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Pó dentro - lutando e vivendo com desastres relacionados ao amianto no Brasil: uma resenha do livro

Mazzeo, A.. Dust inside - fighting and living with asbestos-related disasters in Brazil. 1st ed. New York: Berghahn; 2020. ISBN 978-1-78920-931-0; eISBN 978-1-78920-932-7

Dust Inside é uma obra sobre os desastres sanitários causados pela indústria mundial da invisibilização do risco do amianto e sobre o ativismo do “care”, movimento internacional pela “atenção-cuidado” em saúde que se lhe opõe e constrói progressivamente uma via de globalização contra-hegemônica.

A autora, doutora Agata Mazzeo, chama a atenção para os desastres invisíveis e silenciosos provocados pelo mercado transnacional do amianto e, seguindo “a trilha do pó” (amiantífero), levanta questões muito atuais que estimulam a reflexão crítica e o diálogo interdisciplinar em matéria relevante e urgente. Na melhor tradição da Antropologia em Saúde, revela como uma tragédia sanitária de grandes proporções foi ocultada por longo tempo e por conveniência econômica. Ao longo do livro, esmiúça as práticas corporativas de negação do risco que impedem ou dificultam a difusão da consciência ambiental e sanitária em meio à população em geral e aos trabalhadores em particular. Para Mazzeo, os desastres de saúde relacionados ao amianto são paradigmáticos de dinâmicas político-econômicas desse mundo interconectado pelo mercado globalizado e caracterizado pela desigualdade crescente e pela injustiça ambiental. Injustiça como a que se revela no duplo padrão de gestão de perigos e riscos à saúde, fartamente reportado na literatura especializada - em particular no âmbito das relações Norte-Sul. A pesquisadora da Universidade de Bolonha desvenda a fabricação silenciosa de doenças relacionadas ao amianto e sua camuflagem no claustro de uma aquiescência falaciosa denominada “uso controlado do amianto”.

Mazzeo relata que apenas quando se percebeu parte da pesquisa antropológica dos desastres relacionados ao amianto é que se plasmou a consciência de ter sido uma pessoa exposta às fibras dessa poeira mineral, quando residira em área de alto risco na vizinhança da Cementifera Fibronit, empresa de produção de artefatos de cimento-amianto em Bari (Apúlia, Itália). A pesquisa etnográfica multicêntrica realizada no Brasil recupera - e, de certo modo, conflui e potencializa - sua trajetória acadêmica anterior e sua experiência profissional com o ativismo italiano pela reparação de vítimas do amianto. Ao todo, o livro traduz 10 anos de pesquisa com múltiplos atores do ativismo sanitário, aqui e lá. São alvos de sua perscrutação os paralelos e intersecções entre o julgamento do processo de Casale Monferrato (Itália) e o movimento brasileiro de vítimas do amianto.

O trabalho de campo etnográfico de Mazzeo no Brasil foi desenvolvido em vários estados federativos, mas foi em Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo, onde assumiu seu vértice mais denso e fecundo. Ali, cidade na qual a Eternit teve sua primeira fábrica de cimento-amianto no Brasil - além de ser a maior planta industrial de processamento desse mineral na América Latina - ela entrevistou vítimas da “bomba-relógio” que fez de suas vidas uma condição existencial de padecimento incessante em razão da dor provocada pelas doenças relacionadas ao amianto (DRAs), exacerbada pela angústia diante da escamoteação que a empresa articulou contra seus direitos.

Em trabalho de fôlego, a autora coleta e analisa magistralmente narrativas vívidas de pessoas que submeteram seus corpos à experiência do confronto desleal com o mineral indestrutível. Até onde nos é dado saber, tais narrativas ainda não haviam sido registradas no Brasil, pelo menos não nesse grau de completude. É curioso e até emblemático que isso tenha ocorrido por meio da escuta e pelas mãos de Mazzeo, como se a cidade fundada por Antonio Agù1 b O piemontês Agù, nascido em 1845 na homônima Osasco (uma pequena localidade peninsular pertencente à província de Turim), foi um empreendedor pioneiro da comunidade italiana radicada em São Paulo. aguardasse por um seu conterrâneo a lhe dar ouvidos sobre vicissitudes e lutas sanitárias que não surgiram do vazio, muito menos da noite para o dia. Mazzeo recupera no Capítulo 2 uma parte da história da cidade, de seu povo e de suas lides sindicais, nas quais, segundo a autora, até mesmo uma veia anarquista adquiriu expressão por meio de imigrantes italianos, ali estabelecidos em forte corrente migratória a partir do século passado. Subúrbio paulistano, povoado por famílias de operários de várias origens que trabalhavam em São Paulo - um polo industrial nascente na virada dos séculos XIX e XX - Osasco nasceu e cresceu com sotaque sindicalista. Na década de 1960 emancipou-se da capital paulista por meio do movimento autonomista, ocasião em que foi alçada à categoria de município. Portanto, é nesse contexto de trabalho industrial especializado em fábricas de artefatos de fibrocimento-amianto que se ocuparam os atores das narrativas examinadas pela pesquisadora.

A partir disso Mazzeo obteve uma descrição valiosa de como os trabalhadores se expuseram a níveis extremamente elevados de amianto em locais de trabalho e, mais do que isso, de como utilizaram seus próprios corpos para construir um conhecimento socialmente relevante; conhecimento encarnado, entranhado em órgãos vitais e que paulatinamente foi sendo compartilhado com outros sujeitos, na epopeia pelo reconhecimento de que foram vítimas das DRAs. A obra detalha a intensa coleta de material etnográfico, durante os 10 meses de trabalho em solo brasileiro, com os ativistas-sofredores - para usar os termos próprios da autora - e familiares: suas esposas, viúvas e filhos, em sua maioria.

O texto também mostra como familiares e cônjuges de trabalhadores se expuseram ao amianto, de forma indireta, por meio da poeira acumulada no trabalho e carregada nas suas vestimentas e nos próprios corpos. Junto do pó industrial, então ingenuamente “domesticado” em seus lares, esses cônjuges experimentaram o desastre em suas vidas em brutal paroxismo. Desastres a princípio invisíveis, e depois tênues, que terminam por coalescer em uma comunidade “visível” de sujeitos expostos, que compartilha a experiência de adoecimento e articula uma resistência coletiva contra contestações da empresa e contra o apagamento social frente a demandas legítimas. Se por vezes o relato etnográfico suscita convergência com certa narrativa epidemiológica, própria de “História Natural da Doença”, em outras irrompe contra o silêncio epidemiológico que a “afasia” sanitária produziu no território por falta de medidas preventivas. A presença-ausência dos falecidos é trazida à luz nas estórias de vida, como autênticas molduras em que a dignidade pessoal em luta pelo reconhecimento do desastre e a solidariedade do ativismo confrontam o sofrimento encarnado e o luto de perdas irrecuperáveis.

O protagonismo da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea) merece destaque como um ator coletivo que irá lhe revelar - durante o trabalho de campo - as ações sociopolíticas promovidas pela comunidade dos expostos frente aos desastres vividos. Mazzeo analisa como, por meio dela, as singularidades das experiências individuais corpóreas de sofrimento moldam e conferem substância a um novo conhecimento, que ganha uma dimensão de movimento social pela saúde e contra a invisibilidade social dessas doenças. Ao mesmo tempo, aponta como esse novo conhecimento pode amparar Políticas Públicas de Saúde e Políticas Públicas de Trabalho Seguro e digno.

O livro apresenta inputs interessantes para os pesquisadores do campo da saúde, além de reafirmar o valor heurístico das Ciências Sociais em saúde. Com sua lupa antropológica, Mazzeo amplia nossa visão do processo saúde-doença em sua relação com o trabalho e, ao fazê-lo, obriga-nos a enxergar a “síndrome de cão vira-lata” cultivada pelo etnocentrismo das elites brasileiras. Ela faz um trabalho destinado a se tornar referência acadêmica, nos dois hemisférios. Porém, ao fim e ao cabo, a mensagem é bem maior do que isso tudo. A saga dos expostos adoecidos assume ar de manifesto. O ar que lhes falta aos pulmões no grito da doença agora vem inspirado a combater a doença do silêncio. Uma leitura imperdível.

* * Nota: No decorrer da elaboração desta resenha uma carga de mais de 300 toneladas de amianto in natura (seriam 340 ton1, 459 ton2) ou algo em torno a 400 ton3?) foi interditada no porto de Santos pela Vigilância Sanitária do estado de São Paulo, cujo destino era o exterior, em flagrante desrespeito à legislação brasileira. Essa notícia atualiza a relevância da questão sociossanitária e de justiça ambiental que o banimento do amianto assumiu em todo o mundo ao longo das últimas décadas. Se pensar globalmente (a cadeia do risco desastroso) impõe uma ética do agir localmente (para prevenir ou desfazer seus elos), qualquer permissividade em sentido oposto será decerto uma afronta à humanidade. Referências

  • b
    O piemontês Agù, nascido em 1845 na homônima Osasco (uma pequena localidade peninsular pertencente à província de Turim), foi um empreendedor pioneiro da comunidade italiana radicada em São Paulo.
  • *
    Nota: No decorrer da elaboração desta resenha uma carga de mais de 300 toneladas de amianto in natura (seriam 340 ton11. Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto. Sama afronta de novo o STF, tenta exportar 340 toneladas de amianto. 10 carretas chegam ao porto de Santos. ABREA [Internet]. 3 mar 2021 [citado em 20 maio 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.abrea.org.br/not%C3%ADcias/publica%C3%A7%C3%B5es/458-abrea-denuncia-sama-afronta-de-novo-o-stf,-tenta-exportar-340-toneladas-de-amianto-10-carretas-chegam-ao-porto-de-santos,-em-sp,-nesta-tarde
    https://www.abrea.org.br/not%C3%ADcias/p...
    , 459 ton22. Santos. Carga de 459 toneladas de amianto é interditada em terminal do Porto de Santos. Prefeitura de Santos [Internet]. 8 mar 2021 [citado em 20 maio 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.santos.sp.gov.br/?q=noticia/carga-de-459-toneladas-de-amianto-e-interditada-em-terminal-do-porto-de-santos
    https://www.santos.sp.gov.br/?q=noticia/...
    ) ou algo em torno a 400 ton33. International Ban Asbestos Secretariat. Confidence tricksters and Asbestos thugs from the Brazilian state of Goiás. IBA Secretariat [Internet]. 24 mar 2021 [citado em 20 maio 2021]. Disponível em: Disponível em: http://ibasecretariat.org/lka-confidence-tricksters-and-asbestos-thugs-from-the-brazilian-state-of-goias.php
    http://ibasecretariat.org/lka-confidence...
    ?) foi interditada no porto de Santos pela Vigilância Sanitária do estado de São Paulo, cujo destino era o exterior, em flagrante desrespeito à legislação brasileira. Essa notícia atualiza a relevância da questão sociossanitária e de justiça ambiental que o banimento do amianto assumiu em todo o mundo ao longo das últimas décadas. Se pensar globalmente (a cadeia do risco desastroso) impõe uma ética do agir localmente (para prevenir ou desfazer seus elos), qualquer permissividade em sentido oposto será decerto uma afronta à humanidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2021
  • Aceito
    06 Abr 2021
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