreendidos e enfrentados em nosso país, referentes às ações dirigidas à população trabalhadora e às suas condições de trabalho.

Em um contexto de transmissão comunitária em todo o território nacional, declarada pelo Ministério da Saúde em março de 202011. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 454, de 20 de março de 2020: declara, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (COVID-19). Diário Oficial da União [Internet]. 20 mar 2020 [citado em 13 set 2020];1:1. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-454-de-20-de-marco-de-2020-249091587
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, e com uma população economicamente ativa (PEA) de mais de 100 milhões22. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. População Economicamente Ativa [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Economia; 2021 [citado em 25 nov 2021]. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/conjuntura-economica/emprego-e-renda/2021/informativo-pnad-jan2021.html#35_população_economicamente_ativa_-_milhares_de_pessoas
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, era previsível que as atividades de trabalho seriam os grandes mobilizadores de massas humanas, tornando cada indivíduo um potencial disseminador, seja no transporte coletivo, nos locais de trabalho ou de moradia.

No tocante à economia formal, ao definir os serviços e atividades essenciais como “aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”33. Brasil. Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020: regulamenta a Lei nº 13.969, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Diário Oficial da União [Internet]. 20 mar 2020 [citado em 21 nov 2021];1:1. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10282.htm
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, o governo brasileiro estabeleceu o ponto de partida para determinar quem deveria continuar a trabalhar presencialmente para assegurar a vida dos demais.

Várias das atividades elencadas foram consensualmente interpretadas como essenciais, entre as quais a assistência à saúde, a assistência social e o atendimento à população em estado de vulnerabilidade, as atividades de segurança pública e privada, de defesa nacional e defesa civil, de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, os serviços de entrega e os serviços funerários. Porém, outras despertaram estranheza, como foi o caso de atividades religiosas, unidades lotéricas, salões de beleza e barbearias, academias de esporte de todas as modalidades. Algumas, de tão genéricas, não tiveram nenhuma restrição imposta, como as atividades industriais e de construção civil, permitindo que ramos econômicos altamente disseminadores do vírus, como o da indústria de carnes, por exemplo, continuassem trabalhando intensamente, tendo seus produtos voltados, preferencialmente, para o mercado externo44. Associação Brasileira de Frigoríficos. Estatísticas: Exportação. Curitiba: ABRAFRIGO; [2021] - [citado em 25 nov 2021]. Disponível em: https://www.abrafrigo.com.br/index.php/estatisticas/.
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. Pela organização do processo de trabalho, os trabalhadores dos frigoríficos permanecem lado a lado em uma linha de “desmontagem” dos animais abatidos. Dados de uma das entidades representativas dos interesses do ramo da carne bovina mostram que, durante oito dos doze meses de 2020, as exportações superaram as ocorridas em 2019, chegando à cifra de 28% a mais no mês de junho. Em março e abril de 2021, quando os números de mortos eram avassaladores55. Observatório COVID-19 BR. Óbitos por COVID-19 [Internet]. [Local desconhecido]: Observatório COVID-19 BR; 2021 [citado em 25 nov 2021]. Disponível em: https://covid19br.github.io/estados?aba=aba2&uf=BA&q=dia#
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em todo o país, as exportações do produto ultrapassaram, respectivamente, os mesmos meses de 2020 em 8% e 12%, em quilos de carne, e em 12% e 23% em faturamento44. Associação Brasileira de Frigoríficos. Estatísticas: Exportação. Curitiba: ABRAFRIGO; [2021] - [citado em 25 nov 2021]. Disponível em: https://www.abrafrigo.com.br/index.php/estatisticas/.
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. Essas questões foram objeto de artigos de Zimmermann66. Zimmermann CL. A COVID-19 nos ambientes de trabalho e a possibilidade do enquadramento como doença ocupacional para fins de emissão de CAT. Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro [Internet]. 12 out 2020 [citado em 19 nov 2021]. Disponível em: https://www.prt1.mpt.mp.br/images/arquivos/informe_se/artigos/Covid-19_relacionada_ao_trabalho.pdf
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e Cerutti77. Cerutti FM. O trabalho essencial na pandemia. Revista do Tribunal do Trabalho da 2. Região [Internet]. 2021 [citado em 21 nov 2021];(25):73-80. Disponível em: https://basis.trt2.jus.br/handle/123456789/13979
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que discutiram o conceito de essencialidade das atividades chamando a atenção para o seu alargamento em relação, por exemplo, à lei que dispõe sobre o exercício do direito de greve88. Brasil. Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989: dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. 29 jun 1989 [citado em 20 nov 2021];1:10561. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7783.HTM
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).

O trabalho presencial, amplamente majoritário em relação ao regime remoto, é reconhecido como aspecto de vulnerabilidade dos trabalhadores por Carlsten et al.99. Carlsten C, Gulati M, Hines S, Rose C, Scott K, Tarlo SM, et al. COVID-19 as an occupational disease. Am J Ind Med. 2021;64(4):227-37., pois, de modo geral, implica a utilização de meio de locomoção compartilhado, a necessidade de enfrentar aglomerações e proximidades físicas, a permanência prolongada em ambientes fechados, com ventilação inadequada e renovação incipiente do ar ambiente, e a indisponibilidade de máscaras mais protetoras, configurando um conjunto de situações que aumentam as chances de exposição ao vírus. Após um breve período de perplexidade durante o qual as ruas ficaram vazias, sem que no país tenhamos tido formalmente qualquer período de restrição severa em âmbito nacional1010. Marino A, Klintowitz D, Brito G, Rolnik R, Santoro P, Mendonça P. Circulação para trabalho explica concentração de casos de Covid-19. Labcidade [Internet]. 30 jun 2020 [citado em 18 nov 2021]. Disponível em: http://www.labcidade.fau.usp.br/circulacao-para-trabalho-inclusive-servicos-essenciais-explica-concentracao-de-casos-de-covid-19/.
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, a compulsoriedade às atividades do trabalho presencial foi determinante para a mobilização diária de milhões de pessoas, entre as quais os trabalhadores informais - devido à necessidade de sobrevivência e falta de suporte governamental -, os que indubitavelmente são essenciais para a vida e segurança da população e os que foram convocados pelas empresas. Dessa forma, a classificação dos trabalhadores entre os de serviços essenciais e não essenciais, pela peculiaridade brasileira, não é referência fidedigna no que tange à exposição a situações potencialmente adoecedoras.

As características de transmissão aérea e por proximidade física do SARS-CoV-2, o caráter comunitário da doença e a peremptoriedade das atividades de trabalho para a sobrevivência ou manutenção dos empregos foram aspectos centrais levantados para que se advogue pelo reconhecimento da COVID-19 como uma doença relacionada ao trabalho, com fundamentação nos conceitos, dentre outros, de maior risco de exposição e aplicação do princípio da inversão do ônus da prova66. Zimmermann CL. A COVID-19 nos ambientes de trabalho e a possibilidade do enquadramento como doença ocupacional para fins de emissão de CAT. Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro [Internet]. 12 out 2020 [citado em 19 nov 2021]. Disponível em: https://www.prt1.mpt.mp.br/images/arquivos/informe_se/artigos/Covid-19_relacionada_ao_trabalho.pdf
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),(1111. Maeno M, Carmo JC. A covid-19 é uma doença relacionada ao trabalho [Internet]. Rio de Janeiro: Observatório da Medicina ENSP; 15 maio 2020 [citado em: 21 nov 2021]. Disponível em: http://observatoriodamedicina.ensp.fiocruz.br/a-covid-19-e-uma-doenca-relacionada-ao-trabalho-por-maria-maeno-e-jose-carlos-do-carmo/.
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)-(1414. Maeno M. Doenças ocupacionais relacionadas à pandemia de covid-19: fatores de risco e prevenção. Revista do Tribunal do Trabalho da 2. Região [Internet]. 2021 [citado em 21 nov 2021];(25):108-21. Disponível em: https://basis.trt2.jus.br/handle/123456789/13988
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. A inversão do ônus da prova não é um elemento jurídico estranho à nossa legislação, como se pode recordar pela lei previdenciária, que utiliza o critério epidemiológico para estabelecer o nexo causal presumido entre determinados agravos à saúde de trabalhadores e o trabalho em certas atividades econômicas1515. Brasil. Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999: aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. 7 maio 1999 [citado em 18 nov 2021];1:50. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3048.htm
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.

Os direitos advindos desse reconhecimento formal variam conforme os países1616. Moen BE. COVID-19 should be recognized as an occupational disease worldwide. Occup Med (Lond) [Internet]. 2020 [citado em dia mês ano];70(5):299. Disponível em: https://doi.org/10.1093/occmed/kqaa086
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),(1717. Sandal A, Yildiz AN. COVID-19 as a recognized work-related disease: the current situation worldwide. Saf Health Work. 2021;12(1):136-8.. No Brasil, os segurados do Regime Geral da Previdência Social, que inclui, entre outros, os assalariados com vínculo empregatício regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), têm direitos diferenciados em caso de incapacidade temporária ou permanente decorrente de acidente ou doença de nexo causal com o trabalho, reconhecido pela perícia médica federal. No caso de afastamento do trabalho por mais de 15 dias motivado por COVID-19 ocupacional, o segurado recebe o auxílio-doença acidentário, denominado auxílio por incapacidade pelo regulamento da lei previdenciária, independentemente do tempo de contribuição, pois está isento da carência exigida para doenças não ocupacionais. Por ocasião da cessação do auxílio por incapacidade acidentária, se houver sequela definitiva que implique redução da capacidade para o trabalho habitual, o trabalhador pode passar a receber o auxílio-acidente como indenização mensal, até a data da aposentadoria. Durante o período em que estiver recebendo o auxílio-doença acidentário, o empregador é obrigado a recolher o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e, após a sua cessação, o segurado tem direito à manutenção do contrato de trabalho por um ano1515. Brasil. Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999: aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. 7 maio 1999 [citado em 18 nov 2021];1:50. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3048.htm
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),(1818. Brasil. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991: dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. 25 jul 1991 [citado em 18 nov 2021];1:14809. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8213cons.htm
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. Os direitos advindos da condição de acidentado do trabalho, portanto, são significativos. Estados como a Bahia1919. Bahia. Secretaria de Saúde do Estado. Superintendência de Vigilância e Proteção da Saúde. Diretoria de Vigilância e Atenção à Saúde do Trabalhador. Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador. Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho do Estado da Bahia [Internet]. Salvador: Sesab; 2021 [citado em 24 nov 2021]. Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2021/09/ListaDoencasRelacionadasTrabalhoEstadoBahia_2021.pdf
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e o Espírito Santo2020. Espírito Santo. Portaria nº 120-R, de 18 de junho de 2021: institui a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho para o Estado do Espírito Santo (LDRT). Diário Oficial dos Poderes do Estado (ES) [Internet]. 21 jun 2021 [citado em 24 nov 2021];1:6. Disponível em: https://saude.es.gov.br/Media/sesa/CEREST/PORTARIA_120-R_-_LISTA_DE_DOENCAS_RELACIONADAS_AO_TRABALHO_(LDRT)_-_DIO.pdf
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atualizaram a lista de doenças relacionadas ao trabalho com vários acréscimos, incluindo a COVID-19.

Dados oficiais da Previdência Social2121. Brasil. Brasil: COVID-19 [Internet]. [Local desconhecido]: Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho; [2021] - [citado em 19 nov 2021]. Disponível em: https://smartlabbr.org/sst/localidade/0?dimensao=covid
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mostram que de 113 casos de doenças por vírus notificados como relacionados ao trabalho em 2019, houve um salto em 2020 para 20.797 casos registrados com B34 ou U07, códigos da Classificação Internacional de Doenças (CID) recomendados para o registro da COVID-19.

Quanto às ocupações nos casos de COVID-19 notificados no primeiro ano da pandemia, a grande maioria pertencia ao setor da saúde, entre os quais, técnicos e auxiliares de enfermagem (8.784), enfermeiros (2.630), médicos clínicos (484), agentes comunitários de saúde (311), fisioterapeutas (337), técnicos de radiologia e imagenologia (250) e copeiros de hospital (229). Dos trabalhadores claramente externos à área da saúde, destacam-se os magarefes, isto é, os trabalhadores de frigoríficos (332)2121. Brasil. Brasil: COVID-19 [Internet]. [Local desconhecido]: Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho; [2021] - [citado em 19 nov 2021]. Disponível em: https://smartlabbr.org/sst/localidade/0?dimensao=covid
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O reconhecimento da associação causal entre a doença e a atividade no setor saúde é imediato e de senso comum, o que motivou a Câmara dos Deputados a aprovar um projeto de lei que prevê, para o setor, indenização aos trabalhadores com sequelas e aos familiares dos que morreram, sem entrar no mérito da existência de comprovação de nexo. O fundamento legal se baseia na maior exposição ao agente etiológico e nexo causal presumido para conferir direitos especiais. Nesse aspecto, a lei aprovada ultrapassa conceitualmente a orientação do Ministério da Saúde2222. Ministério da Saúde (BR). Orientações de vigilância epidemiológica da COVID-19 relacionada ao trabalho [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde (BR); 2020 [citado em 19 nov 2021]. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/08/1116664/covid-orienta-es-trabalho.pdf
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, que, ao ilustrar casos da doença potencialmente relacionados ao trabalho, incluiu um técnico em enfermagem que morreu na mesma unidade de terapia intensiva onde trabalhava. O que mais seria necessário para que essa relação fosse estabelecida? A Previdência Social2323. Brasil. Ministério da Economia. Secretaria Especial de Previdência e Trabalho. Secretaria de Previdência. Subsecretaria do Regime Geral de Previdência Social. Coordenação-Geral de Benefícios de Risco e Reabilitação Profissional. Nota Técnica SEI nº 56376/2020/ME [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Economia; 2020 [citado em 24 nov 2021]. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/notas-tecnicas/2020/sei_me-12415081-nota-tecnica-covid-ocupacional.pdf
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, em dezembro de 2020, orientou sua perícia médica a admitir a possibilidade de estabelecimento de nexo causal com o trabalho, “quando a doença resultar das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relacionar diretamente”, reforçando duas premissas, a de que a instância a estabelecer a condição de doença relacionada ao trabalho é a Perícia Médica Federal e a de que o princípio da presunção não será considerado.

O destaque dos trabalhadores de frigoríficos nas estatísticas se deve provavelmente a um tradicional engajamento do movimento sindical dos trabalhadores da indústria de carnes e alimentação em questões referentes à saúde dos trabalhadores e a uma atuação constante da auditoria fiscal do trabalho e do Ministério Público do Trabalho2424. Sardá SE, Ruiz RC, Kirtschig G. Tutela jurídica da saúde dos empregados de frigoríficos: considerações dos serviços públicos. Acta Fisiatrica [Internet]. 2009 [citado em 25 nov 2021]; 16(2):59-65. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/actafisiatrica/article/view/103057
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. Nas estatísticas oficiais dos casos de COVID-19, destacam-se ainda ocupações de atuação setorial inespecífica como faxineiros (642), auxiliares de escritório (515) e assistentes administrativos (429), que exercem suas funções em vários setores da economia2121. Brasil. Brasil: COVID-19 [Internet]. [Local desconhecido]: Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho; [2021] - [citado em 19 nov 2021]. Disponível em: https://smartlabbr.org/sst/localidade/0?dimensao=covid
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Na atual fase da pandemia, relatos e estudos vêm identificando um fato, que deve ser especialmente observado pelas instâncias de atenção à saúde, relacionado às alterações que ocorrem ou persistem durante quatro ou mais semanas após o quadro agudo da COVID-19, com diversos graus de severidade2525. Centers for Disease Control and Prevention. Post-COVID conditions: information for healthcare providers. Atlanta: CDC; 2021.)-(2727. Xiong Q, Xu M, Li J, Liu Y, Zhang J, Xu Y, et al. Clinical sequelae of COVID-19 survivors in Wuhan, China: a single-centre longitudinal study. Clin Microbiol Infect [Internet]. 2021 [citado em 18 nov 2021];27(1):89-95. Disponível em: https://www.clinicalmicrobiologyandinfection.com/article/S1198-743X(20)30575-9/fulltext
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. Huang et al.2828. Huang C, Huang L, Wang Y, Li X, Ren L, Gu X, et al. 6-month consequences of COVID-19 in patients discharged from hospital: a cohort study. Lancet. 2021;397(10270):220-32. estudaram, durante o período de 16 de junho a 3 de setembro de 2020, pacientes que haviam recebido alta de um hospital de Wuhan entre 7 de janeiro a 30 de maio do mesmo ano. Do total inicial de 2.469, foram excluídos 736 pacientes por não atenderem aos critérios de acompanhamento, dentre os quais, 33 que morreram depois da alta hospitalar devido a complicações pulmonares, cardíacas e renais, 25 que foram reinternados por insuficiência respiratória devido à fibrose pulmonar, 3 que sofreram acidente vascular cerebral isquêmico e 1 que teve embolia pulmonar. Após seis meses da ocorrência dos sintomas de COVID-19 na fase aguda, os autores constataram que, dos pacientes acompanhados, 76% tinham pelo menos um sintoma, como fadiga e fraqueza muscular, dificuldades relacionadas ao sono, ansiedade e depressão, perda de cabelo, alteração do olfato e paladar, tontura, diarreia ou vômitos, entre outros.

No Brasil, é importante considerar que, dos mais de 21 milhões contabilizados pelo Ministério da Saúde como recuperadosb b No dia 18 de novembro de 2021, o número de recuperados de COVID-19, segundo o Ministério da Saúde, era de 21.206.997. Disponível em: https://covid.saude.gov.br. Acesso em: 18 nov. 2021. , não se tem conhecimento sobre aqueles que evoluíram para óbito por complicações relacionadas à doença depois da fase aguda ou que permaneceram com sintomas e limitações funcionais. Até o momento, o Sistema Único de Saúde (SUS) não conta com orientações claras do Ministério da Saúde quanto ao acompanhamento clínico necessário para que os cuidados adequados sejam providos de forma a abreviar o período de recuperação, prevenir incapacidades permanentes e promover a reabilitação física, psicossocial e profissional dos acometidos.

A Inglaterra, que possui um sistema público de saúde robusto, estabeleceu em junho de 2021, um plano específico para os quadros de longa duração e para a síndrome pós-COVID-192929. National Health Service England. Long COVID: the NHS plan for 2021/22. Version 1, June 2021. [Local desconhecido]: NHS England; 2021 [citado em 25 nov 2021]. Disponível em: https://www.england.nhs.uk/coronavirus/wp-content/uploads/sites/52/2021/06/C1312-long-covid-plan-june-2021.pdf
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. Esse plano inclui tanto o quadro clínico persistente entre 5 e 12 semanas, como a síndrome pós-Covid, quanto sinais e sintomas que persistem por 12 semanas ou mais, ambos englobados no termo COVID longa ou COVID de longa duração. O plano alerta para a variada gama de sintomas com impacto físico, psicológico e cognitivo, que pode afetar a qualidade da vida, a capacidade para o trabalho ou para o estudo. O Ministério da Saúde brasileiro adotou o termo “condições pós-covid” para definir “as manifestações clínicas presentes após quatro semanas da infecção por SARS-CoV-2, que podem ser condições clínicas novas, recorrentes ou persistentes quando não atribuídas a outras causas”.3030. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à COVID-19. Gabinete. Nota Técnica n. 31/2021 - SECOVID/GAB/SECOVID/MS. Orientacoes preliminares sobre "condições pós covid" [Internet]. Brasilia, DF: Ministério da Saúde; 2021 [citado 26 nov 2021]. Disponivlel em: https://rts.saude.gov.br/portal/documento/2581/arquivo
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Urge que o Ministério da Saúde defina, em conjunto com os estados e municípios, protocolos que orientem os diferentes níveis de atenção do SUS a desenvolver ações de acompanhamento, assistência e reabilitação, com especial fortalecimento da atenção primária da saúde, com grande capilaridade em todo o território nacional e conta com a atenção domiciliar3131. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Especializada à Saúde. Departamento de Atenção Hospitalar, Domiciliar e de Urgência. Atenção domiciliar na Atenção Primária à Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020 [citado em 18 nov 2021]. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_domiciliar_primaria_saude.pdf
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. Adicionalmente, a capacitação de equipes multiprofissionais que atuem nas diversas esferas de atenção permitiria que um grande contingente de pessoas tenha acesso a um processo terapêutico de recuperação da funcionalidade. Mais do que nunca, é preciso que o serviço de reabilitação profissional, profundamente enfraquecido na estrutura do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), seja revitalizado. Estamos falando da saúde, da capacidade de trabalho e da vida de centenas de milhares de trabalhadores e do impacto social e econômico em suas famílias.

Neste momento, enquanto o Brasil vive uma trégua, com média móvel de óbitos em torno de 200c c Painel do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) - COVID-19. Disponível em: https://www.conass.org.br/painelconasscovid19/. Acesso em: 21 nov. 2021. , com tendência à queda, a OMS declarou que a Europa é o epicentro da pandemia, com aumento de mais de 55% dos casos desde outubro. Na última semana do referido mês, a Europa e a Ásia Central foram responsáveis por 59% de todos os casos da doença e 48% dos óbitos registrados no mundo inteiro3232. Castro R. Nova onda de COVID-19 na Europa e na Ásia deve servir de alerta para o Brasil. Agência Fiocruz de Notícias [Internet]. 12 nov 2021 [citado em 24 nov 2021]. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/nova-onda-de-covid-19-na-europa-e-na-asia-deve-servir-de-alerta-para-o-brasil
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Esses acontecimentos devem nos estimular a reforçar os procedimentos para a prevenção de uma nova onda de casos e óbitos. Faz-se necessário aumentar o percentual de vacinação, atualmente em torno de 60%d d Dado de 17 de novembro de 2021. Disponível em: https://ourworldindata.org/covid-vaccinations. Acesso em: 21 nov. 2021. no Brasil, com diferenças nos percentuais em cada estado. Por meio de insistente comunicação capilar em todo o país, direcionado aos diversos segmentos sociais, e fortalecimento da atenção primária da saúde, é preciso aumentar rapidamente a parcela da população vacinada, o que protegerá a maioria das pessoas da severidade dos quadros clínicos e, em menor grau, da infecção. Uma atenção especial deve ser dirigida à necessidade da manutenção do uso de máscaras em espaços públicos e no trabalho, pois, devido à adoção de medidas políticas erráticas e conflitantes no país, o uso vem decrescendo de forma nítida.

No caso da COVID-19, mais do que de outras doenças, as medidas não farmacológicas continuam sendo essenciais e devem incluir os ambientes de trabalho, onde milhões de pessoas permanecem diariamente por 8 horas ou mais. A sociedade habituou-se a conviver com determinadas características de uma fábrica, como o ruído intenso ou poeiras, que resultam em milhares de pessoas com surdez e doenças pulmonares. O sofrimento tende a permanecer entre quatro paredes, seja das empresas, seja das casas de suas famílias, ocasionalmente ultrapassando esses limites, mas rapidamente caindo no esquecimento social.

O SARS-CoV-2, com sua alta capacidade de disseminação, denunciou os locais de trabalho enquanto fontes de doença, como sempre foram, mas agora com o poder de atingir diretamente milhões de mães, pais, irmãos e amigos. Jackson Filho et al.3333. Jackson Filho JM, Assunção AA, Algranti E, Garcia EG, Saito CA, Maeno M. A saúde do trabalhador e o enfrentamento da COVID-19. Rev Bras Saude Ocup [Internet]. 2020 [citado em 22 nov 2021];45:e14. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-6369ED0000120
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apontaram a necessidade de medidas organizacionais e coletivas a serem tomadas pelas empresas, mesmo contemplando medidas de proteção individual. Carlsten et al.99. Carlsten C, Gulati M, Hines S, Rose C, Scott K, Tarlo SM, et al. COVID-19 as an occupational disease. Am J Ind Med. 2021;64(4):227-37. fizeram uma análise multiprismática de elementos centrais que devem ser contemplados no trabalho presencial no contexto atual. Já Santos e Maeno3434. Santos UP, Maeno M. Cuidados com a saúde dos trabalhadores no contexto da pandemia de COVID-19. Rio de Janeiro: Observatório da Medicina ENSP; 3 dez 2020 [citado em 21 nov 2021]. Disponível em: http://observatoriodamedicina.ensp.fiocruz.br/cuidados-com-a-saude-dos-trabalhadores-no-contexto-da-pandemia-de-covid-19-por-ubiratan-de-paula-santos-e-maria-maeno/.
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levantaram o papel do Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) em apresentar planos de vigilância a serem submetidos aos órgãos competentes do SUS, além de elencar algumas das medidas que, se adotadas pelas empresas, podem ser úteis para mitigar o impacto da pandemia nesses espaços. Torna-se gritante a necessidade de “purificar” o ar dos ambientes fechados, com a troca e renovação do ar, além do dimensionamento do número de pessoas que podem compartilhar um espaço fechado de forma segura. Se necessárias, obras de engenharia devem estar no planejamento das empresas, assim como o rigoroso cumprimento do Plano de Manutenção, Operação e Controle (PMOC) dos sistemas de ar-condicionado, definido em portaria do Ministério da Saúde desde 19983535. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.523, de 28 de agosto de 1998. Diário Oficial da União [Internet]. 31 ago 1998 [citado em 21 nov 2021];1:40-2. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1998/prt3523_28_08_1998.html
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, e em lei3636. Brasil. Lei nº 13.589, de 4 de janeiro de 2018: dispõe sobre a manutenção de instalações e equipamentos de sistemas de climatização de ambientes. Diário Oficial da União [Internet]. 5 jan 2018 [citado em 21 nov 2021];1:1. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=05/01/2018&jornal=515&pagina=1&totalArquivos=58
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desde 2018. A premissa básica é a de que o ar respirado deve ter a melhor qualidade possível para todos, monitorada por meio de sensores que exibam indicadores que possam ser visualizados pelos usuários do ambiente. A reorganização do trabalho, contemplando possibilidades de sistema híbrido, quando possível, deve ser levada em conta, o que diminuiria a circulação de pessoas. Além da importante contribuição da higiene do trabalho e das mudanças organizacionais para reduzir as possibilidades de exposição ao vírus, neste processo de construção de práticas é preciso assumir que nenhum protocolo atingirá o seu objetivo se não for compreendido pelos trabalhadores como instrumento para sua proteção, o que pode ocorrer se houver participação na elaboração, acompanhamento e atualização dos procedimentos, que devem incluir um forte sistema aberto de comunicação entre os trabalhadores, fornecimento de máscaras adequadas para o uso contínuo, o estabelecimento de estratégia de testagem dos assintomáticos para detecção precoce de casos, com imediato afastamento e rastreamento de contatantes.

A participação dos trabalhadores na construção de procedimentos nos planos de atuação das empresas e a transparência das ações são premissas que, articuladas com o conhecimento científico atualizado e em harmonia com as orientações das autoridades sanitárias, poderão criar práticas a serem ampliadas na busca de relações mais horizontais e democráticas, que abram possibilidades para um cotidiano com maior proteção à saúde dos trabalhadores.

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Editora Associada da RBSO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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