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Acidentes ampliados - mais do que um conceito, uma história de luta que precisa ser atualizada

Resumo

Os eventos definidos como acidentes ampliados surgem com o próprio processo de industrialização, assim como junto ao desenvolvimento de novas tecnologias de produção, tornando-se mais complexos neste início de século XXI. O objetivo deste ensaio foi apresentar e contextualizar a formulação de um conceito que buscou integrar os temas relacionados à segurança e saúde dos trabalhadores com os de saúde ambiental, bem como as lutas que envolviam os trabalhadores e o processo de democratização no país, em um cenário de divisão internacional do trabalho, riscos e benefícios. Considerando os acidentes e desastres ocorridos nos anos 1980 do século XX e, também, os recentes, envolvendo barragens de mineração, derrames de petróleo e uma usina nuclear de Fukushima, são apontados cenários mais complexos e novos desafios para enfrentamento desta questão no século XXI. Para além das disfunções dos sistemas tecnológicos e organizacionais encontradas, a intensificação das vulnerabilidades institucionais, somada às vulnerabilidades produzidas pelas desigualdades sociais, potencializam ocorrências e agravam os efeitos dos acidentes, ampliados para além de suas fronteiras espaciais e temporais, afetando sobretudo países do Sul Global. Conclui-se que os eventos recentes constituem expressões sistêmicas, indo além das disfunções organizacionais e revelando camadas mais profundas de sistemas organizacionais e sociotécnicos, como as que forjam a economia global e suas profundas assimetrias.

Palavras-chave:
desastres tecnológicos; acidentes industriais ampliados; acidentes de trabalho; acidentes ambientais, saúde do trabalhador

Abstract

Events defined as major accidents emerged with the very industrialization process and alongside the development of new production technologies, becoming more complex in the early 21st century. This essay aimed to describe and contextualize the formulation of a concept that has sought to integrate topics related to workers’ safety and health with those of environmental health, workers’ struggles, and the democratization process in Brazil in a scenario of international division of labor, risks, and benefits. Considering the accidents and disasters in the 1980s and the more recent ones involving mine tailings dams, oil spills, and the Fukushima nuclear power plant, the authors identify more complex scenarios and new challenges for tackling this issue in the 21st century. Beyond dysfunctions in technological and organizational systems, the intensification of institutional vulnerabilities, added to the vulnerabilities produced by social inequalities, fuel the occurrence of major accidents and aggravate their effects, which, by being amplified beyond their spatial and temporal boundaries, especially affect countries in the Global South. We conclude that the recent events represent systemic expressions beyond organizational dysfunctions, revealing deeper layers of organizational and sociotechnical systems such as those forging the global economy and its profound asymmetries.

Keywords:
technological disasters; major accidents; accidents, occupational; environmental accidents, occupational health

Introdução

Os desastres de origem tecnológica são definidos internacionalmente como acidentes maiores e, no Brasil, como acidentes industriais ampliados. Eles surgem com o próprio processo de industrialização e desenvolvimento de novas tecnologias de produção, que ocorreram nas sociedades contemporâneas a partir da Revolução Industrial11. Freitas CM. Acidentes Químicos Ampliados: incorporando a dimensão social nas análises de riscos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 1996..

Em um primeiro momento, esses eventos envolveram principalmente a extração e produção de energia, como os acidentes em minas de carvão e máquinas a vapor no século XIX, resultando em dezenas ou centenas de óbitos em um único evento. Uma característica destes acidentes foi que a extensão e gravidade de riscos e impactos ficaram, normalmente, restritas ao seu espaço e tempo, tendo os trabalhadores como principais vítimas diretas11. Freitas CM. Acidentes Químicos Ampliados: incorporando a dimensão social nas análises de riscos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 1996..

No século XX, com os avanços no desenvolvimento de tecnologias para extração e produção de matérias-primas, energias e produtos diversos, ocorre uma mudança no perfil destes eventos. Além disso, há uma ampliação no nível dos riscos de acidentes, com um aumento de escala na quantidade e liberação de energia dos materiais perigosos, manipulados principalmente na produção, transporte, armazenamento e disposição final de produtos químicos. Isso resulta não só em maior número de óbitos imediatos em alguns eventos, como também riscos à saúde e ao meio ambiente a longo prazo após o acidente, afetando, além dos trabalhadores, as comunidades e populações próximas11. Freitas CM. Acidentes Químicos Ampliados: incorporando a dimensão social nas análises de riscos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 1996..

Até a década de 1970 do século XX, os mais graves acidentes se concentraram em países da Europa e nos EUA. Em 1917, ainda durante a Primeira Guerra Mundial, a explosão em um navio contendo explosivos militares na Escócia resultou em 1.800 óbitos imediatos. Na Alemanha, país que desenvolveu uma forte indústria química, em 1921, ocorreu uma explosão que resultou em 561 óbitos e 1.952 feridos em Ludwigshafen, onde se encontrava a sede da empresa Basf22. Philipp P. 1921: Explosão na fábrica da Basf. Deutsch Welle [Internet]. 21 set 2016 [citado em 20 set 2022]. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/1921-explos%C3%A3o-na-f%C3%A1brica-da-basf/a-320428
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. Nos EUA, em 1947, um incêndio seguido de explosão em um navio francês ancorado em Texas City, responsável pelo transporte de nitrato de amônio - material usado como fertilizante -, resultou na morte de 27 dos 28 bombeiros que atuavam no combate de outros incêndios em navios ancorados, sendo que um destes, um navio americano contendo também nitrato de amônio, explodiu, resultando em mais de 700 óbitos33. Zanini F. Desastre com nitrato de amônio nos EUA em 1947 mudou normas de segurança. Folha de S. Paulo [Internet]. 5 ago 2020 [citado em 20 set 2022]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/08/desastre-com-nitrato-de-amonio-nos-eua-em-1947-mudou-normas-de-seguranca.shtml
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Nos anos 1970 do século XX, no Brasil, foi registrado o primeiro acidente industrial em uma refinaria de petróleo (Refinaria Duque de Caxias, no Rio de Janeiro), com a explosão de uma esfera de GLP, resultando em 38 óbitos, todos de integrantes da equipe de emergência da Petrobras. Na década seguinte, o país registrou, junto a Índia e México, acidentes com maior número de óbitos em um único evento, todos em 198444. Freitas CM, Porto MFS, Machado JMH. Introdução - A questão dos acidentes industriais ampliados. In: Freitas CM, Porto MFS, Machado JMH, organizadores. Acidentes industriais ampliados: desafios e perspectivas para o controle e a prevenção. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. p. 25-45. Este cenário, a partir da segunda metade dos anos 1980, constituiu a base para o desenvolvimento de um conjunto de ações e políticas, combinando-se com o processo de democratização, de fortalecimento do movimento sindical, de constituição do Sistema Único de Saúde e de ampliação do papel das instituições de pesquisa e ensino que vivia o Brasil. Foi também a partir deste contexto que a formulação sobre acidentes industriais ampliados emergiu no país, tema que abordaremos neste artigo.

Desastres Tecnológicos, Acidentes Maiores e Acidentes Industriais Ampliados - mais do que simples conceitos

Os eventos ocorridos na extração, produção, transporte e armazenamento de produtos perigosos, como substâncias químicas e materiais radioativos, vêm ao longo dos anos recebendo diversas conceituações, expressando focos e objetivos distintos, ainda que complementares.

O primeiro conceito, desastres tecnológicos, tem como foco principal a origem do tipo de perigo/ameaça (principalmente processos ou produtos tecnológicos de origem química ou radioativa). Isso resulta em eventos cujas consequências são a grave interrupção do funcionamento da empresa, de uma comunidade ou sociedade, sobrepujando suas capacidades de lidar com a situação usando seus próprios recursos; bem como causando importantes perdas humanas, materiais e/ou econômicas e ambientais55. United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Terminology: Disaster [Internet]. 2020 [citado em 8 jul. 2022]; Disponível em: https://www.undrr.org/terminology/disaster
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O segundo conceito, acidentes maiores, teve como foco principal inicial seus impactos para além dos muros das indústrias, com grande número de óbitos e contaminação da população local. A Diretiva Seveso de 1982, na União Europeia, define estes eventos no seu Artigo 1o, item C como “Um acontecimento tal como uma emissão, um incêndio ou uma explosão de carácter grave, relacionado com um desenvolvimento incontrolado de uma atividade industrial, provocando um perigo imediato ou retardado, grave para o homem, tanto no interior como no exterior do estabelecimento industrial, e/ou para o ambiente, e que envolva uma ou mais substâncias perigosas(66. Directiva 82/501/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1982, relativa aos riscos de acidentes graves de certas actividades industriais (OJ L 230 05.08.1982, p. 228). [citado em 15 jul 2022]. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:31982L0501&qid=1692134233517
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(p. 229). A Convenção 174 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que discorre sobre a Prevenção de Acidentes Industriais Maiores, define o conceito como acidentes graves resultantes de ocorrência repentina - grande quantidade de emissões de produtos químicos, incêndio ou explosão - no curso de uma atividade dentro de instalação de risco, envolvendo uma ou mais substâncias perigosas e levando a um perigo grave, imediato ou tardio, para os trabalhadores, o público ou o meio ambiente77. International Labour Conference. C174 - Prevention of Major Industrial Accidents Convention, 1993 (No. 174) [Internet]. 1993 [citado em 16 jul 2022]. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:C174
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O terceiro conceito, acidentes industriais ampliados, emerge no contexto brasileiro e resulta de um processo de construção no início dos anos 1990, que envolveu organizações sindicais dos trabalhadores das indústrias químicas, petroquímicas e do petróleo, órgãos relacionados à saúde dos trabalhadores nas Secretariais Estaduais de Saúde e Ministério da Saúde, Superintendências Regionais do Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência, instituições de pesquisa e ensino como o Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia (ESNP/Fiocruz) e Fundação Jorge Duprat Figueiredo, de Segurança e Medicina do Trabalho88. Freitas CM, Porto MFS, Freitas NBB. Acidentes Químicos Ampliados: A Visão dos Trabalhadores. São Paulo: Fundacentro; 1998.),(99. Freitas CM, Porto MFS, Gomez CM. Acidentes químicos ampliados: um desafio para a saúde pública. Rev Saúde Pública. 1995;29(6):503-14..

Este conceito tem três características importantes. A primeira é que, assim como os anteriores, tem como foco principal eventos agudos relacionados aos processos produtivos, envolvendo um ou mais produtos perigosos com potencial para causar simultaneamente múltiplos danos - sociais, ambientais e à saúde física e mental dos seres humanos expostos -, com potencial da gravidade e extensão dos efeitos ultrapassarem seus limites espaciais - de bairros, cidades e países - e temporais - como a teratogênese, carcinogênese, mutagênese, danos a órgãos-alvo específicos nos seres humanos e às vegetações e aos seres vivos no meio ambiente futuro -, além dos impactos psicológicos e sociais sobre as populações expostas11. Freitas CM. Acidentes Químicos Ampliados: incorporando a dimensão social nas análises de riscos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 1996.),(99. Freitas CM, Porto MFS, Gomez CM. Acidentes químicos ampliados: um desafio para a saúde pública. Rev Saúde Pública. 1995;29(6):503-14..

Em segundo lugar, ao considerar que os acidentes industriais são primariamente acidentes de trabalho, acaba-se destacando que o termo maior não é adequado, pois transmite a ideia de que estes acidentes são superiores em grandeza, amplitude e intensidade aos acidentes de trabalho cotidianos nos processos produtivos. Se em parte isto é verdade, pois muitos resultam em grande número de óbitos e elevados impactos, por outro lado acaba ofuscando e parcialmente desqualificando os acidentes de trabalho que são mais frequentes e, por vezes, banalizados e considerados como “menores”. Os acidentes industriais ampliados são originários de acidentes de trabalho decorrentes de processos produtivos, de modo que as abordagens para prevenção devem se dar no âmbito do cotidiano dos processos de trabalho, nos locais de produção, armazenamento, disposição final e transporte44. Freitas CM, Porto MFS, Machado JMH. Introdução - A questão dos acidentes industriais ampliados. In: Freitas CM, Porto MFS, Machado JMH, organizadores. Acidentes industriais ampliados: desafios e perspectivas para o controle e a prevenção. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. p. 25-45.

A definição de acidentes industriais ampliados fez parte de uma série de investigações no Brasil, revelando como todos foram precedidos de inúmeros incidentes e acidentes de trabalho em que anormalidades foram consideradas como normalidades ou “normalizadas”, em modos degradados de produção no interior dos sistemas sociotécnicos.

Diversos autores vêm produzindo estudos sobre as causas destes tipos de acidentes em diversos países, como EUA1010. Perrow C. Normal accidents: living with high-risk technologies. Princeton: Princeton University Press; 1984.),(1111. Vaughan D. The challenger launch decision: risky technology, culture, and deviance at NASA. Chicago: University of Chicago Press; 1996., França1212. Llory M. Accidents industriels: le coût du silence. Opérateurs privés de parole et cadres introuvables. Paris: L'Harmattan; 1996.),(1313. Wisner A. A inteligência no trabalho. São Paulo: Fundacentro; 1994.. No Brasil, um conjunto de resultados de pesquisas estão reunidas no livro sobre Acidentes Industriais Ampliados1414. Freitas CM, Porto MFS, Machado JMH, organizadores. Acidentes industriais ampliados: desafios e perspectivas para o controle e a prevenção. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000..

Contudo, é importante salientar que o fato de os efeitos desses acidentes sistematicamente terem ultrapassado os muros das fábricas, atingindo populações e ambientes mais amplos, torna sua análise e prevenção ainda mais complexas do que a dos acidentes de trabalho mais frequentes neste tipo de indústria, que mesmo envolvendo substâncias com potencial de explosão, incêndio e intoxicação ficam restritos ao ambiente fabril.

Em países como o Brasil, os acidentes de trabalho provocavam grande número de vítimas por ano, ultrapassando o total registrado anualmente em eventos considerados como desastres tecnológicos, bem como acidentes industriais maiores em países ricos. Além disso, como apontam Freitas e col. (44. Freitas CM, Porto MFS, Machado JMH. Introdução - A questão dos acidentes industriais ampliados. In: Freitas CM, Porto MFS, Machado JMH, organizadores. Acidentes industriais ampliados: desafios e perspectivas para o controle e a prevenção. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. p. 25-45, levantamentos de vítimas desses tipos de acidentes na Europa e nos EUA mostravam que a maioria dos óbitos afeta principalmente os próprios trabalhadores das instalações industriais, constituindo-se originalmente como acidentes de trabalho. Entretanto, em países periféricos ou periféricos do sistema-mundo, acidentes emblemáticos, como os ocorridos na década de 1980 na cidade do México, em Vila Socó/Cubatão (Brasil) ou em Bhopal (Índia), mataram muito mais populações pobres que viviam próximas das instalações industriais em questão, mostrando a forte correlação entre vulnerabilidade e desigualdades sociais nessas regiões, bem como a falta de políticas públicas adequadas de moradia e planejamento urbano para tais indivíduos.

Por fim, a terceira característica do acidente ampliado, ou industrial ampliado, é apresentar o potencial de se ampliar no espaço (impactando o meio ambiente e atingindo populações a quilômetros de distância do local do evento) e no tempo (impactos ambientais e efeitos sobre a saúde, como sinais, sintomas e doenças que podem se manifestar dias, semanas, meses e anos após o evento). Este conceito emerge nas lutas e ações para integrar as agendas de segurança nos locais de trabalho e saúde dos trabalhadores, proteção ao meio ambiente e direito à saúde das populações e comunidades expostas e afetadas pelos acidentes industriais.

Os acidentes industriais ampliados como expressões da divisão do trabalho, riscos e benefícios

Embora os países ricos concentrem boa parte das capacidades de produção industrial, estudos realizados dentro e fora do Brasil revelaram que os acidentes de maior gravidade se encontram nos países periféricos ou semiperiféricos, de modo que os acidentes industriais ampliados não ocorrem em um vácuo. Tais eventos combinam processos globais, nacionais e locais, em que sistemas sociotécnicos vulneráveis a falhas interagem com populações tornadas vulneráveis por meio de precárias condições de vida e trabalho. Além disto, ocorrem simultaneamente processos de fragilização das estruturas e ações dos órgãos públicos responsáveis pelas ações de controle e prevenção de riscos no âmbito da saúde, trabalho, desastres e meio ambiente, resultando em um padrão inferior de segurança industrial, proteção ambiental e à saúde nos países do Sul Global. O conjunto destes processos contribui para que nestes países estes eventos impactem principalmente as populações que residem e circulam próximas às instalações de risco.

Nesta perspectiva, os acidentes industriais ampliados devem ser compreendidos como parte do próprio processo de divisão internacional do trabalho, que tem conduzido à divisão internacional dos riscos e dos benefícios. Nisso, grande parte dos custos humanos e ambientais se concentrem nos países periféricos/semiperiféricos ou do Sul Global - em especial nas áreas periféricas e com maiores impactos para as populações mais pobres - e os benefícios concentrados em empresas e mercados financeiros nos países ricos. Estas características estão presentes tanto nos acidentes em indústrias químicas1515. Porto MFS, Freitas CM. Major Chemical Accidents in Industrializing Countries: The Socio-Political Amplification of Risk. Risk Analysis. 1996;16(1):19-29. como na atualidade, nos eventos que envolvem barragens de mineração1616. Freitas CM, Silva MA. Acidentes de trabalho que se tornam desastres: os casos dos rompimentos em barragens de mineração no Brasil. Rev Bras Med Trab. 2019;17(1):21-9..

O ano de 1984 foi emblemático para este processo de divisão internacional do trabalho, riscos e benefícios. O acidente em Bhopal, na Índia, envolvendo a Union Carbide, uma indústria química multinacional americana de fabricação de agrotóxicos, resultou em 2.500 óbitos imediatos, assim como o de San Juan Ixhuatepec (indústria petroquímica no México). No Brasil, o acidente na Vila Socó, distrito de Cubatão em São Paulo, ocasionado pelo vazamento de uma tubulação que transportava derivados de petróleo da Petrobras, resultou na morte imediata de 98 pessoas, mas estima-se que mais de 500 morreram em consequência disso1717. Porto MFS. A tragédia da mineração e do desenvolvimento no Brasil: desafios para a saúde coletiva. Cad Saúde Pública. 2016;32(2):e00211015.. Estes acidentes ocorreram em áreas periféricas de grandes centros urbanos, atingindo populações mais vulneráveis que vivem próximas de fontes de riscos industriais, com padrões precários de segurança. Na Índia, onde ocorreu o mais grave acidente industrial ampliado, o consumo de produtos resultantes da tecnologia química era de 1kg per capita, enquanto nos países centrais da economia, como EUA - país sede da Union Carbide, umas das responsáveis pelo acidente de Bhopal -, esse consumo era de 30kg a 40kg per capita1818. Murti CRK. Industrialization and Emerging Environmental Health Issues: Lessons from the Bophal Disaster. Toxicol Ind Health. 1991;7(5-6):153-64..

Estes acidentes não são eventos isolados e revelam um padrão. Até os anos 1970, ocorreram predominantemente nos países mais ricos e que concentram maior número de indústrias químicas. Porém, a partir desse período, quando tem início o procedimento de transferência de processos produtivos mais perigosos e de maior impacto ambiental para os países que ocupavam um papel periférico na economia global, o número de acidentes nestes países cresce em frequência e gravidade. No período entre 1974 e 1987, Porto e Freitas1515. Porto MFS, Freitas CM. Major Chemical Accidents in Industrializing Countries: The Socio-Political Amplification of Risk. Risk Analysis. 1996;16(1):19-29. demonstraram que os acidentes com mais de 50 óbitos ou de 100 lesionados ocorriam principalmente nos países do Sul Global, que concentram 92% do total de óbitos e 96% do total de lesionados, mesmo considerando o sub-registro. Freitas e col. (44. Freitas CM, Porto MFS, Machado JMH. Introdução - A questão dos acidentes industriais ampliados. In: Freitas CM, Porto MFS, Machado JMH, organizadores. Acidentes industriais ampliados: desafios e perspectivas para o controle e a prevenção. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. p. 25-45 demonstram que, na década de 1980, o número de óbitos por acidentes aumentou cerca de sete vezes comparado com as décadas de 1960 e 1970; e que países como Índia, Brasil e México tinham os piores indicadores para estes eventos. Na atualidade, Freitas e Silva1616. Freitas CM, Silva MA. Acidentes de trabalho que se tornam desastres: os casos dos rompimentos em barragens de mineração no Brasil. Rev Bras Med Trab. 2019;17(1):21-9. identificaram que padrão similar vem ocorrendo com os acidentes/desastres em barragens de mineração, com uma tendência dos eventos mais graves se concentrarem nos países do Sul Global e o Brasil ocupando papel de destaque nesse processo.

O contexto dos anos 1980, envolvendo principalmente os acidentes nas indústrias químicas, foi fundamental para os avanços nas discussões, pesquisas, políticas e ações relacionadas ao tema no Brasil nos anos 1990. Tal progresso foi expresso tanto em publicações que envolveram diferentes atores e instituições, bem como trabalhadores, do campo da saúde e do trabalho - como expresso no livro Acidentes Químicos Ampliados: A Visão dos Trabalhadores88. Freitas CM, Porto MFS, Freitas NBB. Acidentes Químicos Ampliados: A Visão dos Trabalhadores. São Paulo: Fundacentro; 1998., publicado em 1998 pela Fundacentro -, quanto nas ações para que o Brasil se tornasse signatário da Convenção 174 da OIT, além de inúmeras outras envolvendo investigações sobre acidentes e ações do Ministério Público do Trabalho.

Porém, as conquistas logradas para a prevenção e controle dos acidentes industriais ampliados nos anos 1990 se deram em um contexto em que os ajustes e adesão ao modelo neoliberal limitaram a sua consolidação nos temas relacionados à segurança e saúde dos trabalhadores, bem como proteção ambiental e saúde das populações expostas e afetadas por estes eventos.

Um cenário mais complexo e novos desafios no século XXI

Já nos anos 1980 do século XX se esboçavam cenários mais complexos para estes tipos de eventos, pois se grande parte envolveu a produção, transporte e armazenamento de produtos químicos, outros - como os acidentes da usina nuclear de Chernobyl em 1986, no norte da Ucrânia, e com materiais radioativos, como o césio-137, em Goiânia, no ano de 1987 -, apontavam para a diversidade de eventos que podem ser classificados como acidentes ampliados.

No acidente de Chernobyl, dos 600 trabalhadores que se encontravam no local, 134 sofreram radiação aguda e 28 vieram a óbito. Cerca de 115 mil pessoas foram expostas à baixas doses e evacuadas na Bielorrússia, Federação Russa e Ucrânia. Além destes, outros 530 mil trabalhadores que atuaram na área do acidente entre 1986 e 1990 foram expostos à diferentes doses de radiação1919. Canadian Nuclear Safety Commission. Health Effects of the Chernobyl Accident [Internet]. 2022 Mar [citado Jul 25 2022]. Disponível em: https://nuclearsafety.gc.ca/eng/resources/health/health-effects-chernobyl-accident.cfm#:~:text=The%20530%2C000%20registered%20recovery%20operation,by%20high%20levels%20of%20radiation.
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No acidente com Césio 137, foram envolvidos inicialmente catadores de materiais recicláveis, porém, logo centenas de outras pessoas foram expostas, resultando em quatro óbitos diretos. Esse acidente, assim como Vila Socó, demonstra como a vulnerabilidade em países como o Brasil afeta principalmente populações mais pobres, sejam moradores de periferias ou, como no caso, trabalhadores informais precarizados envolvidos na coleta de materiais recicláveis. O Ministério da Saúde reconheceu que, além dos informais, outros 429 trabalhadores desenvolveram algum tipo de agravo após a exposição, como os que trabalharam na remoção, além de policiais militares e corpo de bombeiros2020. Senado Notícias. CCJ aprova projeto que amplia indenizações a vítimas do Césio 137 [Internet]. 27 jun 2007 [citado em 26 jul 2022]; Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2007/06/27/ccj-aprova-projeto-que-amplia-indenizacoes -a-vitimas-do-cesio-137
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. Ao final, entre informais e formais, centenas de trabalhadores foram expostos ao acidente que envolveu a negligência em abandonar de um aparelho de radioterapia no local onde funcionou o Instituto Goiano de Radioterapia.

No início do século XXI, além dos acidentes envolvendo materiais nucleares e radioativos, novos e mais complexos cenários de riscos se apresentaram. Em 2011, um tsunami provocado por um terremoto atingiu a usina nuclear de Fukushima, no Japão, ocasionando o derretimento do núcleo de três dos seus seis reatores. Além da exposição dos trabalhadores que atuaram diretamente nas ações emergenciais, estima-se que, entre 2014 e 2016, cerca de 40 mil a 50 mil foram recrutados por ano para trabalhar nas áreas em que materiais radioativos se encontravam dispersos2121. Sawano T, Ozaki O, Tsubokura M. Review of health risks among decontamination workers after the Fukushima Daiichi Nuclear Power Plant Accident. Radioprotection. 2020;55(4):277-82.. Em fins de 2018, especialistas do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, nas áreas de “gestão e disposição de substâncias perigosas, formas contemporâneas de trabalho escravo e direito à saúde física e mental”, apontavam as situações de vulnerabilidade dos trabalhadores, principalmente migrantes, com pouco ou nenhum preparo, que atuavam nas áreas contaminadas por radiação2222. UN News. Global perspective Human stories. UN experts cite 'possible exploitation' of workers hired to clean up toxic Japanese nuclear plant [Internet]. 16 aug 2018 [citado 20 jul 2022]; Disponível em: https://news.un.org/en/story/2018/08/1017232
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Em 2015 e 2019, o Brasil registrou os dois mais graves desastres envolvendo rompimentos de barragens de mineração do século XXI. Em novembro de 2015, o rompimento da Barragem do Córrego do Fundão na mineradora Samarco S.A - uma joint venture entre a anglo-australiana BHP Billiton e a brasileira Vale S.A, localizada em Mariana/MG -, resultou no lançamento de cerca de 50 milhões de m3 de rejeitos, atingindo 36 municípios em 663 km ao longo da Bacia do Rio Doce. Foram registrados 19 óbitos, sendo cinco de moradores (três adultos e duas crianças) da comunidade de Bento Rodrigues, localizada a jusante da barragem, e 14 de trabalhadores, dos quais 13 eram terceirizados, também foram afetadas diretamente centenas de milhares de pessoas, entre as quais estão todos os moradores do município vizinho, de Barra Longa, bem como todo o ecossistema ao longo de toda a bacia do Rio Doce. Populações de 39 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo ainda sofrem prejuízos socioeconômicos advindos deste evento, considerado a maior tragédia socioambiental do Brasil1616. Freitas CM, Silva MA. Acidentes de trabalho que se tornam desastres: os casos dos rompimentos em barragens de mineração no Brasil. Rev Bras Med Trab. 2019;17(1):21-9..

Em janeiro de 2019, o rompimento da Barragem BI da Mina de Córrego do Feijão da mineradora Vale S.A, localizada em Brumadinho/MG, resultou no lançamento de aproximadamente 11,6 milhões de m³, no leito e margens do Rio Paraopeba. Este evento se destaca como o maior acidente de trabalho do Brasil, pois 258 trabalhadores perderam a vida, sendo 127 da Vale S.A., 118 terceirizados, três estagiários e mais 10 que trabalhavam fora da mina. Outros 64 trabalhadores foram lesionados e afastados do trabalho. Os impactos atingiram pelo menos 17 municípios, numa extensão de aproximadamente 308 km ao longo de toda a bacia do rio Paraopeba, impactando direta e indiretamente os modos e condições de vida e trabalho da população que dependia diretamente das águas do rio, além de centenas de comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, silvicultores e pescadores artesanais). Como descrito no Relatório de Análise de Acidente de Trabalho Rompimento da barragem B I da Vale S.A. em Brumadinho/MG em 25/01/20192323. Brasil. Relatório de Análise de Acidente de Trabalho Rompimento da barragem B I da Vale S.A. em Brumadinho/MG em 25/01/2019 [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Economia; 2019 [citado 24 jun 2022]; Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/seguranca-e-saude-no-trabalho/acidentes-de-trabalho-informacoes-1/relatorio_analise_acidentes_brumadinho.pdf
https://www.gov.br/trabalho-e-previdenci...
“Em seu caminho, o rejeito destruiu parte do distrito de Córrego do Feijão (matando seis moradores), uma pousada (matando nove de seus trabalhadores, incluindo os proprietários, e cinco hóspedes), um viaduto de linha férrea e propriedades rurais. A pluma de rejeitos chegou ao Rio Paraopeba e impactou o fornecimento de água para comunidades indígena e quilombola e várias cidades, dentre as quais Brumadinho, Pará de Minas e Belo Horizonte. Também foram atingidas várias propriedades rurais nas margens do Córrego do Feijão e do Rio Paraopeba. As alterações na turbidez e nos níveis de metais na água ainda se fazem presentes e têm sido motivo de preocupação e vigilância constante das autoridades, assim como a saúde da população atingida e dos profissionais de busca e resgate (Corpo de Bombeiros Estaduais, Força Nacional de Segurança). A economia da região foi duramente afetada em função da perda da produção das propriedades rurais e interrupção da pesca. No município de Brumadinho, as atividades de comércio, turismo e pesca foram seriamente afetadas. Os impactos sócio-econômico-ambientais para toda região do vale do Rio Paraopeba ainda estão sendo mensurados. Por sua vez, as atividades de mineração em Minas Gerais foram duramente atingidas com várias minas tendo suas atividades paralisadas com grande impacto em toda a cadeia produtiva.

Ainda em 2019, no mês de agosto, ocorreu um derrame de mais de mil toneladas de petróleo cru, atingindo 11 Estados, 130 municípios e 1009 localidades, numa extensão de aproximadamente 4 mil quilômetros da costa brasileira. Comunidades tradicionais e trabalhadores que vivem da pesca e do turismo foram diretamente expostos e afetados nos seus modos de vida e trabalho, bem como um grande número (de centenas a milhares) de voluntários e trabalhadores de instituições públicas (meio ambiente, defesa civil, entre outros), que atuaram na retirada e limpeza nas praias atingidas, além dos impactos ambientais para fauna e flora marinha2424. Pena PGL, Northcross AL, Lima MAG, Rêgo RCF. Derramamento de óleo bruto na costa brasileira em 2019: emergência em saúde pública em questão. Cad Saúde Pública. 2020;36(2):e00231019..

Estes três desastres ocorridos no Brasil (dois em barragens de mineração e um envolvendo derrame de petróleo cru), junto com o de Fukushima, suscitam um conjunto de questões que consideramos imensos desafios nos temas relacionados aos acidentes industriais ampliados, ou simplesmente acidentes ampliados. Ainda mais para um país tão grande e heterogêneo como o Brasil, que se encontrava nos anos 1980 do século XX como um dos países que apresentava maior taxa de gravidade nos acidentes ampliados nas indústrias químicas, petroquímicas e do petróleo, iniciando o século XXI como o local que mais concentrou acidentes envolvendo barragens de mineração, em extensão da lama de rejeitos e em número de óbitos, além de um dos maiores acidentes envolvendo o derrame de petróleo cru.

Esses novos acidentes chamam a atenção por envolverem a produção de commodities, nas atividades de armazenamento de rejeitos e transporte, e não mais a produção industrial de matérias-primas e produtos, apontando para novos potenciais cenários de risco destes tipos de eventos. Esse aspecto traz à tona a força modelo de desenvolvimento neoextrativista, baseada na produção de commodities, com forte influência de suas empresas nos diferentes poderes do Estado e em diferentes níveis, intensificando as vulnerabilidades institucionais. As agências reguladoras e fiscalizadoras, então, acabam não tendo suficiente estrutura e autonomia para exercerem suas tarefas de criar bases legais e técnico-científicas adequadas e independentes para o licenciamento e a fiscalização das instalações perigosas.

Nos três acidentes mais recentes, além dos diretamente atingidos (sendo este principalmente o caso dos envolvendo barragens de mineração), milhares de outros trabalhadores foram expostos de diferentes maneiras graças aos seus modos de vida, trabalho e sustento, incluindo pequenos agricultores e criadores de animais, pescadores e marisqueiras, além de comunidades tradicionais, entre outros. Isso, por si só, já expõe o desafio de ampliar a noção e o leque do são considerados trabalhadores expostos e atingidos nesses processos, o que também envolve racismo estrutural e ambiental.

Se na noção de acidentes industriais ampliados já eram considerados os trabalhadores diretos e terceirizados das empresas, além de trabalhadores das equipes de emergências (desde equipes das empresas e de resgate e socorro), o desastre com petróleo cru obriga a ampliar este leque, pois milhares de voluntários, sem nenhum preparo, treinamento e informações atuaram na remoção de petróleo das praias e seu posterior armazenamento em condições inadequadas, expondo-se aos riscos. Também no acidente de Fukushima, a ONU chama a atenção para as condições de trabalho de um contingente imenso de trabalhadores precários e vulneráveis - principalmente migrantes contratados como terceirizados por diversas empresas. Deve-se destacar que seus trabalhos estavam sendo desenvolvidos nas etapas de recuperação e reconstrução pós fase aguda do acidente. Em ambos os acidentes ampliados em barragens de mineração, as atividades de recuperação envolveram - e ainda envolvem - milhares de trabalhadores terceirizados, muitas vezes migrantes de outros estados, tornados invisíveis e expostos aos rejeitos da lama e de resíduos de diversos modos, sem que medidas de monitoramento de suas condições de trabalho e exposição venham sendo realizadas e tornadas públicas.

Considerar estes inúmeros trabalhadores, assim como modos de vida e trabalho, significa ampliar ainda mais o leque de expostos e atingidos pelos acidentes. Se nas formulações iniciais o foco estava principalmente nos trabalhadores diretos e terceirizados, envolvidos nos processos produtivos, bem como nas comunidades para além dos muros das fábricas, temos nestes conjuntos de acidentes ampliados do século XXI um contingente enorme de trabalhadores para além das fronteiras das empresas (seja uma mineradora, uma usina nuclear ou um navio de transporte de petróleo). Isso se soma nas etapas de recuperação e descontaminação, abrangendo também os trabalhadores envolvidos nas ações de respostas imediatas.

Considerações finais

Um novo conceito emerge da confluência dos acidentes ampliados, típicos do século XX, com os desastres do século XXI, com expansão e diversificação que abrangem desde os processos envolvidos na produção destes eventos até o lócus dos impactos. Ao lado das mudanças na economia global e aumento das demandas por produtos e commodities diversas, altamente conectadas em um sistema mundial profundamente desigual e assimétrico, ocorrem transformações na escala, espacialidade, populações e trabalhadores atingidos. Há divergências também na temporalidade, que se torna cíclica/permanente, trazendo consigo características múltiplas dos impactos que se prolongam e se transformam ao longo do tempo.

Nos anos 1980 e 1990 do século XX, os acidentes industriais eram tratados como a ponta de um iceberg, sendo, na concepção de Llory e Montmayeul2525. Llory M, Montmayeul R. O acidente e a organização. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2014., “[...] reveladores poderosos das disfunções organizacionais, motores poderosos de reflexão dado que eles questionam nossa capacidade de análise e de diagnóstico. Os acidentes são (...) ‘semeadores de inquietações’ porque eles desestabilizam nossas representações sobre a segurança e a prevenção [...]” ao mesmo tempo que “.[...] revelam os efeitos da cegueira que a organização gera insidiosamente ou deliberadamente [...]” (p. XXXI e p. 63).

No século XXI, o padrão de acidentabilidade entra em um processo contínuo, organizado por um ciclo de deterioração social e ambiental, que é provocado pelo modo de uso dos recursos naturais e suas transformações em fluxo contínuo, com a produção de ameaças e rupturas permanentes nos modos de organização social nas cidades, nos campos e nas florestas. Para além das disfunções dos sistemas tecnológicos e organizacionais mencionadas, a intensificação das vulnerabilidades institucionais (trabalho, segurança, saúde e meio ambiente), somada àquelas produzidas pelas desigualdades sociais, potencializam ocorrências e agravam os efeitos dos acidentes ampliados para muito além de suas fronteiras espaciais e temporais, sendo este quadro mais crítico nos países do Sul Global, como no caso do Brasil. Os eventos constituem expressões sistêmicas, indo muito além das disfunções organizacionais, assim como revelando camadas mais profundas de sistemas organizacionais e sociotécnicos - como as que forjam a economia global e suas profundas assimetrias.

Cabe, ainda, apontar para a necessidade de explorar com mais profundidade quais imperativos econômicos, financeiros ou de gestão de desempenho entrariam em jogo para influenciar as decisões técnicas ou a manutenção de sistemas complexos, bem como as razões da não valorização de sinais precursores, identificados como as causas básicas destes desastres. Neste sentido, alguns autores apresentam a hipótese de que o sistema de bonificação anual das empresas (seja em forma de pagamento direto ou por meio de ações) encorajaria os gestores a cortar custos, aumentar a produção e, assim, ter acréscimo em seus bônus anuais, o que seria um fator chave para o aumento de acidentes2626. Armstrong M, Petter R, Petter C. Why have so many tailings dams failed in recent years? Resources Policy. 2019;63:101412..

Os novos cenários deste início de século XXI reforçam que apenas os paradigmas técnicos e de engenharia - que determinam a segurança dos sistemas sociotécnicos complexos - são insuficientes, assim como os de dose-resposta e causalidade, tradicionalmente adotados pela toxicologia e epidemiologia para acidentes/desastres envolvendo contaminantes ambientais. Os sistemas sociotécnicos vão muito além das empresas, pois envolvem uma rede de atores e instituições em contextos de vulnerabilidades sociais e institucionais, assim como relações extremamente assimétricas entre os que sofrem os impactos nos territórios em que vivem e trabalham, bem como as grandes empresas que atuam no mercado global. Os impactos e efeitos sobre a saúde vão muito além dos restritos à dose-resposta nos organismos e órgãos alvo, afetando as condições de vida e trabalho, além de combinando doenças crônicas, doenças transmissíveis e saúde mental mediadas pelos processos socioeconômicos envolvidos, como bem expresso no conceito de sindemia para a Covid-192727. Singer M, Clair S. Syndemics and public health: reconceptualizing disease in bio-social context. Med Anthropol Q. 2003;17(4):423-41..

As mudanças de paradigmas, incluindo das abordagens tradicionalmente envolvidas na investigação das causas e consequências destes eventos, devem estar em sintonia e representar atualizações dos conceitos relacionados aos acidentes ampliados e desastres, ao lado das lutas dos trabalhadores e populações atingidas e expostas aos riscos. Mobilizações e lutas que apontem para uma mudança radical do modelo de desenvolvimento e de exploração capitalista que compõem a economia global, principalmente nas últimas décadas de neoliberalismo e neoextrativismo, vem ampliando os processos macroestruturais de vulnerabilidades (social e institucional) e degradação ambiental. Além disso, potencializam a ampliação, sobreposição e intensidade destes eventos, bem como de seus impactos sobre as condições de vida, trabalho e saúde de dezenas ou mesmo centenas de milhares de trabalhadores e pessoas expostas e afetadas.

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  • Disponibilidade de Dados:

    os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
  • Financiamento:

    os autores declaram que o trabalho não foi subvencionado.
  • Apresentação do estudo em evento científico:

    os autores informam que o trabalho não foi apresentado em evento científico.

Editado por

Editor-Chefe

José Marçal Jackson Filho

Disponibilidade de dados

os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2022
  • Revisado
    21 Dez 2022
  • Aceito
    01 Fev 2023
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