Estudos epidemiológicos ocupacionais em área rural: desafios metodológicos

Resumo

Introdução:

a produção agrícola no Brasil tem crescido nas últimas décadas e os trabalhadores rurais estão expostos a vários riscos ocupacionais. Estudos epidemiológicos sobre o tema ainda são limitados, especialmente pela complexidade metodológica.

Objetivos:

apresentar os principais desafios metodológicos para a realização de estudos epidemiológicos ocupacionais rurais.

Métodos:

as considerações apresentadas neste artigo têm como base a literatura e a experiência dos autores como pesquisadores desta temática.

Resultados:

foram abordados conceitos sobre população alvo, local de moradia e trabalho, classificação dos trabalhadores e caracterização do contexto da produção agrícola. Foram exploradas as estratégias de amostragem; a caracterização dos indicadores econômicos, incluindo produção agrícola e nível de mecanização; a exposição aos agrotóxicos, como tipos químicos, formas e frequência de exposição; a intoxicação por agrotóxicos; e a disponibilidade e o uso de Equipamentos de Proteção Individual. Foram descritos os cuidados com amostras biológicas, bem como aspectos envolvendo entrevistadores, treinamentos, trabalho de campo, questões climáticas e logísticas.

Conclusão:

apesar dos desafios metodológicos e logísticos, com o planejamento adequado é possível realizar com êxito pesquisas de grande complexidade e de alto nível científico sobre a relação saúde-trabalho na atividade agropecuária.

Palavras-chave:
agricultura; saúde do trabalhador; população rural; estudos epidemiológicos; agrotóxicos

Abstract

Introduction:

agricultural production in Brazil has grown in recent decades, and rural workers are exposed to many occupational risks. Epidemiological studies on the topic remain limited, especially regarding methodological complexity.

Objectives:

to present the main methodological challenges to carrying out occupational epidemiological studies in rural areas.

Methods:

the considerations presented in this article are based on the literature and on the experience of the authors as researchers of this thematic.

Results:

we approached concepts about target population, living and working place, workers classification, and agricultural production context characterization. We discussed sampling strategies, characterization of economic indicators, including agricultural production and mechanization level, pesticide exposure, such as chemical types, forms, and frequency of exposure, pesticide poisonings, and availability and use of personal protective equipment. We described the necessary care with biological samples and aspects involving interviewers, training, field work, and clinical and logistical issues.

Conclusion:

despite the methodological and logistical challenges, adequate planning enables successful research studies, of great complexity and high scientific level, about the health-work relationship in agricultural activity.

Keywords:
agriculture; occupational health; rural population; epidemiological studies; pesticides

Introdução

A produção agrícola no Brasil tem apresentado crescimento acentuado nas últimas décadas. Com base nos dados dos últimos Censos Agropecuários, entre 2006 e 2017, o valor bruto da produção agrícola apresentou um crescimento médio anual de 4,1%¹, apesar de uma redução de 8,8% do pessoal ocupado². Examinando o período entre 1995 a 2019, verificou-se que, enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) total cresceu 70%, o PIB da Agropecuária aumentou 129%²

No entanto, apesar do crescimento econômico e tecnológico, a atividade agrícola ainda é considerada uma das mais perigosas no Brasil e no mundo. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), trabalhadores da agricultura apresentam o triplo do risco de morte quando comparados aos de outras atividades, além de estarem expostos a vários riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos e ergonômicos³.

Existem poucos estudos epidemiológicos brasileiros enfocando o trabalho agrícola e muitos deles apresentam limitações metodológicas, como amostras pequenas e/ou não representativas, contexto produtivo mal definido, pesquisas sem grupo de comparação adequado e sem controle de fatores de confusão, entre outros. Acrescente-se a limitada produção de conhecimento sobre as questões de gênero no trabalho agrícola, subestimando a participação das mulheres⁴. Embora o número e a qualidade dos estudos nesta área tenham aumentado, as lacunas ainda são grandes, com destaque para os efeitos da exposição crônica aos agrotóxicos⁵. Além disso, os sistemas oficiais de informações em saúde apresentam importante sub-registro de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, limitando seu potencial como instrumentos de vigilância, em especial, dos riscos das atividades agrícolas^5),(6.

Mesmo autores com larga experiência em estudos epidemiológicos urbanos têm reconhecido as grandes dificuldades metodológicas e logísticas na realização de estudos em área rural com dados primários⁷. Estudos sobre temática rural com dados secundários, como estudos ecológicos⁸, também enfrentam limitação de acesso e qualidade de dados, entre outras dificuldades. Este artigo visa apresentar os conceitos e os principais desafios para a realização de estudos ocupacionais de base populacional em área rural, bem como compartilhar experiências exitosas a partir de estudos epidemiológicos realizados pelos autores^9)-(14.

Métodos

As reflexões apresentadas neste artigo têm como base a experiência dos autores em todas as fases da realização de estudos epidemiológicos em área rural. Com várias pesquisas que desenvolvemos, especialmente no contexto da agricultura familiar, houve a necessidade de buscar alternativas metodológicas para avaliar diferentes aspectos de saúde dos trabalhadores rurais. Além disso, os conceitos e metodologias discutidos são subsidiados pela literatura científica, pela participação na discussão de trabalhos de outros pesquisadores - especialmente em bancas e eventos - e pelos relatórios institucionais - como do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre outros.

O Quadro 1 apresenta alguns dos principais estudos que deram suporte às abordagens aqui discutidas.

Quadro 1
Aspectos metodológicos de estudos populacionais rurais

Local/estudo	Autores/ano	Focos do estudo	População alvo/ amostra	Delineamento	Aspectos Metodológicos
São Lourenço do Sul-RS/ Estudo da fumicultura	Faria, NMX et al/20236	Intoxicações agudas por agrotóxicos na fumicultura	492 Aplicadores de agrotóxicos na fumicultura de dois distritos - 1ª e 2ª etapas (junho-julho; outubro - novembro)	Transversal.	Comparou diferentes critérios de intoxicação: questionário de sintomas, exame médico padronizado e avaliação toxicológica. Usou avaliação de colinesterase plasmática, usou cartelas com fotos dos produtos para avaliar exposição a agrotóxicos
				Análise bivariada entre tipos químicos e sintomas relacionados a agrotóxicos
				Regressão de Poisson e análise e sensibilidade/ especificidade
	Faria, NMX et al/201413	Exposição ocupacional aos agrotóxicos, nicotina e Problemas psiquiátricos	2400 Fumicultores de 18 anos ou mais - 3ª etapa (safra)	Transversal. Regressão de Poisson	Avaliou a prevalência e os fatores ocupacionais associados aos distúrbios psiquiátricos menores, com ênfase nas exposições químicas a agrotóxicos e nicotina. Desenvolveu estratégias de amostragem e logísticas para a realização do trabalho de campo.
	Fassa, AG et al/201411	Fatores associados com Doença da folha verde do tabaco (DFVT)	2469 Fumicultores de 18 anos ou mais 3ª etapa	Transversal. Análise estratificada por sexo/ Regressão de Poisson	Caracterizou a DFVT com questionário padronizado, utilizando diversos recortes temporais e identificou fatores de risco para DVFT. Desenvolveu estratégias de amostragem e logísticas para a realização do trabalho de campo.
	Meucci, R et al/ 201514	Dor lombar crônica (DLC)	2469 fumicultores de 18 anos ou mais - 3ª etapa	Transversal. Regressão de Poisson	Descreveu tarefas realizadas na fumicultura. Caracterizou a dor lombar entre fumicultores com questionário padronizado, e examinou a associação entre exposições ocupacionais e DLC
	Meucci, R et al/ 201427	Limitação no trabalho por dor lombar crônica (DLC), dor lombar no último mês (DLM) e dor lombar aguda (DLA)	2469 fumicultores de 18 anos ou mais - 3ª etapa	Transversal. Regressão de Poisson	Apresentou um inventário de tarefas que os fumicultores com dor lombar tiveram que deixar de fazer ou fazer com alguma limitação
	Fiori, NS/ 201512	Chiado/ sintomas de asma	2469 fumicultores de 18 anos ou mais - 3ª etapa	Transversal. Análise estratificada por sexo/ Regressão de Poisson	Descreveu exposição a poeiras na fumicultura
					Avaliou prevalência e fatores ocupacionais associados à chiado no peito (sintoma de asma) no último ano.
São Lourenço do Sul-RS/ Estudo da fumicultura	Cruzeiro Szortyka, ALS et al/202130	Suicidalidade: ideação suicida e tentativas de suicídio	2469 fumicultores, 18 anos ou mais- 3ª etapa	Transversal.	Investigou prevalência ideação suicida (multivariada) e tentativa de suicídio, bem como os fatores associados à ideação suicida.
				Análise por Regressão de Poisson
	Fassa, AG et al/202121	Trabalho Infantil na fumicultura	99 jovens fumicultores, menores de 18 anos/ 3ª etapa	Transversal, incluiu cotinina urinária	Caracterizou o trabalho infantil na fumicultura e as prevalências de DFVT, chiado no peito, DLC, entre outros desfechos
	Fassa, AG et al/ 201845	Cotinina Urinária entre trabalhadores da fumicultura	582 Aplicadores de agrotóxicos na fumicultura + sintomáticos da DFVT	Transversal. Com coleta de urina nos selecionados/ Análise estratificada por sexo/ Regressão de Poisson	Avaliou a exposição à nicotina através da cotinina urinária.
			2ª e 3ª etapa		Identificou que a exposição ocupacional transdérmica a nicotina aumenta a cotinina urinária. Examinou o tempo que a cotinina urinária se mantem elevada. Sugeriu que a cotinina urinária não deve ser utilizada como biomarcador de DFVT.
Bento Goncalves-RS/ Estudo na fruticultura	Faria, NMXF et al/ 200910	Intoxicações agudas por agrotóxicos na fruticultura	290 agricultores aplicadores de agrotóxicos	Descritivo. Análise bivariada.	Investigou a prevalência de intoxicações agudas por agrotóxicos
			Amostra: todos os produtores de pêssego de dois distritos	Coleta de colinesterase na baixa/ alta exposição	Utilizou o questionário de sintomas relacionados aos agrotóxicos
Antonio Prado e Ipê-RS/ Estudo entre trabalhadores rurais na Serra Gaúcha	Faria, NMX et al/20009	Caracterização das atividades na agricultura familiar da Serra Gaúcha	1479 trabalhadores rurais	Transversal-descritivo. Análise bivariada	Desenvolveu estratégias para avaliar nível econômico das propriedades, desenvolveu questionário para descrever as tarefas agrícolas, as exposições ocupacionais, incluindo as formas e a intensidade de exposição a agrotóxicos
			Amostragem aleatória		Desenvolveu estratégias de amostragem e logísticas para a realização do trabalho de campo
	Faria, NMX et al/199942	Distúrbios Psiquiátricos Menores na agricultura familiar da Serra Gaúcha	1200 trabalhadores rurais	Transversal	Caracterizou a prevalência e os fatores ocupacionais associados à saúde mental na agricultura familiar. Identificou a associação entre intoxicações por agrotóxicos e distúrbios psiquiátricos menores
			Amostragem aleatória	Análise por regressão logística
	Faria, NMX et al/200620	Poeiras e sintomas respiratórios na agricultura familiar da Serra Gaúcha	1379 trabalhadores rurais	Transversal	Desenvolveu a listagem das poeiras orgânicas e minerais na agricultura familiar.
			Amostragem aleatória	Análise por regressão logística	Examinou a associação entre poeiras e os sintomas respiratórios
Vacaria/estudo em Unidades Produtivas Rurais	Stedile, NRL et al/ 202222	Uso de agrotóxicos nas unidades produtivas (UP)	428 Unidades Produtivas Rurais de área de cobertura de ESF	Transversal-descritivos. Análise bivariada	Caracterizou unidades produtivas rurais e os agrotóxicos eram manejados na UP, conforme número de módulos fiscais. Examinou diferenças no manejo dos produtos usados na agricultura e os produtos veterinários.

Resultados e discussão

A qualidade da produção científica sobre saúde dos trabalhadores rurais depende de um adequado desenho metodológico, com poder estatístico para investigar as associações planejadas e que seja capaz de minimizar vieses, em especial os de seleção e informação. Além disso, para melhorar a comparabilidade dos estudos, é preciso especificar os conceitos utilizados. Tendo em vista o contexto diversificado da atividade agropecuária brasileira e a carência de informações confiáveis para o conhecimento da realidade, recomenda-se observar os aspectos metodológicos discutidos neste artigo. Desta forma, será possível produzir conhecimento de qualidade para subsidiar políticas públicas de saúde do trabalhador rural.

Seleção da população alvo e do local do estudo

Definir a população alvo e o local do estudo são quesitos básicos. O IBGE considera população rural a partir de um critério administrativo (decreto público municipal), que é adotado na maioria dos estudos. Entretanto, existem outros critérios, como o da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), baseado principalmente na densidade demográfica, considerando rurais as áreas com menos de 150 habitantes/km². No Censo Demográfico de 2000, a proporção da população rural brasileira foi de 19% , mas usando os critérios da OCDE seria bem maior, passando para 30%¹⁶. Já no Censo de 2010, o IBGE identificou 15,6% da população como rural, porém, pelos critérios da OCDE, esta proporção seria de 24%¹⁷. Uma nova proposta de classificação, que vê um Brasil menos urbano, está sendo preparada para o Censo de 2022.

O termo rural refere-se principalmente ao espaço de trabalho ou de moradia de alguém. Existem pessoas que moram em ambiente urbano e trabalham em atividades agrícolas, assim como aqueles que moram na área rural e desenvolvem atividades não agrícolas. Desta forma, a partir da pergunta de pesquisa, é necessário definir se a população alvo deve ser constituída por moradores de área rural ou por trabalhadores agrícolas.

A seleção do local de estudo precisa considerar seu tema. Assim, para estudar a doença da folha do tabaco verde (DFTV) foi essencial selecionar uma área de fumicultura¹¹. Para avaliar as medidas de colinesterases entre aplicadores de agrotóxicos, em uma área de fruticultura, foram selecionados estabelecimentos que cultivavam pêssegos, onde a aplicação de organofosforados era frequente¹⁰. Em outras situações, como estudar a saúde mental¹³ ou problemas osteomusculares¹⁴, as opções de tipos de cultivos são bem mais amplas. De qualquer forma, para o planejamento da pesquisa, é necessário conhecer as culturas agrícolas predominantes, bem como a produção animal. Para investigar a exposição aos agrotóxicos, é preciso identificar as fases do ciclo agrícola em que o uso é mais ou menos intenso, adequando o período do trabalho de campo aos aspectos que se pretende avaliar.

Trabalhador rural ou agrícola

O termo trabalhador rural ainda é o mais usado, sendo o nome da representação sindical: “Sindicato dos Trabalhadores Rurais”. A NR31 (Norma Regulamentadora de Saúde e Segurança no Trabalho relacionada à atividade agrícola), publicada em 2005 e atualizada em 2020, manteve o nome de trabalho rural¹⁸. Contudo, existem controvérsias sobre a definição do que é rural^16),(19. Em geral a principal, mas não a única, atividade produtiva na área rural é a atividade agrícola, que inclui tarefas ligadas à produção primária de alimentos e fibras (agricultura, produção animal, horticultura, silvicultura e afins).

A maioria dos estudos considera trabalhador agrícola quem trabalha nesta atividade por 15 ou mais horas/semana^{9),(13),(20),(21}. Este recorte seleciona quem de fato tem exposição aos riscos do trabalho agrícola, evitando que o risco seja “diluído” entre aqueles que não realizam, ou que pouco realizam, essas atividades. Por outro lado, deixa de captar pessoas menos expostas a determinados riscos, como os agrotóxicos. Além disso, como o trabalho com agrotóxicos e na fumicultura é proibido para menores de 18 anos e idosos, algumas famílias não informam quando pessoas nessas faixas são trabalhadores regulares, gerando um viés de seleção²².

Alguns estudos que avaliam exposição química selecionam aplicadores de agrotóxicos, investigando quem foi aplicador no último ano ou na última safra para captar os indivíduos mais expostos¹⁰. Nessa abordagem, o grande desafio é definir um grupo de comparação. Trabalhadores de outras atividades frequentemente vivem em um contexto social diferente e podem não ser comparáveis. Por outro lado, a comparação com trabalhadores agrícolas que não utilizam agrotóxicos pode ser afetada pelo efeito do trabalhador sadio, visto que podem não se expor por apresentar algum problema de saúde, como asma ou câncer. A opção mais adequada parece ser entrevistar todos os trabalhadores, observando os seus níveis de exposição e comparando mais expostos com menos expostos. Alguns trabalhadores são expostos adicionalmente em outros ambientes de trabalho, sendo importante captar essas informações para posterior análise. Também é preciso observar a ocorrência daqueles que informam não participar na aplicação dos agrotóxicos, mas que podem ter sido expostos por executarem outras atividades simultâneas ou exercidas logo no ambiente onde ocorreu a aplicação.

Local do trabalho: propriedade, estabelecimento (agrícola/rural), unidade produtiva rural

O termo propriedade se refere à área registrada em nome de um proprietário e sua família, ou de uma empresa agrícola, que pode ou não ter produção agropecuária. O termo mais adequado para uma área com produção agrícola é estabelecimento rural ou agrícola.

O local de trabalho também pode ser caracterizado como unidade produtiva agrícola²³ quando várias pessoas da mesma família, ou empresa, produzem e comercializam a produção de forma conjunta, ocupando áreas que pertencem a mais de um proprietário ou sócio, mas com gerenciamento unificado. Na maioria dos estudos, foi usado o conceito de unidade produtiva (UP), porque na agricultura familiar é comum a propriedade da terra estar dividida entre membros da família.

A UP deve ser caracterizada em relação à área total, incluindo aquelas usadas para agricultura, produção animal, mata nativa e outros. Apesar de ser frequentemente medidas em hectares, outras unidades de medida podem ser utilizadas. Por exemplo, pode-se utilizar a classificação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) ⁽²⁴, que considera o número de módulos fiscais. O tamanho dos módulos varia nos estados, e até mesmo nos municípios, entre 5 e 110 hectares²⁴. O INCRA classifica os imóveis rurais por área em: minifúndio, inferior a um módulo fiscal; pequena propriedade, entre um e quatro módulos fiscais; média propriedade, superior a quatro e até 15 módulos fiscais; e grande propriedade, superior a 15 módulos fiscais²⁴. Esta classificação já foi usada para descrever as características das UPs e as práticas utilizadas na gestão dos agrotóxicos²³.

A caraterização do processo produtivo varia conforme os objetivos do estudo. Considerando que nem todos os trabalhadores têm o conhecimento necessário para informar sobre as características das UPs, estas podem ser coletadas em um questionário específico, aplicado ao principal operador do estabelecimento, de forma a garantir informações mais consistentes e evitar dados ignorados. Posteriormente, o banco de dados com as características das UPs será unificado com o que contém informações individuais dos trabalhadores de cada uma delas. Destaca-se a importância de checar rigorosamente as numerações dos questionários do estabelecimento e os individuais, para que seja possível fazer o relacionamento entre os bancos de dados. O correto relacionamento entre eles é fundamental, principalmente nos estudos que analisam o efeito do contexto sobre um ou mais desfechos em determinado grupo de indivíduos.

Contexto produtivo: agricultura familiar ou patronal/empresarial

A agricultura familiar, que em 2006 respondia por cerca de três quartos das pessoas ocupadas em atividades agrícolas, sofreu redução de 17% no número de pessoas ocupadas em 2017²⁵. A legislação brasileira (Lei nº 11.326/2006) definiu a agricultura familiar como aquela desenvolvida em área menor ou igual a quatro módulos fiscais; com predomínio da mão de obra familiar e da renda de origem agrícola; e com UP dirigida pelo agricultor ou familiar²⁶. Esses requisitos são essenciais para acesso a linhas de financiamento, como a do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Entretanto, estudos epidemiológicos podem optar por utilizar os critérios legais de forma parcial, ou até mesmo outros critérios, para definir agricultura familiar.

Além da agricultura familiar, existe também a agricultura patronal e/ou empresarial, na qual a mão de obra predominante é a de empregados rurais. No Brasil, são cerca de 5 milhões de estabelecimentos agrícolas de diferentes tamanhos e níveis tecnológicos²⁷. Grandes estabelecimentos, por exigência da legislação (NR-31 e outras) ⁽¹⁸, devem ter dados sobre riscos químicos, físicos e biológicos, bem como resultados de exames de saúde complementares. Informações sobre riscos relacionados a aspectos ergonômicos ainda são muito limitadas no trabalho agrícola. A realização de pesquisas em grandes estabelecimentos passa por uma negociação com os gerentes e/ou proprietários que eventualmente pode ser apoiada por outros órgãos²³, como Conselho Municipal de Saúde e Ministério Público do Trabalho. De qualquer forma, além da autorização da gerência do estabelecimento, é preciso obter o consentimento de cada entrevistado, expresso na assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, tanto nas unidades empresariais como nas familiares.

Definição dos entrevistados: família proprietária e/ou empregados

Os estudos podem conter entrevistas de todos os moradores ou apenas daqueles que são trabalhadores agrícolas. Na caracterização da família proprietária, pode haver dúvida sobre quem é parente, de fato, especialmente quando pessoas com vínculos mais distantes - como tios, esposas e filhos, cunhado, genro, nora, entre outros - vivem na UP. Em geral consideram-se da família proprietária todos os que tenham vínculos de parentesco e não sejam empregados. Contudo, também é possível restringir o conceito àqueles que dividem parte da renda oriunda da produção. Os arrendatários, embora não tenham a posse da terra, atuam como responsáveis pela direção do estabelecimento agrícola com sua família.

No trabalho agrícola são encontrados empregados fixos e temporários, com vínculos formais e informais. Além disso, existem inúmeros arranjos entre vizinhos, com trocas de diferentes tarefas (por exemplo, um ajuda a carregar os frangos e outro passa o trator no terreno ou ajuda na aplicação de agrotóxicos).

Na agricultura patronal/empresarial com grande produção, em geral os empregados são fixos e/ou contratados para um período de trabalho (como na safra), mas ainda existem os informais. Entre 2006 a 2017, o Censo Agropecuário apontou aumento de 143% nas contratações por terceiros neste segmento²⁵.

Existem dificuldades para entrevistar empregados temporários, como os safristas. Muitos trabalham em mais de um estabelecimento no mesmo período, não estão disponíveis em todos os dias da semana, ou não moram na área rural. Além disso, quem contrata, pagando por hora ou dia de trabalho, resiste a liberar esses trabalhadores para responder a uma entrevista. Isso compromete a localização e o contato com eles, dificultando a logística do trabalho de campo. Adicionalmente, ao trabalharem em vários estabelecimentos, tornam mais complexa a caracterização do local de trabalho. As restrições legais ao trabalho infantil também prejudicam a identificação e a realização de entrevistas com trabalhadores agrícolas menores de 18 anos. Nos casos em que este é um grupo de interesse, recomenda-se incluir todos os moradores da UP e captar a participação nas atividades agrícolas ao longo da entrevista²². Em estudos sobre a agricultura familiar, também é desafiador compatibilizar a caracterização econômica. Enquanto para a família proprietária são utilizados indicadores econômicos agrícolas do estabelecimento, no caso de empregados, a forma de pagamento pode ser variável, sendo majoritariamente um valor monetário pago para o indivíduo. Nesses estudos, pode ser mais fácil não incluir empregados temporários. Caso este grupo seja o foco de um estudo, é preciso considerar as dificuldades apontadas no delineamento e no planejamento do trabalho de campo.

Seleção da amostra

A obtenção de uma amostra representativa de base populacional também se constitui como um desafio dos estudos epidemiológicos rurais. Dependendo dos objetivos do estudo e da estrutura do município, pode ser usada a lista dos moradores de área rural com cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF) ^{(14),(23),(15}. Porém, nem sempre os municípios têm uma boa cobertura de ESF rural. Listas de produtores dos Institutos de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) também podem ser utilizadas, mas nem sempre estão disponíveis. Por isso, na agricultura familiar, a melhor opção tem sido o sorteio dos estabelecimentos a partir da lista de produtores rurais (modelo 15), disponível nas Prefeituras Municipais.

Após o sorteio, é necessário buscar apoio de informantes chave (equipes de ESF, EMATER e outros) para localizar os estabelecimentos ou UPs. Para alcançar a amostra de trabalhadores desejada, é preciso definir o número de estabelecimentos ou UPs que precisam ser sorteados, utilizando estimativas censitárias do número de pessoas ocupadas por estabelecimento. No Censo Agropecuário de 2017 foram encontradas 2,98 pessoas ocupadas por estabelecimento²⁸, enquanto no estudo da fumicultura este número foi de 2,88, sendo necessário sortear uma amostra suplementar¹². É essencial garantir amostras de tamanho adequado para alcançar o poder estatístico²⁹ necessário para realizar análise multivariável com capacidade de detectar riscos moderados, como os que têm sido encontrados na associação entre agrotóxicos e vários desfechos em saúde^{12)-(14),(30)-(32}. Além disso, deve-se definir números amostrais mínimos em categorias ou estratos populacionais, quando existe a intenção de analisar subgrupos no estudo, por exemplo, conforme sexo/gênero ou faixa etária, ou ainda para permitir a comparação entre trabalhadores que desempenham diferentes atividades.

Para reduzir perdas e recusas, sugere-se fazer ampla campanha de divulgação em todos os meios de comunicação que tenham impacto na população-alvo específica, como programas de rádio, participação em eventos locais, missas e cultos, e, em especial, divulgações prévias por meio das equipes de saúde da família e agentes comunitários de saúde.

Indicadores econômicos

A caracterização dos indicadores econômicos em área rural é similar à da zona urbana, quando se avalia empregados com vínculo formal, obtém-se a renda mensal. Entretanto, na agricultura familiar, é preciso buscar alternativas, uma vez que, em geral, as relações de trabalho não são formalizadas e a remuneração pode se apresentar de diferentes modos (trabalho temporário, parceria, arrendamento, sistema integrado). Assim, outros indicadores podem ser utilizados para caracterizar o perfil econômico e tecnológico da UP familiar. A renda bruta, por exemplo, tem sido estimada pelo volume anual dos principais produtos agrícolas e/ou o tamanho dos rebanhos comercializados nos últimos doze meses^9),(13),(14.

O nível de mecanização também tem se mostrado um bom indicador, sendo caracterizado pela disponibilidade de máquinas agrícolas. O Censo Agro 2017 avaliou tratores (< 100 cavalos ou ≥ 100 cavalos de potência do motor), semeadeiras ou plantadeiras, colheitadeiras, adubadeiras ou distribuidoras de calcário e aeronaves de uso agrícola^27),(33. Contudo, para avaliar efeitos de agrotóxicos, pode ser mais importante discriminar tratores não pela potência, mas pela presença de cabine fechada, filtro químico e ar condicionado²³. Com estas informações, é possível construir um indicador sintético do nível de mecanização a partir da soma dos maquinários disponíveis. O indicador sintético também pode utilizar uma ponderação para levar em consideração se o maquinário é próprio ou alugado, qual a sua potência e/ou tempo de uso. Um indicador específico da fumicultura é a disponibilidade de estufa elétrica, pois embora aumente o consumo de eletricidade, facilita o trabalho dos fumicultores.

Também é importante avaliar a propriedade de veículos, como automóveis de passeio, motocicletas ou veículos para transporte de produção (caminhões, camionetas e outros utilitários). Embora com menor impacto econômico, tem crescido a presença de motocicletas no campo e, se por um lado, elas são importantes para facilitar o deslocamento da população rural, por outro estão relacionadas ao aumento de acidentes³⁴.

O nível tecnológico, incluindo o acesso a assistência técnica, tem sido mais relacionado ao aumento de produtividade e de renda, que o tamanho do estabelecimento³⁵. O acesso a créditos rurais, a tecnologias de irrigação, a energia elétrica e solar também podem influenciar na produtividade e na renda do estabelecimento³³. A disponibilidade de câmaras frias ou estar integrado a uma cadeia produtiva pode facilitar a comercialização da produção e aumentar a renda³⁶. Por outro lado, os agricultores costumam contrair empréstimos para financiar a produção e, eventualmente, acabam endividados. Destaca-se a importância de avaliar este aspecto, uma vez que estudos apontam que a dificuldade em pagar dívidas^13),(30, bem como a queda na produção agrícola³⁷ - ou outros indicadores de pior condição econômica -, se mostraram como importante fator de risco para desfechos adversos em saúde mental.

A pluriatividade, ou agricultura em tempo parcial, tem crescido, uma vez que fontes de renda oriundas de atividades não agrícolas podem aumentar a renda e a qualidade de vida, contribuindo para fixação destes trabalhadores na atividade agrícola. Comparando com o de 2006, o Censo Agro de 2017 identificou um percentual importante e crescente de pluriatividade, em especial na agricultura familiar²⁷. Porém, dependendo do tipo de atividade não agrícola, os trabalhadores podem ser expostos a outros riscos ocupacionais importantes. Como esta é uma tendência histórica (no Brasil e em outros países), recomenda-se caracterizar e dimensionar estas atividades em estudos sobre trabalhadores rurais.

A questão dos agrotóxicos

A avaliação da exposição a agrotóxicos é limitada; não existem biomarcadores para muitos dos tipos químicos disponíveis no Brasil, ou estão disponíveis somente em grandes centros, ou têm alto custo. A legislação atual (NR-7, em sua versão atualizada em 2022) ⁽³⁸ prevê como obrigatório o monitoramento da exposição ocupacional ao arsênico, raramente usado, e aos inseticidas inibidores de colinesterase, por meio da Colinesterase - plasmática ou eritrocitária. Este biomarcador é também utilizado em estudos epidemiológicos, mas apresenta várias limitações: é específico para inibidores da colinesterase; no caso de Carbamatos, que causam inibição temporária, o tempo de avaliação é bastante restrito; precisa de uma medida de referência (no período não exposto) que nem sempre está disponível, envolve coleta de sangue e pode sofrer interferência de vários problemas de saúde³⁹. Em outros países, existem vários biomarcadores da exposição a agrotóxicos que podem ser medidos em metabólitos urinários ou em cabelo. A avaliação da exposição a agrotóxicos também se torna mais complexa pela exposição multiquímica, tanto pela utilização de produtos que combinam vários tipos químicos quanto pela utilização de produtos diferentes.

Para obter informação referida sobre exposição a agrotóxicos, o primeiro desafio é identificar os principais tipos químicos usados. Uma experiência bem-sucedida foi a utilizada no estudo da fumicultura^6),(13. Com o apoio de informantes chaves (EMATER, Sindicato de trabalhadores rurais, técnicos agrícolas, lojas agrícolas e outros), foi construída uma lista com cerca de 70 nomes comerciais dos agrotóxicos mais usados. Elaborou-se cartelas plastificadas com 12 produtos em cada página, contendo as fotos e os respectivos nomes dos agrotóxicos. Essas cartelas foram usadas pelos entrevistadores para facilitar aos entrevistados a identificação dos produtos usados no estabelecimento. Para a análise, os produtos comerciais foram unificados conforme seus ingredientes ativos e grupos químicos^6),(40.

Para o estudo sobre intoxicações agudas por agrotóxicos na fumicultura^6),(13, os aplicadores eram solicitados a identificar os produtos usados nos últimos 30 dias e a data do último dia em que ocorreu o contato. Este sistema pode ser limitado para avaliar exposições antigas, mas foi bastante útil na avaliação da exposição recente com agrotóxicos⁶. Mesmo assim, persistiram algumas dúvidas sobre diferenças na formulação ou na concentração de alguns produtos.

A exposição a agrotóxicos deve ser avaliada por critérios temporais, conforme tempo médio de uso, como horas/dia, dia/semana, dias/mês ou dias/ano. Este último foi usado nos EUA⁴¹⁾ como um dos indicadores da exposição cumulativa, ponderando conforme tipo de EPI usado, além de outros critérios. Outros estudos utilizaram anos de exposição como o principal critério de exposição cumulativa¹³. A partir destes dados, pode ser construído um indicador sintético de intensidade de exposição.

As formas de exposição podem ser descritas pela atividade executada, como aplicar, preparar a calda, auxiliar na aplicação, limpar equipamentos, abastecer tanque de pulverização, lavar roupa contaminada, transportar, armazenar, fazer uso veterinário e entrar na lavoura/pomar após aplicação^6),(13),(42. Além disso, algumas situações podem indicar maior exposição, como aplicar em mais de uma UP ou ocorrer derramamento do produto na roupa ao executar essas ou outras atividades, sendo este um dos critérios para caracterizar evento de alta exposição^6),(43.

Destaca-se a importância de avaliar a ocorrência de intoxicação aguda por agrotóxicos, não só por sua própria relevância, mas também porque tem se mostrado um fator associado a vários problemas crônicos de saúde^13),(14. Para essa avaliação, pode ser usada a informação referida pelo trabalhador, o diagnóstico médico ou a aplicação de um questionário de sintomas relacionados aos agrotóxicos seguindo a metodologia proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para classificação de intoxicações agudas por agrotóxicos^6),(44.

Amostras biológicas

Dependendo dos objetivos do estudo, será necessário coleta e processamento de amostras biológicas de sangue, urina e outros. O estudo da fumicultura foi bem-sucedido nesse aspecto^6),(45, contando com técnicas de enfermagem experientes para realizar a coleta de sangue, reduzindo problemas de hemólise nas amostras. Como a colinesterase plasmática é uma enzima sensível a variações de temperatura, logo após a coleta do sangue, os frascos eram rotulados e armazenados em caixas térmicas com controle rigoroso de temperatura. Ao final do dia, no laboratório, eram centrifugados e preparados para envio ao laboratório de toxicologia. No estudo da fruticultura¹⁰, um laboratório de exames ocupacionais deslocou para os distritos rurais unidades móveis com recursos humanos e material necessário para coleta e processamento do sangue, incluindo as centrífugas. Em ambos os casos, a coleta era realizada logo após a realização das entrevistas e o tempo máximo até a entrega ao laboratório toxicológico era de no máximo dois dias¹⁰, respeitando o tempo ideal de processamento, de forma a garantir a qualidade dos resultados.

Em ambos os estudos, a coleta de sangue ocorreu em dois momentos: no período do inverno, quando não são usados inseticidas (exame de referência), e no auge da aplicação de agrotóxicos. Para definir a medida de referência, recomenda-se pelo menos um mês sem exposição aos inseticidas inibidores de colinesterase³⁸. Para posterior análise dos resultados laboratoriais, é importante ter o registro do último dia em que ocorreu a exposição.

Na fumicultura, no período da colheita do tabaco, também se avaliou a cotinina urinária⁴⁵. Para isso, o frasco era entregue para o trabalhador que preenchesse os critérios, e a urina era colhida na sua própria residência. As amostras eram armazenadas em freezers alugados, distribuídos nos distritos onde o estudo estava sendo realizado. Periodicamente as amostras congeladas eram encaminhadas ao laboratório toxicológico.

Recentemente, têm surgido novas perspectivas de exames de avaliação de exposição de vários tipos de agrotóxicos, como: organofosforados, piretroides, neonicotinoides, ditiocarbamatos, glifosato e outros. Em estudos internacionais, têm sido usados metabólitos urinários e outros tipos de amostras biológicas - como fios de cabelo, fezes e saliva ⁽³⁹.

Equipamentos de Proteção Individual - EPI

Estudos têm avaliado o uso de EPIs, como: chapéu, roupas de proteção, máscaras, luvas e calçado fechado/bota. Entretanto, essa forma de avaliar apresenta importantes limitações, porque não distingue a finalidade do uso (proteção química para agrotóxicos), o que é roupa (que o trabalhador considera “de proteção”) e o que é EPI certificado. Para uma avaliação mais adequada, é importante caracterizar o uso de macacão ou calça e jaleco impermeáveis ou de tecido hidrorepelente (com impermeabilizante), botas impermeáveis de cano alto, avental impermeável, respirador ou máscara com filtro químico bem ajustado, viseira ou máscara facial para proteção da face e dos olhos, luvas impermeáveis para produtos químicos (nitrílica ou neoprene) e touca árabe (boné com aba de proteção para pescoço).

Além disso, deve ser examinada a frequência de uso e se é usado em todas as tarefas em que há risco de contaminação. Isso inclui a lavagem de roupas contaminadas, a reentrada após aplicação e a limpeza de equipamentos usados na aplicação. É preciso verificar também a correta higienização dos EPI antes de serem usados. Alguns trabalhadores relatam a reutilização de alguns equipamentos sem prévia descontaminação e, assim, o que seria fator de proteção pode se tornar causa de contaminação.

Entrevistadores

Os entrevistadores, preferencialmente com ensino médio completo, precisam realizar entrevistas, preencher corretamente os questionários e frequentemente utilizarão dispositivos como tablets, PDAs (palm top) ou aplicativos no celular. Assim, é essencial que tenham habilidade para registrar corretamente as informações nesses equipamentos.

No estudo da fumicultura, os entrevistadores selecionados foram ex-agentes comunitários de saúde (ACS) das ESF rurais^12),(14),(15. Na terceira etapa, quando foi necessário aumentar o número de entrevistadores, foram contratados adicionalmente recenseadores do IBGE¹². Em outros estudos, professoras de área rural, alunos no final de ensino médio (moradores de área urbana) ⁽⁹, outros servidores públicos ou trabalhadores de sindicatos rurais realizaram as entrevistas^10),(23.

Pela proximidade geográfica e pela relação de confiança com a comunidade, os ACS conseguiram garantir maior adesão à pesquisa na fumicultura. Por outro lado, em temas sensíveis, como problemas de saúde mental, o fato de os entrevistadores serem conhecidos dos entrevistados pode reduzir o relato de sintomas, subestimando a magnitude do problema de saúde mental (viés de informação) ^{(13),(30),(42}.

Outro aspecto importante é a necessidade de remunerar os entrevistadores, uma vez que trabalhadores voluntários nem sempre apresentam compromisso com a tarefa, especialmente com o cumprimento de metas que permitam realizar o trabalho de campo no tempo previsto. O número de entrevistadores necessários vai depender do tamanho da amostra, da logística do estudo e da complexidade dos instrumentos.

Treinamentos e estudo piloto

O treinamento e o estudo piloto são fundamentais para avaliar os candidatos a entrevistadores e refinar o planejamento do estudo. Essas atividades permitem que experienciem a aplicação de questionários e a logística do trabalho de campo, possibilitando ajustes e esclarecimento de eventuais dúvidas.

No estudo da fumicultura^11)-(14 foram realizados três treinamentos. O primeiro, com duração de dois dias, para apresentar o estudo, treinar preenchimento de questionários e técnicas de entrevistas. O segundo treinamento incluiu uma versão preliminar dos instrumentos, já em formato digital, assim, os candidatos tiveram oportunidade de manejar o dispositivo que foi utilizado. Falhas e problemas detectados na programação do aparelho, bem como inadequações do questionário foram novamente revisadas. Além disso, foi realizado um estudo piloto em estabelecimentos não amostrados, a fim de avaliar o desempenho dos candidatos e a adequação do questionário. Após ajustes nos instrumentos, foi realizado um terceiro treinamento para apresentar a versão final dos questionários, treinar entrevistas e acertar os últimos detalhes.

É essencial elaborar um manual de instruções, definindo e padronizando as respostas de questões duvidosas. O manual deve ser usado durante os treinamentos para que os entrevistadores se familiarizem com o material. Nele, deve estar prevista a postura do entrevistador, aspectos relacionados a seleção da amostra como critérios de inclusão/exclusão e regras para substituição. Também deve esclarecer as questões, como a classificação da escolaridade. Esse é um aspecto que tem mudado ao longo do tempo, portanto, o manual pode incluir uma tabela (digital ou cartela plastificada) com a equivalência entre as classificações que existiam e os anos de estudo com aprovação. É fundamental que os entrevistadores tragam para discussão com a supervisão as dúvidas que não foram previstas nos treinamentos e no manual.

Período do trabalho de campo

Os riscos ocupacionais variam conforme a fase do ciclo agrícola predominante na região. Deve-se evitar que o trabalho de campo comece numa fase e se prolongue para outras etapas do ciclo agrícola, porque pode ocorrer mudança no padrão de exposição, em especial no risco químico.

Assim, no estudo da fumicultura, para avaliar a doença da folha do tabaco verde¹¹ (e outros problemas de saúde^12)-(14) foram entrevistados 2.570 fumicultores nos meses de colheita (janeiro e fevereiro). Para dar conta desse desafio, foi necessário contratar 36 entrevistadores^12),(14 bem treinados e com suporte necessário, especialmente uma boa logística de transporte, para garantir um trabalho de campo ágil e adequado. Nesse mesmo estudo, e similar ao que foi realizado na fruticultura¹⁰, para examinar intoxicações agudas por agrotóxicos, cerca de 500 fumicultores aplicadores de agrotóxicos foram avaliados em duas etapas, de baixa e intensa exposição a agrotóxicos, durante 2-4 semanas⁶.

O trabalho de campo em área rural envolve um desgaste físico e operacional considerável, além de um alto custo, especialmente devido aos deslocamentos. É necessário prever retornos em UPs para entrevistar pessoas que não estavam disponíveis na primeira visita, além de eventuais problemas de saúde envolvendo membros do grupo de pesquisa. Portanto, o planejamento do estudo deve prever recursos e logística que viabilizem um trabalho de campo ágil e que ocorra na mesma fase do ciclo agrícola.

Questões climáticas

Interferências climáticas são comuns no trabalho de campo rural. Excesso de chuva pode complicar os deslocamentos, gerando problemas com veículos em estradas com manutenção precária. Alguns lugares podem ficar inacessíveis. Por outro lado, é mais fácil encontrar as pessoas em casa em dias chuvosos. O planejamento deve levar em conta essas dificuldades, considerando também o conforto térmico dos entrevistadores.

Além disso, a questão climática pode impactar a produção agrícola. Em diferentes estudos, foram observados problemas como temporais, granizo, geadas fora de época ou seca. Ou seja, o trabalhador rural é refém do clima. Assim, o planejamento do estudo deve levar em conta os possíveis impactos agrícolas das questões climáticas e captar informações para posterior análise.

Um aspecto pouco avaliado, mas que também deve ser considerado, são os impactos da exposição prolongada ao calor, que pode produzir stress térmico e, em alguns casos, efeitos crônicos - como nefropatias⁴⁶.

Deslocamentos e outras questões logísticas

Este é um dos pontos críticos do trabalho de campo, pois as estradas rurais costumam ser precárias, danificando ou atolando veículos. Na maioria das vezes, é necessário apoio de instituições - como Secretarias de Saúde ou outros órgãos da Prefeitura Municipal, Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) e outros. No estudo da fumicultura^6),(11 foram disponibilizados alguns veículos oficiais (da Universidade Federal de Pelotas e da Secretaria Municipal de Saúde), além de os carros dos pesquisadores. Todavia, não foram suficientes para todas as necessidades. Uma boa solução foi a contratação de entrevistadores com veículo próprio (carro/moto), ampliando a remuneração para cobrir os custos do combustível. Porém, isso limita as opções de entrevistadores e aumenta os custos do trabalho de campo, que podem ser bem superiores ao estimado (cerca de 140 km/dia/veículo). Sugere-se prever recursos adicionais para este item do orçamento.

Para as questões de alimentação das equipes, considerando a escassez de opções em área rural, realizou-se a contratação prévia de vários locais para refeições do grupo, com fácil acesso (casa de família/bar), alcançando toda a área de estudo.

Outros aspectos metodológicos

Em estudos epidemiológicos ocupacionais, é comum analisar os fatores de risco para determinado problema de saúde. Mas também é possível estudar o impacto das morbidades sobre a capacidade produtiva, ou seja, as limitações para o trabalho decorrentes dessa patologia. Esta abordagem foi feita examinando as limitações para tarefas agrícolas na produção de tabaco devido à dor lombar¹⁵.

Embora não seja um aspecto exclusivo de estudos em área rural, é pertinente reforçar a importância de utilizar instrumentos validados, que podem variar conforme o foco do estudo; por exemplo, problemas respiratórios, osteomusculares, saúde mental ou uso/abuso de substâncias.

Considerações finais

A produção agrícola brasileira, de crescente importância social e econômica, apresenta características produtivas diversificadas, que podem impactar as condições de trabalho e a saúde dos trabalhadores. Embora tenham aumentado ao longo do tempo, ainda são escassos os estudos epidemiológicos sobre o trabalho agrícola, possivelmente devido aos vários desafios metodológicos no projeto, na análise, nos aspectos logísticos e na abordagem dos diversos riscos ocupacionais. Porém, com um planejamento adequado, é possível realizar com êxito pesquisas de grande complexidade e de alto nível científico sobre a atividade agrícola, bem como sobre a população rural.

Dada a sua complexidade, este artigo não esgota todos os desafios que podem se apresentar em estudos epidemiológicos rurais, mas traz reflexões importantes e sugestões práticas, oriundas da experiência na realização deste tipo de pesquisa e das lições aprendidas pelos pesquisadores. Assim, são apresentados subsídios relevantes para a realização de futuros estudos que possam contribuir para a construção de conhecimento na área da saúde do trabalhador rural.

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Disponibilidade de Dados:

• os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

• Financiamento:

  os autores declaram que o trabalho não foi subvencionado.

• Apresentação do estudo em evento científico:

  os autores informam que o trabalho não foi apresentado em evento científico e que não foi baseado em dissertação ou tese.

Editado por

Editor-Chefe

José Marçal Jackson Filho

Disponibilidade de dados

os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  04 Set 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  01 Out 2022
• Revisado
  09 Fev 2023
• Aceito
  22 Fev 2023