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Violência no trabalho: dimensões estruturais e interseccionais

Resumo

Introdução:

a violência é um fenômeno histórico e sociocultural que acompanha a humanidade desde sua origem. Nos contextos de trabalho, a violência tem sido objeto de renovada atenção nas últimas décadas, em razão da incidência de sérios problemas que assolam os trabalhadores, tais como: os suicídios, a criminalidade e os transtornos mentais e comportamentais.

Objetivo:

discutir as dimensões estruturais e interseccionais da violência relacionada ao trabalho (VRT).

Métodos:

foi realizada reflexão teórica assentada na literatura científica.

Resultados:

os debates sobre a interseccionalidade permitem compreender os riscos psicossociais como resultados das interações dos trabalhadores com os imbricados processos sociais, que remetem às estruturas de poder, notadamente às relações transversais de classe, “raça” e gênero, sem prejuízo à incorporação de outros eixos de diferenciação social que importem para os sujeitos e para a análise do trabalho.

Conclusão:

conclui-se que a VRT não pode ser adequadamente compreendida e enfrentada sem o entendimento das suas distintas dimensões, bem como das articulações entre elas, das suas manifestações plurais e interseccionais, além de seu caráter sistêmico no modo de produção capitalista.

Palavras-chave:
saúde do trabalhador; violência no trabalho; acidentes de trabalho; interseccionalidade; capitalismo

Abstract

Introduction:

violence is a historical and sociocultural phenomenon that accompanies humanity since its origin. In work contexts, violence has been the object of renewed attention in recent decades due to the incidence of serious problems affecting workers, such as suicides, criminality, and mental and behavioral disorders.

Objective:

to discuss the structural and intersectional dimensions of work-related violence (WRV).

Methods:

a theoretical reflection based on scientific literature was carried out.

Results:

debates on intersectionality enable us to understand psychosocial risks as a result of workers’ interactions with intertwined social processes that refer to power structures, notably cross-cutting relations of class, “race,” and gender, without prejudice to the incorporation of other axes of social differentiation that matter to subjects and to the analysis of work.

Conclusion:

WRV cannot be properly understood and faced without the evaluation of its different dimensions, the articulations between them, its plural and intersectional manifestations, and its systemic character in the capitalist mode of production.

Keywords:
occupational health; violence at work; work accidents; intersectionality; capitalism

Introdução

A violência é um fenômeno que acompanha a humanidade desde sua origem11. Silveira AM. Violência no trabalho. In: Mendes R, organizador. Patologia do trabalho. 3a ed. Vol. 1. São Paulo: Atheneu; 2013. p. 677-700.. Nos contextos laborais, é igualmente um fenômeno antigo, tendo sido objeto da atenção de importantes pensadores ao longo dos últimos tempos. No século XIX, Karl Marx22. Marx K, Engels F. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo; 1998.),(33. Marx K. O Capital. [Livro I]: crítica da economia política. O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo; 2013. e Friedrich Engels44. Engels F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra: segundo as observações do autor e fontes autênticas. São Paulo: Boitempo; 2008. descortinam o caráter sistêmico da violência operada pela lógica da acumulação infinita do capital, ao investigarem o modo de produção capitalista e suas formas de exploração da força de trabalho e dos recursos naturais. A violência associada ao contexto laboral também é abordada nos escritos da filósofa Simone Weil55. Bosi E, organizador. Simone Weil: a condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1996., que trabalha como operária durante a década de 1930, vivenciando opressões; nas reflexões do psiquiatra Louis Le Guillant66. Lima ME, organizador. Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia à psicopatologia do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2006., as quais dão corpo à psicopatologia do trabalho na década de 1950; e nas produções de Heinz Leymann77. Leymann H. Mobbing and psychological terror at workplaces. Violence Vict. 1990;5(2):119-26. sobre o mobbing e o psicoterror na década de 1990. Essas produções teóricas aportam valiosas compreensões sobre os vínculos entre violência e trabalho. Tudo isso referindo-se a um recorte circunscrito no período do capitalismo, sem aludirmos ao regime escravocrata, no qual a violência manifesta-se de modo brutal e explícito.

No Brasil, nos anos 1990, diversos estudos sobre a saúde dos trabalhadores e as relações da saúde com a violência laboral concentraram-se na investigação de lesões por esforços repetitivos; de intoxicações por agrotóxicos, chumbo e mercúrio; de dermatoses profissionais; de pneumoconioses decorrentes da exposição ocupacional prolongada à poeira de sílica e de asbesto; e de acidentes laborais, sobretudo os mutilantes e fatais88. Buschinelli JT, Rocha LE, Rigotto RM, organizadores. Isto é trabalho de gente?: vida, doença e trabalho no Brasil. São Paulo: Vozes; 1993.),(99. Ribeiro HP. A violência oculta do trabalho: as lesões por esforços repetitivos. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; 1999.. Algumas pesquisas, porém, já se dedicavam à relação entre saúde mental e trabalho1010. Selligman-Silva E. Uma história de "crise de nervos": saúde mental e trabalho. In: Buschinelli JT, Rocha LE, Rigotto RM, organizadores. Isto é trabalho de gente?: vida, doença e trabalho no Brasil. São Paulo: Vozes; 1993. p. 609-35..

Com as mudanças econômicas, sociais e tecnológicas que impactam o mundo do trabalho, a temática da saúde mental ganha maior relevância, muitas vezes em par com o tema das múltiplas violências no trabalho. As transformações socioculturais tornam moralmente inaceitáveis os atos de violência, outrora naturalizados e banalizados11. Silveira AM. Violência no trabalho. In: Mendes R, organizador. Patologia do trabalho. 3a ed. Vol. 1. São Paulo: Atheneu; 2013. p. 677-700.. Simultaneamente, há um alargamento da compreensão teórica da violência no trabalho, que passa a incorporar um conjunto mais amplo de situações. A partir do século XXI, a violência psicológica passa a se destacar em pesquisas sobre o fenômeno do assédio moral nos contextos laborais1111. Barreto MM. Uma jornada de humilhações [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2000.)-(1313. Vieira CE, Lima ME, Lima FP. E se o assédio não fosse moral?: perspectivas de análise de conflitos interpessoais em situações de trabalho. Rev. bras. saúde ocup. 2012;37(126):256-68., notando seus efeitos deletérios para a saúde mental dos trabalhadores. A noção de assédio moral traduz-se em um conceito “guarda-chuva”, permitindo à classe trabalhadora nomear e denunciar um mal-estar que antes parecia inconfessável. Por último, o interesse pela temática da violência no contexto laboral é revigorado em razão da incidência de outros sérios problemas que assolam os trabalhadores, tais como: suicídios1414. Dejours C, Bègue F. Suicídio e trabalho: o que fazer? Brasília, DF: Paralelo 15; 2010., criminalidade violenta1515. Bucasio E, Vieira I, Berger W, Martins D, Souza C, Maia D, et al. Transtorno de estresse pós-traumático como acidente de trabalho em um bancário: relato de um caso. Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul. 2005;27(1):86-9.)-(1717. Vieira CE. O nexo causal entre o transtorno de estresse pós-traumático e trabalho: controvérsias acerca do laudo de uma perícia judicial. Rev. bras. saúde ocup. 2009;34(120):150-62., transtornos mentais e comportamentais, especialmente, a depressão1818. Jardim S. Depressão e trabalho: ruptura de laço social. Rev. bras. saúde ocup. 2011;36(123):84-92., o transtorno de estresse pós-traumático1919. Vieira, CE. Transtorno de Estresse Pós-traumático nos contextos de trabalho: das experiências traumáticas ao desenvolvimento do transtorno mental [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2014. e a síndrome de burnout2020. Magalhães TA, Vieira MR, Haikal DS, Nascimento JE, Brito MF, Pinto L, et al. Prevalência e fatores associados à síndrome de burnout entre docentes da rede pública de ensino: estudo de base populacional. Rev. bras. saúde ocup. 2021;46:e11.. Os episódios cotidianos de violência nos ambientes de trabalho têm reclamado, portanto, análises mais refinadas.

Em face desse quadro, é importante perceber que os trabalhadores vivenciam situações marcadas por riscos biológicos, químicos, físicos e psicossociais. Outrossim, interessa considerar que essas condições estão articuladas na trajetória dos trabalhadores pelos processos econômicos, políticos e socioculturais, configurando experiências laborais coletivas e, concomitantemente, singulares. Elucidar essas relações não é uma tarefa simples e implica desafios, relativos tanto às abordagens teórico-metodológicas quanto ao contexto sociopolítico atual, no qual se observam disputas entre distintos espectros político-ideológicos. A esse respeito, nota-se, de um lado, uma tentativa de negar e ocultar a violência vinculada ao trabalho e, sobretudo, ao modo de produção capitalista; de outro, uma luta que objetiva desvelar e enfrentar as violências étnico-racial, de gênero e de classe perpetradas contra os trabalhadores.

Defendemos a perspectiva de que a violência, o adoecimento e a saúde no trabalho não são insensíveis ou indiferentes à “raça”, ao gênero ou à classe. Elucidando, brevemente, os três conceitos, destacamos as aspas utilizadas em “raça”, já que esse termo carece de respaldo científico ao se tratar da espécie humana2121. Guimarães AS. Raça e os estudos de relações raciais no Brasil. Novos Estud. CEBRAP. 1999;54(2):147-56.. Contudo, justifica-se o uso dessa noção como categoria sociológica, pois nas relações sociais reproduzem-se cotidianamente desigualdades econômico-sociais para pessoas negras e privilégios para as brancas. No que concerne ao conceito de gênero, seguimos a linha da historiadora Joan Scott2222. Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. 2017;20(2):71-99. para destacarmos analiticamente, e não apenas descritivamente, as construções socioculturais relativas aos modos de ser dos diferentes sexos. Assim, observamos as expectativas, as normas e os papéis determinados, ao longo da história, pela cultura e pela sociedade - e não pelas características biológicas - em relação a eles. Finalmente, baseado nas concepções de Marx e Engels22. Marx K, Engels F. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo; 1998., o conceito de classe divide a sociedade capitalista em duas classes principais e antagônicas, burguesia e proletariado. O estudo aqui proposto requer, portanto, uma abordagem sensível a esses eixos de diferenciação social, presentes nas estruturas de poder, demandando uma capacidade de capturar as diferentes lógicas intercruzadas da violência e de seus efeitos.

Nessa linha argumentativa, apresenta-se uma reflexão sobre a violência no - e do - trabalho, que caminha na direção de um alargamento conceitual, de modo a aglutinar as diferentes expressões da violência sob o conceito de violência relacionada ao trabalho. Mais ainda, que faculta perceber a violência não apenas como produto, mas como forma reprodutora das lógicas e dos processos de dominação e exploração que fundamentam a sociedade capitalista, racista e patriarcal.

Violência relacionada ao trabalho e suas dimensões

Na conceituação da Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência consiste em um “uso intencional da força ou poder em uma forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa ou grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações” (p. 5)2323. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy J A, Zwi AB, Lozano R, editores. Informe mundial sobre la violencia y la salud. Washington, DC; 2003 [citado 11 Jul 2022]. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/725/9275315884.pdf.
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1...
. Para Minayo e Souza2424. Minayo MC, Souza ER. Violência e saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva. Hist. cienc. saude-Manguinhos. 1997;4(3):513-31., a violência manifesta-se em ações que podem ser perpetradas por “indivíduos, grupos, classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade física, moral, mental ou espiritual” (p. 514). A violência não se reduz a atos individuais, tampouco se limita às situações com desfechos fatais, cuja gravidade é inegável, precisando assim ser compreendida mais amplamente, incorporando diferentes dimensões e consequências.

O fenômeno da violência tem reclamado atenção mundial e, em suas variadas dimensões e formas de expressão, tem se espraiado em todo o tecido social, ao mesmo tempo em que se constitui como parte dele, impactando severamente a vida das pessoas - particularmente a dos trabalhadores - como um problema de Saúde Pública1616. Oliveira RP, Nunes MO. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Saude soc. 2008;17(4):22-34.),(2323. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy J A, Zwi AB, Lozano R, editores. Informe mundial sobre la violencia y la salud. Washington, DC; 2003 [citado 11 Jul 2022]. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/725/9275315884.pdf.
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1...
. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) alerta para o fato de que acontecimentos como o estresse e a violência no trabalho ocasionam repercussões significativas sobre a saúde dos trabalhadores, exigindo das nações “tratar os riscos psicossociais e colocar em prática medidas de prevenção mais adequadas”2525. Organização Internacional do Trabalho. ILO introductory report: global trends and challenges on occupational safety and health: XIX World Congress on Safety and Health at Work: Istanbul Turkey, 11-15 September 2011. Geneva; 2011. (p. 8).

Essa temática é bastante atual. Em 2019, a OIT publica a Convenção nº 190 e a Recomendação nº 206 sobre “Violência e Assédio”, destacando esses conceitos como práticas e comportamentos inaceitáveis e intoleráveis no contexto laboral, devendo os países signatários adotar políticas, medidas e estratégias para enfrentá-los e preveni-los2626. Organização Internacional do Trabalho. C190 - Convenção (n. 190) sobre Violência e Assédio. Geneva; 2019 [citado 11 Jul 2022]. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:C190.
https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=N...
.

No que concerne aos contextos laborais, Santos Júnior e Dias2727. Santos Júnior EA, Dias EC. Violência no Trabalho: uma Revisão da Literatura. Rev. bras. med. trab. 2004;2(1):36-54. notam uma tendência para distinguir a violência do trabalho da violência no (ambiente de) trabalho. Trata-se de duas noções distintas, mas que podem ser adotadas na compreensão das violências apresentadas no contexto laboral. Para esses autores, a abordagem sobre a violência do trabalho se refere a violência “que assola os trabalhadores quando são submetidos a condições e ambientes de trabalho insalubres e/ou inseguros, ou seja, aquela que se origina no modo de produção e na organização do processo de trabalho e que causa desconforto, sofrimento, desgaste, fadiga, adoecimento e até mesmo a morte”2727. Santos Júnior EA, Dias EC. Violência no Trabalho: uma Revisão da Literatura. Rev. bras. med. trab. 2004;2(1):36-54. (p. 42). Por outro lado, a violência no (ambiente de) trabalho alude a “comportamentos violentos, praticados por uma pessoa ou por um grupo de pessoas, sejam elas externas ao trabalho (assaltantes, por exemplo), internas (colegas de trabalho ou pessoa que tenha algum tipo de relação pessoal com a vítima) ou que tenha alguma relação com o trabalho (clientes e pacientes)” 2727. Santos Júnior EA, Dias EC. Violência no Trabalho: uma Revisão da Literatura. Rev. bras. med. trab. 2004;2(1):36-54. (p. 42).

A despeito dessa distinção, Santos Júnior e Dias2727. Santos Júnior EA, Dias EC. Violência no Trabalho: uma Revisão da Literatura. Rev. bras. med. trab. 2004;2(1):36-54. destacam que tal divisão conceitual tem apenas caráter didático, pois “se trabalhadores estão sendo agredidos nos seus locais de trabalho (violência no trabalho), podemos admitir que as condições de trabalho é que permitem que tal fato ocorra, ou seja, a violência no trabalho é uma das formas possíveis da violência do trabalho”2727. Santos Júnior EA, Dias EC. Violência no Trabalho: uma Revisão da Literatura. Rev. bras. med. trab. 2004;2(1):36-54. (p. 42). Essa assertiva é consoante ao entendimento de Oliveira e Nunes1616. Oliveira RP, Nunes MO. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Saude soc. 2008;17(4):22-34., os quais defendem o uso do conceito “violência relacionada ao trabalho” como noção capaz de aglutinar a pluralidade e a heterogeneidade de situações de violência vinculadas ao trabalho.

Na perspectiva da saúde pública, Minayo2828. Minayo MC. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde Pública. 1994;10(suppl 1):7-18. propõe, didaticamente, a divisão dos tipos de violência em três categorias: (1) violência estrutural, (2) violência da resistência (ou violência do comportamento) e (3) violência da delinquência. Apesar dessa divisão, a violência deve ser examinada com referência ao marco da violência estrutural, enraizada em alicerces sociais organizados e institucionalizados, como é o caso dos “sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte”2828. Minayo MC. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde Pública. 1994;10(suppl 1):7-18. (p. 8).

Com o alargamento da perspectiva teórica e a incorporação das dimensões estruturais, institucionais e comportamentais da violência, concebemos como violência relacionada ao trabalho:

  • As condições insalubres, precárias e degradantes engendradas pelo trabalho e capazes de afetar a saúde e a segurança dos trabalhadores. Seja em razão das relações jurídico-laborais, das condições materiais e ambientais e/ou dos modos de gestão e organização do trabalho, a precariedade impõe constrangimentos e riscos - biológicos, físicos, químicos, psicossociais - à vida dos trabalhadores. E, amiúde, se converte em acidentes, sofrimentos e doenças relacionadas à atividade laboral;

  • As situações de desemprego que marcam a privação do direito social ao trabalho e que atingem a subsistência, a subjetividade, o sentimento de utilidade e o valor pessoal, bem como a saúde mental dos trabalhadores;

  • A violência perpetrada contra os trabalhadores por pessoas pertencentes - ou não (clientes, usuários dos serviços) - às organizações e aos coletivos laborais. Os efeitos nocivos da criminalidade violenta têm sido objeto de atenção nas pesquisas em saúde mental e trabalho, as quais correlacionam psicopatologias, como depressão e transtorno de estresse pós-traumático, a violências no ambiente laboral. Todavia, lembramos que a violência relacionada a tais psicopatologias não advém apenas de agentes externos ao trabalho, sendo também produzida por indivíduos pertencentes a organizações ou coletivos laborais comprometidos (ou não) com funções hierarquicamente superiores. Os assédios moral e sexual, assim como o racismo, são exemplos desse tipo de violência e guardam importantes relações com a violência estrutural;

  • As violências praticadas por trabalhadores contra indivíduos da sociedade, clientes ou usuários de serviços, superiores hierárquicos e colegas de trabalho podem ter intricada relação com as dimensões estruturais e institucionais da violência. Lembremos que, na década de 1960, Le Guillant66. Lima ME, organizador. Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia à psicopatologia do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2006. analisa o crime bárbaro cometido pelas trabalhadoras domésticas, conhecidas como “irmãs Papin”, contra suas patroas, em 1933, na França. Sem descartar os fatores subjetivos vinculados à história e às personalidades das autoras da atrocidade, o autor destaca pontos importantes das relações entre o crime e a “condição de doméstica”, evidenciando a necessidade de uma leitura mais aprofundada da violência, capaz de articular aspectos psíquicos e sociais;

  • Os modos de gestão e organização do trabalho que engendram os processos de intensificação e dilatação das jornadas de trabalho, bem como que acentuam exclusões e humilhações dos trabalhadores, mediante adoção de práticas e de discursos nocivos à sua saúde. Trata-se de mecanismos de gestão lastreados na lógica da concorrência intercapitalista que, mediados inclusive pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação, têm produzido uma intensa alteração da temporalidade da vida. Cada vez mais, convertem o tempo da existência em tempo devotado à reprodução do capital, além de instarem os sujeitos a atividades convulsionadas e ininterruptas, disseminando a ideia de que são “livres” para agir. Tais modelos baseiam-se na “violência da positividade” e na “lógica da liberdade coercitiva”2929. Han BC. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes; 2015., bem como operam na degradação das relações interpessoais no trabalho, provocando e acirrando rivalidades, fragmentando as classes trabalhadoras, minando a solidariedade, produzindo solidão patogênica1414. Dejours C, Bègue F. Suicídio e trabalho: o que fazer? Brasília, DF: Paralelo 15; 2010. e quadros clínicos de esgotamento e depressão. Práticas e discursos calcados nos valores listados e na violência capitalista e neoliberal incidem sobre os trabalhadores, responsabilizando-os por seus respectivos desempenhos, em flagrante ausência de uma reflexão sobre as reais condições de trabalho e sobre a contumaz escassez de recursos disponíveis aos trabalhadores para responderem às exigências laborais. Consistem, pois, em práticas que não são inofensivas cantilenas motivacionais, mas que devem ser lidas como dispositivos simbólicos e psicopolíticos aptos a produzirem danos à saúde mental dos trabalhadores, posto que mobilizam a subjetividade em favor da produção, em detrimento da saúde.

O exposto é agravado pelas Contrarreformas Trabalhistas, como foi feito no Brasil por meio das leis nº 13.467 e nº 13.429, sancionadas em 2017 pela gestão do Governo Temer, que aprofundaram o “padrão de regulação privada do trabalho”3030. Krein JD. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo soc. 2018;30(1):77-104., generalizaram a terceirização e acentuaram as disparidades na relação entre capital e trabalho. Contrarreformas Trabalhistas dessa natureza engendram condições jurídico-laborais que agravam a precariedade e a vulnerabilidade social, sendo experimentadas pelos trabalhadores como condições geradoras de opressão e injustiça.

Episódios de violências estruturais e interseccionais em contextos de trabalho

O que as investigações contemporâneas revelam sobre a violência relacionada ao trabalho? E como esses estudos ampliam e aprofundam o conhecimento sobre o tema? Finalmente, como aperfeiçoam as práticas e as políticas públicas de proteção à saúde e à segurança dos trabalhadores? Expomos, adiante, alguns fragmentos que podem conduzir a importantes reflexões sobre essas temáticas.

Em um estudo sobre o desenvolvimento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) nos contextos laborais1919. Vieira, CE. Transtorno de Estresse Pós-traumático nos contextos de trabalho: das experiências traumáticas ao desenvolvimento do transtorno mental [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2014., analisamos o caso de uma vigilante acometida por esse transtorno após ter testemunhado o suicídio de um colega de trabalho e, em seguida, ter sido demitida pela empresa de vigilância. Além do sofrimento decorrente dessas situações, a vigilante relata ter sofrido outras violências ao longo de sua trajetória profissional. Havendo trabalhado em um Fórum do Poder Judiciário, ela afirma ter enfrentado, muitas vezes, agressões verbais por parte do público, especialmente ao ter de exigir das pessoas obediência às normas. Ela se posiciona no sentido de entender tais situações, embora essas violências a ferissem emocionalmente. O pior, contudo, acontece quando os funcionários da própria instituição a discriminavam. Em uma dessas situações, descrita pela vigilante, enfrenta o racismo perpetrado pela assistente de um magistrado:

o diretor da época […] ele, ele deu uma ordem lá escrito né… mandou lá o ofício falando que depois das 18 horas, era expressamente proibida a entrada de qualquer pessoa, e, se o vigilante deixasse entrar, ia ser mandado embora… aí ela [a assistente do magistrado] queria que a visitante entrasse. […] Ela falou que eu era de senzala… ela é assim, uma alta, loira, bonita, assessora de juiz, eu creio que uma pessoa assessora de juiz é uma pessoa estudada, né? No mínimo, eu esperava educação, [mas ela disse] “Eu não quero conversar com você, porque você é de senzala”. De quê que ela me chamou? Eu sou negra, mas eu gosto da minha cor… Eles falavam que eu era certinha. […] Então esse foi um dos fatos que me abalou muito… Eu comecei a sofrer muito… o fato que ela me chamou de negra, falou que eu trabalhava na senzala…1919. Vieira, CE. Transtorno de Estresse Pós-traumático nos contextos de trabalho: das experiências traumáticas ao desenvolvimento do transtorno mental [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2014. (p. 178-9).

Nesse ato de violência perpetrado, não se verifica simplesmente a “falta de educação” da assistente do magistrado, mas a presunção de uma inferioridade da vigilante e de uma suposta naturalidade da exploração e da opressão dessa trabalhadora, em razão de ser uma mulher negra e de classe socioeconômica de menor poder aquisitivo e concentração de bens. Todas essas informações são conectadas, imediatamente, pela assistente do magistrado - uma mulher branca, com maior poder aquisitivo -, por meio da alusão à “senzala”, ao regime de servidão e às violências do período da escravização.

Em outro estudo, realizado com trabalhadores atuantes na produção de fogos de artifício no município de Santo Antônio do Monte, no estado de Minas Gerais3131. Vieira CE, Oliveira AC, Silva IA, Couto RI. Os bastidores da produção de fogos de artifício em Santo Antônio do Monte: degradação das condições de trabalho e saúde dos pirotecnistas. Cad. psicol. soc. trab. 2012;15(1):135-52., é reportada a ocorrência de assédio sexual. Aproveitando-se de suas posições hierárquicas, alguns supervisores perpetram tal violência contra mulheres, brancas e negras, pertencentes a classes trabalhadoras vulneráveis:

Outra coisa que tá terrível aqui também, que as mulheres aqui precisam começar a denunciar, é o assédio sexual. Eu já fui vítima de assédio sexual aqui, sério mesmo, um certo encarregado, eu comecei a trabalhar e ele se aproveitava que a gente é novata… […] Então eles faz pressão na pessoa dentro do barracão ali mesmo. Eles chegam… ao invés de falar bom dia, já vai te colocar a mão e da mão no ombro já passa pra sua cintura e da cintura já fica querendo colocar mais embaixo e você tá com a mão suja de material e pede pra [ele] parar e a pessoa não para. [Você diz] “Tira a mão de mim!” [E ele responde] “Não, que isso?” “Você tá nervosa hoje, que cê tem? Calma.” E já vai te assediando. [Você diz] “Eu tô trabalhando, dá licença”. Aí eles não para e fica fazendo pressão em cima do cê. […] Já teve uma vez que eu tava sozinha dentro do barracão, aí ele entrou e já veio tentando me agarrar, e ele é insistente, não vê que você já deu fora nele, que você já falou que não quer, ele é insistente. Eu tenho vergonha até de falar, mas como é aqui só entre a gente… uma colega de trabalho falou [a pedido dele] assim: se você não der pra ele, ele vai te mandar embora, se não der pra ele, ele vai te mandar embora3131. Vieira CE, Oliveira AC, Silva IA, Couto RI. Os bastidores da produção de fogos de artifício em Santo Antônio do Monte: degradação das condições de trabalho e saúde dos pirotecnistas. Cad. psicol. soc. trab. 2012;15(1):135-52. (p. 143).

As duas situações aludidas constituem-se como expressões da violência relacionada ao trabalho e vinculam-se a distintas dimensões desse fenômeno. Não decorrem somente de problemas de caráter ou de desvios comportamentais, mas também se constituem como violências estruturais, enraizadas nas estruturas do patriarcalismo, do racismo e do modo de produção capitalista, que continuam a engendrar opressões, com flagrante omissão e/ou conivência por parte das organizações. Os episódios reportados evidenciam uma mentalidade colonial dos empregadores e/ou dos clientes desses serviços, cujas condutas eivadas pelo elitismo classista, racismo e sexismo exprimem as feições de uma sociedade calcada na herança do regime escravocrata, na hierarquia patriarcal e no antagonismo de classes. Nas situações descritas, as violências raciais e de gênero não apenas se somam ao poder exercido pela gestão capitalista sobre o trabalho, mas também o reforçam. Tais aspectos precisam ser considerados nas análises da saúde dos trabalhadores e no enfrentamento da violência.

Nas violências relacionadas ao trabalho, verifica-se uma intersecção de marcadores sociais de diferença que, nas relações de poder, podem reproduzir e acentuar estereótipos sociais e engendrar processos de humilhação e exclusão. As referências à cor da pele da vigilante e à “senzala” não são, de maneira alguma, fortuitas. Igualmente, não é o acaso que expõe as mulheres ao assédio sexual em contextos laborais, mas o predomínio de características socioculturais fundamentadas na hierarquia patriarcal e nos vetores político-econômicos do capitalismo objetivados no controle da força de trabalho. Nesse contexto, a subjugação das trabalhadoras não se reduz às atividades laborais, porém pressupõe a subordinação aos mandos hierárquicos que se utilizam, frequentemente, de coações para obter vantagens.

Assim, a violência, o adoecimento e a saúde relacionados ao trabalho não são indiferentes à “raça”, ao gênero, à classe e a outros marcadores sociais de diferença. Se isso é verdadeiro, a análise interseccional oferece contribuições relevantes para a Saúde do Trabalhador.

A incorporação da interseccionalidade na Saúde do Trabalhador

A leitura interseccional defendida neste estudo aproxima-se das proposições de Kimberlé Crenshaw3232. Crenshaw K. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antirracist Politics. University of Chicago Legal Forum. 2015:1989(1):139-67., Heleieth Saffioti3333. Saffioti E. O poder do macho. São Paulo: Moderna; 1987., Angela Davis3434. Davis A. Mulheres negras na construção de uma nova utopia. Portal Geledés [Internet]. 2011 [citado 10 jun 2022]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/
https://www.geledes.org.br/as-mulheres-n...
)-(3636. Gabriel RS. 'Política eleitoral, sozinha, não vai mudar as consequências do capitalismo racista globalizado', diz Angela Davis. Portal Geledés [Internet]. 2019 [citado 10 jun 2022]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/politica-eleitoral-sozinha-nao-vai-mudar-as-consequencias-do-capitalismo-racista-globalizado-diz-angela-davis/.
https://www.geledes.org.br/politica-elei...
, Danièle Kergoat3737. Kergoat D. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estud. CEBRAP. 2010;(86):93-103., Patricia Hill Collins e Sirma Bilge3838. Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.. Nessa direção, compreendemos que a interseccionalidade investiga “como as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como experiências individuais na vida cotidiana”3838. Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021. (p. 15). Constitui-se em uma ferramenta analítica que “considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária - entre outras, são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente”3838. Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021. (p. 15-6).

Contudo, em uma proposição materialista, cumpre indicar que as relações sociais devem ser compreendidas como “consubstanciais”, formando um “nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na perspectiva da análise sociológica”3737. Kergoat D. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estud. CEBRAP. 2010;(86):93-103. (p. 94). E, ademais, como “coextensivas”, pois, na medida em que se desenvolvem, “as relações sociais de classe, gênero e ‘raça’ se reproduzem e se co-produzem mutuamente”3737. Kergoat D. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estud. CEBRAP. 2010;(86):93-103. (p. 94). Assim, no nosso entendimento, não se trata de escolher uma luta em detrimento de outras, mas de reconhecer como as diferentes lutas - antirracista, anticapitalista e antissexista - se conectam3636. Gabriel RS. 'Política eleitoral, sozinha, não vai mudar as consequências do capitalismo racista globalizado', diz Angela Davis. Portal Geledés [Internet]. 2019 [citado 10 jun 2022]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/politica-eleitoral-sozinha-nao-vai-mudar-as-consequencias-do-capitalismo-racista-globalizado-diz-angela-davis/.
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. Conforme a filósofa Angela Davis3434. Davis A. Mulheres negras na construção de uma nova utopia. Portal Geledés [Internet]. 2011 [citado 10 jun 2022]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/
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Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as interseções entre “raça”, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.

Ressalta-se, nesse sentido, a compreensão de que os múltiplos eixos de diferenciação social operam de forma interdependente. Embora se observe o uso do termo “categorias”, as intersecções não devem ser pensadas como noções estáticas de gênero, “raça” e classe, mas como relações de poder dinâmicas e históricas. Ou seja, as categorias não podem ser dissociadas “das relações sociais dentro das quais foram construídas”3737. Kergoat D. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estud. CEBRAP. 2010;(86):93-103. (p. 98). Sob o ângulo do materialismo, “essas relações - gênero, ‘raça’, classe - são relações de produção. Nelas, entrecruzam-se exploração, dominação e opressão”3737. Kergoat D. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estud. CEBRAP. 2010;(86):93-103. (p. 99). Posto isto, concordamos com a afirmação de Saffioti sobre o fato de o capitalismo operar uma “simbiose” entre os sistemas de dominação-exploração representados pela classe, pelo patriarcado e pelo racismo3333. Saffioti E. O poder do macho. São Paulo: Moderna; 1987..

A interseccionalidade permite, no nosso entender, uma percepção mais acurada da violência, particularmente da violência relacionada ao trabalho, assim como uma compreensão mais integrada e refinada dos processos de saúde e de adoecimento no trabalho. Segundo Collins e Bilge3838. Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021., “Em vez de ver as pessoas como uma massa homogênea e indiferenciada de indivíduos, a interseccionalidade fornece uma estrutura para explicar como categorias de raça, classe, gênero, idade, estatuto de cidadania e outras posicionam as pessoas de maneira diferente no mundo. Alguns grupos são especialmente vulneráveis às mudanças na economia global, enquanto outros se beneficiam desproporcionalmente delas”3838. Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021. (p. 33).

Os cotidianos de trabalho no Brasil são marcados por situações que exigem uma análise estrutural e interseccional: a escravização de mulheres negras, mantidas por décadas como cativas; as violências contra as trabalhadoras domésticas e contra os entregadores de empresas-aplicativos; a violência de gênero e/ou transfóbica contra parlamentares mulheres e/ou transgêneros; as violências dirigidas aos trabalhadores rurais, migrantes ou refugiados; a violência sofrida e perpetrada por trabalhadores das forças de segurança; entre outras.

Dessa maneira, precisa-se considerar classe, gênero e “raça”, além de outros marcadores de diferença. A subalternidade e a carência de recursos, no capitalismo, levam os trabalhadores de certas classes sociais a ficarem mais sujeitos a aceitar condições de trabalho degradantes e precárias, assim como a ficarem expostos a situações de risco para a saúde e a segurança. A cultura patriarcal e machista desfere golpes violentos contra as mulheres trabalhadoras, sendo o assédio sexual apenas um de tantos exemplos. O racismo estrutural inferioriza com base nas características físicas e na cor da pele, distinguindo aqueles que têm acesso a direitos e a privilégios daqueles cujas vidas importariam pouco, aspecto sintetizado nos versos da canção “A Carne”, de Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette, interpretada por Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”3939. Soares E. Do cóccix até o pescoço [CD-ROM]. São Paulo: Maianga; 2002. CD-ROM: som, cor..

A interseccionalidade favorece o reconhecimento e a leitura das experiências vividas pelos trabalhadores, bem como uma práxis apoiada na consideração das múltiplas, inter-relacionadas e simultâneas formas de opressão. As experiências vividas pelos trabalhadores em seu contexto laboral não estão dissociadas das relações de “raça”, classe e gênero, que são constitutivas das relações de poder e, concomitantemente, constituídas como meios de opressão. Os processos de subjetivação, saúde e adoecimento não podem ser lidos de forma homogênea e abstrata, à margem das relações sociais nas quais se lastreiam.

No lugar de uma esterilização das noções de sofrimento e de adoecimento psíquico - que tende a homogeneizar as vivências singulares, a ignorar aspectos socioculturais constitutivos do sofrimento e a ocultar as violências estruturais -, a interseccionalidade leva à compreensão da singularidade das vivências subjetivas em suas dimensões constitutivas e interpenetradas.

Entendemos que a analítica interseccional viabiliza a luta pela saúde no trabalho de maneira não restrita a ações compartimentadas, dirigidas ora aos problemas oriundos das condições do trabalho, ora às violências raciais ou de gênero, frequentemente tomadas como questões “individuais” ou de “relações humanas”. As ações destinadas à prevenção do adoecimento, à promoção da saúde e à transformação da realidade laboral devem se dirigir simultaneamente às estruturas, aos processos e às relações sociais de “raça”, gênero e classe. Tais marcadores sociais da diferença se traduzem como fluxos vinculados às trajetórias e experiências dos trabalhadores e, portanto, aos seus modos de viver, adoecer e morrer no trabalho.

No caso do assédio moral, configurado como uma violência relacionada ao trabalho, por exemplo, trata-se de identificar a opressão decorrente das relações de classe1313. Vieira CE, Lima ME, Lima FP. E se o assédio não fosse moral?: perspectivas de análise de conflitos interpessoais em situações de trabalho. Rev. bras. saúde ocup. 2012;37(126):256-68. e, sem relegá-las a um plano secundário, contemplar seus diferentes eixos de diferenciação social. O mesmo pode ser dito em relação ao assédio sexual no trabalho, que é determinado pelas relações de gênero, mas também de “raça” e de classe. Como lembra Davis3535. Davis A. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo; 2016.: “Por já terem estabelecido a dominação econômica sobre suas subordinadas do sexo feminino, empregadores, gerentes e supervisores podem tentar reafirmar sua autoridade em termos sexuais” (p. 201).

Os debates sobre a interseccionalidade permitem compreender os riscos psicossociais como resultados das interações dos trabalhadores com os imbricados processos sociais, que remetem às estruturas de poder, notadamente, as relações transversais de classe, “raça” e gênero, sem prejuízo à incorporação de outros eixos de diferenciação social que importem para os sujeitos e para a análise do trabalho.

O pensamento interseccional, a nosso ver, pode coadunar-se com a perspectiva marxiana que refuta a “concepção especulativa de subjetividade”, afirmando que a base ontológica do ser social é o seu processo de vida real, bem como que a “essência humana” nos remete, inelutavelmente, ao conjunto das relações sociais4040. Rocha FA. O complexo categorial da subjetividade nos escritos marxianos de 1843 a 1846 [dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2003.. A analítica interseccional pode, ademais, combinar-se com a perspectiva da psicopatologia do trabalho fundada por Louis Le Guillant66. Lima ME, organizador. Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia à psicopatologia do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2006., que aporta relevantes contribuições para o estudo dos processos de adoecimento no trabalho. Entre elas, o resgate do “drama humano”, com toda sua “conotação emocional”, e o princípio de que sujeito e meio se constituem como uma unidade histórica e dialética “indissolúvel”, sendo esta uma “lei fundamental, à qual não pode escapar o psiquismo normal ou doente, nem o próprio paciente inteiro”66. Lima ME, organizador. Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia à psicopatologia do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2006. (p. 41).

Considerações finais

A violência relacionada ao trabalho produz sofrimentos, enfermidades, privações, incapacidades, mutilações, mortes. A caracterização e o enfrentamento desse problema devem considerar as inter-relações entre as dimensões estruturais e as interseccionais. Sem considerá-las, o fenômeno será recorrentemente interpretado de forma enviesada, sendo reduzido a acontecimentos classificados como fortuitos e decorrentes apenas de desvios psicopatológicos dos indivíduos - uma perspectiva que não logra êxito na análise e no enfrentamento da violência.

Sustentamos que a violência relacionada ao trabalho não pode ser adequadamente compreendida e enfrentada sem o entendimento das suas distintas dimensões, das suas articulações, das suas manifestações plurais e interseccionais, assim como do seu caráter sistêmico no capitalismo. “Raça”, gênero, classe e os outros marcadores sociais de diferença precisam ser considerados em suas inter-relações para que as análises e práticas possam avançar. A exploração capitalista, o racismo e a hierarquia patriarcal devem ser enfrentados como tarefa inelutável do tempo presente, na teoria e na prática, sendo necessário que a Saúde dos Trabalhadores assuma um posicionamento interseccional.

Finalmente, mesmo que a violência integre a história da humanidade e não tenha sido criada pelo capitalismo, não podemos afirmar que esse sistema logra eliminá-la. Ao contrário, verificamos a produção de diferentes violências, inclusive das relacionadas ao trabalho, assim como a contínua reprodução de formas ideológicas dominantes que operam de maneira a encobrir as contradições engendradas pela lógica do capital e pelo domínio da burguesia sobre os trabalhadores. Tais contrassensos são, muitas vezes, apresentados à sociedade de modo dissimulado, como se fossem o resultado inelutável da história e dos méritos individuais ou, ainda, frutos do acaso e exigências incontornáveis do progresso.

Assim, ao enfrentarmos as violências relacionadas ao trabalho, devemos considerar igualmente, como horizonte, a superação do modo de produção capitalista. Afinal, como afirma Saffioti, o “capitalismo é incompatível com a igualdade social. Para não mencionar o problema das classes sociais, pedra fundamental do capitalismo, este sistema socioeconômico não admite tampouco a igualdade entre as diferentes raças e entre as distintas categorias de sexo”3333. Saffioti E. O poder do macho. São Paulo: Moderna; 1987. (p. 40).

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  • Disponibilidade de dados:

    o autor declara que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
  • Financiamento:

    o autor declara que o trabalho não foi subvencionado.
  • Apresentação do estudo em evento científico:

    o autor informa que o trabalho não foi apresentado em evento científico.

Editado por

Editor-Chefe

José Marçal Jackson Filho

Disponibilidade de dados

o autor declara que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2022
  • Revisado
    15 Out 2022
  • Aceito
    27 Out 2022
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