Acessibilidade / Reportar erro

Lúpus eritematoso cutâneo crônico: estudo de 290 pacientes

Resumos

FUNDAMENTO: Lúpus eritematoso cutâneo crônico é uma doença inflamatória crônica relativamente freqüente, mas pouco estudada entre nós. OBJETIVO: Caracterizar epidemiologia e clínica de pacientes com lúpus eritematoso cutâneo crônico, visando comparar dados obtidos com literatura mundial. PACIENTES E MÉTODOS: Foram estudados retrospectivamente 290 pacientes com lúpus eritematoso cutâneo crônico no período de 1982 a 1996, na Clínica de Dermatologia da Santa Casa de São Paulo. RESULTADOS: A média de idade da instalação da doença foi de 32,3 anos, houve predomínio do sexo feminino em relação ao masculino (3,4:1), a maior parte dos pacientes teve lesões localizadas no segmento cefálico (58,3%). Quanto às variedades clínicas, houve predomínio da placa discóide típica em 90,4% dos casos, seguida das variantes verrucosa ou hipertrófica (7,9%), lúpus eritematso pérnio (1,4%), e túmida (0,3%). Lesões em mucosas ou epitélios de transição ocorreram em 27,2% dos pacientes. CONCLUSÕES: Lúpus eritematoso cutâneo crônico é doença mais comum em mulher adulta, sendo a placa discóide típica a lesão mais comum. Lesões mucosas ocorreram em aproximadamente em um quarto dos casos.

lúpus; lúpus eritematoso cutâneo; lúpus eritematoso discóide


BACKGROUND: Chronic cutaneous lupus erythematosus is a chronic inflammatory disease, which albeit relatively frequent, has been the object of few studies. OBJECTIVE: To characterize the epidemiological and clinical aspects of patients with chronic cutaneous lupus erythematosus, with a view to comparing the data obtained with the world literature. PATIENTS AND METHODS: A retrospective study was done on 290 patients with chronic cutaneous lupus erythematosus from 1982 to 1996, attended at the Dermatology Clinic of Hospital Santa Casa de Sao Paulo. RESULTS: The mean age at onset of the disease was 32.3 years, there was a female prevalence in relation to males (3.4:1), most of the patients had lesions located in the cephalic segment (58.3%). Regarding the clinical types, there was a prevalence of the typical discoid plaque in 90.4% of cases, followed by the verrucous or hypertrophic forms (7.9%), erythematous lupus pernio (1.4%) and tumid (0.3%). Lesions in the mucous membranes or transition epithelia occurred in 27.2% of the patients. CONCLUSIONS: Chronic cutaneous lupus erythematosus is a disease more frequent in adult women and the most common lesion is the typical discoid plaque. Mucous lesions occurred in approximately one fourth of the cases.

lupus; lupus erythematosus; cutaneous; lupus erythematosus; discoid


INVESTIGAÇÃO CLÍNICA, LABORATORIAL E TERAPÊUTICA

Lúpus eritematoso cutâneo crônico: estudo de 290 pacientes* * Trabalho realizado na Clinica de Dermatologia do Hospital da Sta Casa de Misericórdia de SP.

Thaís Helena Proença de FreitasI; Nelson Guimarães ProençaII

IProfessora-assistente da disciplina de dermatologia do Departamento de Clínica Médica da Santa Casa de São Paulo

IIProfessor pleno de dermatologia e ex-titular da Clínica de Dermatologia da Santa Casa de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Thaís Helena Proença de Freitas Rua Morás 782 - apto. 62 São Paulo SP 05434-020 Tel/Fax: (11) 223-0501 E-mail: thais_proenca@hotmail.com

RESUMO

FUNDAMENTO: Lúpus eritematoso cutâneo crônico é uma doença inflamatória crônica relativamente freqüente, mas pouco estudada entre nós.

OBJETIVO: Caracterizar epidemiologia e clínica de pacientes com lúpus eritematoso cutâneo crônico, visando comparar dados obtidos com literatura mundial.

PACIENTES E MÉTODOS: Foram estudados retrospectivamente 290 pacientes com lúpus eritematoso cutâneo crônico no período de 1982 a 1996, na Clínica de Dermatologia da Santa Casa de São Paulo.

RESULTADOS: A média de idade da instalação da doença foi de 32,3 anos, houve predomínio do sexo feminino em relação ao masculino (3,4:1), a maior parte dos pacientes teve lesões localizadas no segmento cefálico (58,3%). Quanto às variedades clínicas, houve predomínio da placa discóide típica em 90,4% dos casos, seguida das variantes verrucosa ou hipertrófica (7,9%), lúpus eritematso pérnio (1,4%), e túmida (0,3%). Lesões em mucosas ou epitélios de transição ocorreram em 27,2% dos pacientes.

CONCLUSÕES: Lúpus eritematoso cutâneo crônico é doença mais comum em mulher adulta, sendo a placa discóide típica a lesão mais comum. Lesões mucosas ocorreram em aproximadamente em um quarto dos casos.

Palavras-chave: lúpus; lúpus eritematoso cutâneo; lúpus eritematoso discóide.

INTRODUÇÃO

Lúpus eritematoso cutâneo crônico (LECC), também chamado de lúpus eritematoso discóide, é uma doença inflamatória da pele que atinge sobretudo adultos, acometendo preferencialmente as áreas expostas à luz solar. É caracterizada por áreas de vários tamanhos, eritematosas, descamativas, bem definidas, que tendem a evoluir deixando cicatriz atrófica e alterações pigmentares.1

O diagnóstico é confirmado pela histopatologia, que é característica. O encontro freqüente de imunoglobulinas na pele e, menos comumente, de alterações sorológicas evidenciando auto-anticorpos sugere etiologia auto-imune. Um dos fatores desencadeantes mais importantes das lesões cutâneas é a radiação ultravioleta.2

Atualmente, a maioria dos estudiosos3,4 considera o LECC parte de um espectro da doença lúpus eritematoso (LE). Segundo esses autores, a expressão clínica do LE varia desde uma forma benigna, estritamente cutânea, o LECC, até uma forma sistêmica de pior prognóstico, com comprometimento principalmente renal e neurológico, conhecida como lúpus eritematoso sistêmico (LES). Existe uma forma intermediária, que acomete a pele e em 50% das vezes também apresenta comprometimento sistêmico, chamada de lúpus eritematoso cutâneo subagudo (LECS). Alguns casos diagnosticados inicialmente como LECC podem evoluir para LES. Além do prognóstico, a abordagem terapêutica difere conforme a forma clínica do espectro LE.

A epidemiologia do LECC mostra que, com maior freqüência, a idade de instalação da doença varia entre 20 e 40 anos.5 É doença rara na infância ou em indivíduos com mais de 70 anos de idade. Existe predominância de acometimento no sexo feminino, em proporção ao redor de 2:1, conforme a maioria dos estudos internacionais.5 Manifesta-se em qualquer raça. A literatura mostra que existem casos familiares de LE, o que se verifica em 4% dos pacientes.6

A lesão clínica cutânea mais comum do LECC é a placa discóide, classicamente descrita como mácula ou placa eritematosa, com bordas bem definidas e superfície com descamação lamelar aderente, mostrando em seu reverso espículas queratósicas correspondentes à hiperqueratose folicular, chamadas de tachas de tapeceiro. Essas lesões evoluem centrifugamente, assumindo forma de disco, muitas vezes com alterações discrômicas, presença de telangiectasias e deixando cicatriz atrófica central e, no couro cabeludo, alopecia cicatricial. Outras apresentações clínicas menos freqüentes e de diagnóstico mais difícil também são descritas, como a verrucosa ou hipertrófica, a túmida, o lúpus eritematoso pérnio, entre outras muito raras.1 Em geral as lesões são assintomáticas; é comum, entretanto, que alguns pacientes relatem ardor e piora das lesões com a exposição solar. Pode haver o acometimento de mucosas, mas na literatura é excepcional o encontro de trabalhos especificamente a ele relacionados.

É infreqüente o achado de manifestações sistêmicas em pacientes com LECC, porém alguns deles se queixam de artralgias ou apresentam fenômeno de Raynaud.

Os exames sorológicos, como a pesquisa de auto-anticorpos circulantes, que são tão valorizados no diagnóstico do LES, não são importantes para o diagnóstico do LECC, só sendo utilizados para o diagnóstico diferencial com as formas sistêmicas e para detectar possíveis evoluções de LECC para LES.

A importância do LECC no Brasil está no fato de que, apesar de não ser doença comum (uma a cada 361 consultas novas),7 sua cronicidade leva ao acúmulo de casos nos ambulatórios clínicos. Além disso, embora haja boa evolução na maioria dos casos, a demora no início do tratamento pode levar a cicatrizes desfigurantes, afetando muito a integração social do paciente.

O presente trabalho tem como objetivo apresentar o estudo de 290 pacientes com LECC matriculados no ambulatório de dermatologia da Santa Casa de São Paulo no período de 1982 a 1996 e fazer uma análise descritiva quanto a seus aspectos epidemiológicos e clínicos.

Ao reverem a literatura nacional e internacional sobre epidemiologia e clínica do LECC nos últimos 30 anos, os autores só encontraram trabalhos com casuísticas menores do que a deste estudo.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

O trabalho foi realizado na Clínica de Dermatologia da Santa Casa de São Paulo, onde um protocolo destinado ao estudo do LECC foi introduzido em 1982. No período entre 1982 e 1996, todos os pacientes com manifestações cutâneas de LE matriculados naquele ambulatório foram incluídos nesse protocolo. Excluindo os casos em que se firmou diagnóstico imediato de LES e LECS, restaram 298 pacientes em que o diagnóstico inicial foi de LECC. O primeiro critério de inclusão foi a presença da placa discóide típica. Desse grupo, oito pacientes foram excluídos posteriormente, por terem evoluído para LES, restando, portanto, 290 casos para o estudo. Esse protocolo abrangeu os dados epidemiológicos, clínicos, histopatológicos, imunopatológicos e laboratoriais, além de permitir acompanhar o tratamento e evolução dos doentes atendidos. Neste trabalho são apresentados apenas os dados relacionados à epidemiologia (sexo, idade, cor, ocorrência familiar) e à clínica do LECC (variedades clínicas, distribuição topográfica das lesões, acometimento das mucosas, sintomas locais e gerais).

Os testes estatísticos utilizados para avaliação dos resultados foram: teste do qui-quadrado, teste de comparação de duas médias não pareadas (T de Student), e teste de Mann-Whitney.

RESULTADOS

Duzentos e noventa casos foram diagnosticados como LECC e assim permaneceram durante toda a observação.

A idade do início da doença variou de três a 73 anos, sendo a média 32,3 anos (Tabela 1). A média da idade em que as primeiras lesões se iniciaram foi menor no sexo feminino do que no masculino, 31,8 anos e 33,9 anos, respectivamente.

A distribuição por sexo mostrou que 255 pacientes eram do feminino (77,6%), e 65, do masculino (22,4%), estabelecendo, portanto, a relação de 3,4: 1.

Quanto à cor da pele, foram encontrados 164 pacientes brancos, 92 negros, 33 pardos e um amarelo. Não houve diferenças significantes quando cruzadas as variáveis cor e sexo.

A ocorrência de casos familiares de LE foi relatada por 13 (4,4%) dos 290 pacientes. Os autores examinaram apenas três desses familiares, neles comprovando o LE e acompanhando-os na clínica de dermatologia. Quatro pacientes informaram ter mais de um familiar acometido, enquanto os nove restantes só relataram um caso familiar. Ao todo esses 13 pacientes referiram 17 familiares, seis com provável LECC, três com LES e oito com simples referência a LE.

Quanto ao questionário aplicado aos pacientes sobre sintomas clínicos locais (prurido e piora com exposição ao sol), 179 pacientes (58,7%) responderam afirmativamente para um ou mais sintomas: 45,7% relataram prurido, e 37,2% referiram piora com o sol, não havendo diferença significante entre os sexos.

Quanto à presença de artralgia, de fenômeno de Raynaud e febre, 77 pacientes (26,6%) queixaram-se de um ou mais sintomas. A artralgia foi relatada por 23,6% deles, o fenômeno de Raynaud por 2,8%, e febre também por 2,8%. A artralgia apresentou diferença significante entre os sexos, sendo mais freqüentemente relatada por mulheres (p< 0,05).

Com relação à distribuição topográfica das lesões, observou-se predomínio das localizadas na face/fronte, em 261 pacientes (90%). Outras localizações freqüentes foram: tronco (32,4%), couro cabeludo (31,7%), orelhas (27,5%), membros superiores (26,8%); em freqüências menores, região retroauricular (8,6%), mãos (6,5%), pescoço (3,4%), membros inferiores (2,7%), pés (0,3%) e regiões palmoplantares (0,9%). Lesões disseminadas na pele, com comprometimento acima e abaixo do segmento cefálico acometeram 41,7% do total de pacientes.

Lesões mucosas e/ou de epitélios de transição (lábio, borda palpebral e columela nasal) foram verificadas em 79 pacientes (27,2%), sendo que 20 (6,9%) tiveram mais de uma localização acometida. Ressalta-se que a mucosa anogenital não foi examinada. O lábio inferior (vermelhão) foi o local mais atingido - 56 (19,3%) dos pacientes apresentaram lesões nessa localização de maneira isolada ou associada com outras lesões mucosas ou epitélios de transição (Tabela 2).

A tabela 3 mostra as variedades clínicas diagnosticadas conforme o sexo. Note-se que todos os pacientes tinham pelo menos uma placa discóide e, por vezes, placas de alguma outra variedade; nesses casos, foi indicada a variedade. Houve predominância estatisticamente significante da variedade verrucosa em pacientes do sexo masculino.

DISCUSSÃO

Os autores consideram apropriado analisar os dois tópicos apresentados na introdução (epidemiologia e clínica) comparando os resultados encontrados com os dados coletados na literatura médica.

Nos trabalhos referentes ao estudo de epidemiologia do LECC, na literatura dos últimos 35 anos, verificaram que alguns autores não excluíram de suas casuísticas pacientes com placas discóides presentes no LES ou incluíram casos de LECS ou lúpus profundo. Essa ressalva deve-se ao fato de essas inclusões modificarem as características epidemiológicas do grupo estudado. Além disso, o número de pacientes estudados em oito trabalhos epidemiológicos (um nacional e sete estrangeiros), à exceção do realizado por Burch e Rowell,8 que estudaram 234 casos, foi bem menor do que o deste estudo (290 casos) (Tabela 4).

A idade de início da doença variou entre 20 e 59 anos (Tabela 1) em 86,6% dos pacientes, o que está de acordo com os dados da literatura, que indicam 87,5%8 e 89,0%.5 A maior concentração dos casos deu-se entre 20 e 39 anos, com 63,8% do total de pacientes, coincidindo com os dados de Burch e Rowell8 (61,1%) para o mesmo intervalo de idade. Portanto, LECC não é doença freqüente nas idades extremas da vida: abaixo dos 20 anos ocorreu somente em 11% da casuística aqui apresentada e acima de 60 anos, em 2,4%. Em apenas dois casos (0,7%) o início ocorreu antes dos 10 anos de idade, tendo Burch e Rowell8 relatado 2% de seus casos no mesmo período de idade. McMullen et al.12 consideram raro seu aparecimento na infância.

A idade média de início da doença, 32,3 anos, mostrou-se um pouco abaixo da verificada por outros autores: O'Loughlin et al.,13 39 anos, e Le Bozec et al.,14 34,6 anos.

Neste estudo houve predomínio do sexo feminino, com 77,6% dos casos, o que configura a relação de 3,4:1. Nos trabalhos apresentados pela literatura, embora a predominância coincidisse, a relação variou muito, desde 1,6: 114 até 5:1.15

Quanto à distribuição da variável cor, houve predomínio da branca (56,6%), seguida da negra (31,7%) e da parda (11,4%) (Tabela 3). A soma das duas últimas alcança o total de 43,1%, resultados esses que não diferem dos referidos por Prystowsky et al.,5 que encontraram 55% de pacientes brancos contra 45% de negros.

Respondendo à indagação sobre familiares acometidos por LE, 13 pacientes (4,4%) o fizeram afirmativamente. Suas informações permitiram inferir o total de 17 familiares afetados, sendo seis com LECC, três com LES, e em oito só houve referência a LE. Infelizmente não foi possível confirmar esses diagnósticos mediante exame clínico de todos esses familiares, pois apenas três deles foram trazidos ao ambulatório. Nesses foram confirmados um caso de LES e dois de LECC. Como já indicado, na revisão bibliográfica desenvolvida pelos autores, os trabalhos referentes à ocorrência familiar de LE em doentes com LES6,16 mostram freqüências elevadas, variando entre 12% e 18%. Quanto ao LECC, Findlay e Lups,17 Prystowsky et al.5 e Le Bozec et al.14 fazem referências a casos familiares de LE em percentuais de 1%, 4%, e 1,5%, respectivamente. A ocorrência de diferentes formas de LE na mesma família é mais um indicador de que seja uma doença espectral.

A presença da placa discóide foi condição para inclusão no grupo de estudo. Na maioria das vezes, os pacientes já compareciam à primeira consulta com essas placas bem definidas, incluindo atrofia cicatricial (82,8%), o que permitiu diagnóstico clínico imediato.

Verificou-se a variedade verrucosa em 23 pacientes (7,9%), em geral com múltiplas lesões e placas disseminadas na pele. As placas verrucosas foram encontradas ao lado das lesões discóides típicas, à vezes mais numerosas do que as discóides, às vezes escassas. Nesses casos, a variedade verrucosa foi mais comum no sexo masculino (estatisticamente significante). Fato não valorizado na literatura é a associação quase obrigatória entre o prurido e o aparecimento das placas com características hiperceratósicas, que vão caracterizar o aspecto verrucoso. Ao prurido, o paciente reage de modo compulsivo, coçando-se constantemente. Essa compulsão leva, no entender dos autores, à modificação da superfície das placas, que assume o aspecto verrucoso.

O lúpus eritematoso pérnio, variedade rara de LE, foi descrita em 1988, mas até hoje existem controvérsias sobre sua real existência.18 Na casuística aqui apresentada, foram observados quatro casos, que além das placas discóides, apresentavam, no inverno, lesões do tipo eritema pérnio nas mãos; embora os autores tivessem suspeitado de lúpus eritematoso pérnio, só em um caso puderam confirmar com histopatologia característica e imunoflurescência direta positiva (IFD).

Também só acompanharam um caso da variedade túmida, corroborando a literatura,18,19 que a considera variedade muito rara. Kuhn et al.19 chamam atenção para o fato de que essa é uma das variedades cutâneas do LE mais fotossensíveis.

A distribuição topográfica das lesões dos doentes aqui referidos, quando da primeira consulta, foi preferencialmente nas áreas expostas: 58,3% tinham lesões localizadas na cabeça e pescoço (LE localizado segundo O'Leary20), enquanto 41,7% apresentavam lesões localizadas também em outras áreas, como tronco e membros (LE disseminado de O'Leary). Interessante destacar que em um único caso (0,3%) as lesões se localizavam exclusivamente fora do segmento cefálico, sobretudo quando se observa que Pristowsky et al.5 informaram que 2% de seus casos não tinham acometimento de cabeça ou pescoço.

A classificação do LECC em localizado e disseminado na pele foi originalmente feita por O'Leary, em 1934, e aceita por autores mais modernos. Em seu trabalho original, O'Leary chamou de localizada a variedade com lesões exclusivamente na cabeça e/ou pescoço, e de disseminada ou generalizada quando, além dessas, existiam lesões no tronco ou membros, independente de seu número. Na casuística aqui apresentada houve 41,7% de casos disseminados, contra 58,3% de casos localizados. Na literatura, são referidos 42% de casos disseminados por Pristowsky et al.5 e 39% por Le Bozec et al.14

A importância da contribuição de O'Leary, não percebida por ele próprio, mas sim por outros autores, decorre da observação de sinais de evolução para LES em pacientes com lesões muito disseminadas na pele.4,21 Entretanto, deve-se ressaltar que muitos dos trabalhos anteriores a 1979, ocasião em que foi firmado o conceito de LESC, incluíram casos dessa forma clínica nas casuísticas de LECC. Isso distorceu os resultados, pois é mais comum o comprometimento sistêmico em LESC. De qualquer modo, a experiência clínica dos autores aponta também para a necessidade de observação mais completa e mais constante dos pacientes com lesões disseminadas na pele, a fim de eventualmente retificar o diagnóstico para LECS, ou seja, a fim de surpreender uma possível evolução para LES.

Merecem comentário mais detalhado as localizações de couro cabeludo e mucosas. O início das lesões de LECC no couro cabeludo foi relatado por 33 pacientes (11,4%); entretanto, na primeira consulta foi possível observar acometimento dessa região em 92 doentes (31,7%), sendo que em 18 pacientes (6,2%) essa foi a única localização encontrada. Pristowsky et al.5 obtiveram freqüência maior, com 60% dos doentes exibindo lesões no couro cabeludo, sendo que em 12% dos casos foi a única localização. Os dados de Wilson et al.,22 por sua vez, foram mais coincidentes com os aqui apresentados: 34% de acometimento de couro cabeludo em 89 casos examinados.

É preciso destacar que os pacientes se queixavam, com freqüência, de prurido intenso nas lesões do couro cabeludo. O ato de coçar, que retarda a resolução dessas lesões, muitas vezes provoca exulcerações e infecção secundária.

Nesta casuística 79/290 pacientes (27,2%) tinham, no exame inicial, comprometimento de epitélio de transição e/ou mucosas (Tabela 5). As localizações múltiplas ocorreram em 20/290 (6,9%). A mucosa oral foi acometida em 22/290 (7,5%), sendo isoladamente em 10/290 (3,4%) e em associação com epitélio de transição em 12/290 (4,1%). Dos epitélios de transição, os lábios foram os mais acometidos - 56/290 pacientes (19,3%), sendo que em 39/290 (13,4%) de maneira isolada e em 17/290 (5,9%) de maneira associada; a seguir, a borda palpebral, em 21/290 (7,2%) e a columela nasal, em 7/290 (2,4 %).

As lesões de mucosa oral, caracterizadas por placas crônicas, assintomáticas, comumente passaram despercebidas pela maioria dos pacientes. Fato a destacar é que as lesões de mucosa oral não guardam relação com a atividade da doença cutânea, persistindo mesmo quando essa já regrediu. O mesmo não pode ser afirmado, porém, no que se refere às lesões palpebrais, que mantêm relação com a atividade cutânea; muitas vezes são sintomáticas, e o paciente refere ardor. As lesões da columela nasal apresentam-se constituídas por placas eritematosas, crostosas, atróficas, e os pacientes também experimentam muitas vezes ardor local.

Na literatura recente é excepcional o encontro de trabalhos especificamente relacionados com o acometimento de mucosas no LECC14,23,24 e que apresentam casuísticas significativas. Para mera comparação, na tabela 5, estão colocados, lado a lado, os resultados deste estudo, os de Burge et al.24 e os de Le Bozec et al.14 Burge et al.24 estudaram 68 pacientes e encontraram lesões mucosas em 16 (24%) e Le Bozec et al.14 estudaram 136 casos e as encontraram em 22 (16,2%). Os resultados coincidem com os encontrados pelos autores em 79 de 290 pacientes estudados (27,2%).

Sintomas diretamente relacionados com as lesões cutâneas não foram incomuns: 45,7 % dos pacientes queixaram-se de prurido ou ardor, principalmente quando expostos ao sol, mas apenas 37,2 % deles relataram piora das mesmas com o sol; muitos tinham mais de um sintoma.

Os sintomas gerais referidos pelos pacientes nem sempre puderam ser comprovados; por exemplo, dores articulares foram referidas por 68 pacientes, principalmente do sexo feminino, mas sem características especiais, e os relatos de fenômeno de Raynaud foram aceitos com reserva, devido ao fato de nem sempre terem sido confirmados ao exame clínico.

CONCLUSÃO

Foram analisados dados epidemiológicos e clínicos de um grupo de 290 pacientes com LECC. A média de idade no início da doença foi de 32,3 anos. Houve predomínio do sexo feminino (3,4: 1). A ocorrência familiar de outros casos de LE foi relatada por 4,4% dos pacientes. Quanto à distribuição topográfica das lesões, 58,3% dos casos foram localizados (cabeça e pescoço), e 41,7%, disseminados ou generalizados na pele (com lesões também abaixo do pescoço). Quanto às variedades clínicas, houve predomínio da placa discóide (90,4% dos casos), seguida da verrucosa (7,9%), do lúpus eritematoso pérnio (1,4%) e da túmida (0,3%). Lesões em mucosas ou epitélios de transição ocorreram em 27,2% dos pacientes na seguinte ordem: vermelhão dos lábios, mucosa oral, borda palpebral, columela nasal.

AGRADECIMENTO

Apoio financeiro: CAPES.

Recebido em 11.03.2003

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 17.09.2003

  • 1. Sontheimer RD. Clinical Manifestations of cutaneous lupus erythematosus. In: Wallace DJ, Hahn BH. Dubois' lupus erythematosus. 4th. ed. Philadelphia: Lea, Feibiger; 1993. p. 285-301.
  • 2. Orteu CH, Sontheimer RD, Dutz JP. The pathophysiology of photosensitivity in lupus erythematosus. Photodermatol Photoimmunol Photomed. 2001;17(3):95-113.
  • 3. Sontheimer R, Provost TT. Lupus erythematosus. In: Wallace DJ, Hahn BH. Cutaneous manifestations of rheumatic diseases. Baltimore: Willians, Wilkins; 1996. p.1-71.
  • 4. Prystowsky SD, Gilliam JN. Discoid lupus erythematosus as part of a larger disease spectrum. Arch Dermatol 1975;111:1448-52.
  • 5. Prystowsky SD, Herndon JH, Gilliam JN. Chronic cutaneous lupus erythematosus (DLE): a clinical and laboratory investigation of 80 patients. Medicine; 1976. 55:183-91.
  • 6. Pistiner M, Wallace DJ, Nessim S, Metzger AL, Klinenberg JR. Lupus erythematosus in the 1980s: A survey of 570 patients. Semin Arthritis Rheum 1991;21:55-64.
  • 7. Proença NG, Frucchi H, Bernardes MF. Aspectos epidemiológicos do lúpus eritematoso discóide em São Paulo-Brasil. An Bras Dermatol 1989;64:159-60.
  • 8. Burch PRJ, Rowell NR. The sex- and age- distribuitions of chronic discoid lupus erythematosus in four countries: possible aetiological and pathogenetic significance. Acta Derm Venerol 1968;48:33-46.
  • 9. Rothfield NF. Cutaneous manifestations of multisystem diseases: erythematosus lupus. In: Fitzpatrick TB, Eisen AZ, Wolff K, Freedberg IM, Austen KF. Dermatology in general medicine. 4th. ed. New York: McGraw-Hill. 1993. 2138-42. v.1.
  • 10. Callen JP. Chronic cutaneous lupus erythematosus: clinical, laboratory, therapeutic, and prognostic examination of 62 patients. Arch Dermatol 1982;118:412-6.
  • 11. Wallace DJ, Pistiner M, Nessim S, Metzger AL, Klinenberg JR. Cutaneous lupus erythematosus systemic lupus erythematosus: clinical and laboratory features. Sem Arthritis Rheum 1992;21:221-6.
  • 12. McMullen EA, Armstrong K, Bingham E, Walsh M, Path F. Childhood Discoid Lupus Erythematosus: a report of 2 cases. Ped Dermatol 1998;15(6):439-442.
  • 13. O'Loughlin S, Schroeter AL, Jordon RE. A study of lupus erythematosus with particular reference to generalized discoid lupus. Br. J. Dermatol., 99:1-11, 1978.
  • 14. Le Bozec P, La Guyadec T, Crickx B, Grossin M, Belaich S. Chronic lupus erythematosus in lupus disease. Retrospective study of 136 patients. Presse Med 1994;23:1598-602.
  • 15. Jacyk WK, Damisah M. Discoid lupus erythematosus in the Nigerians. Br J Dermatol 1979;100:131-5.
  • 16. Buckman KJ, Moore SK, Ebbin AJ, Cox MB, Dubois EL. Familial systemic lupus erythematosus. Arch Intern Med 1978;138:1674-6.
  • 17. Findlay GH, Lups JGH. The incidence and pathogenesis of chronic discoid lupus erythematosus. South African Med J 1967;41:694.
  • 18. Sontheimer RD, Provost TT. Cutaneous manifestations of lupus erythematosus. In: Wallace DJ, Hahn BH. Dubois'lupus erythematosus. 5th ed. Baltimore: Williams, Wilkins. 1997. p.569-623, Cap. 34.
  • 19. Kuhn A, Richter-Hintz D, Oslislo C, Ruzicka T, Megahed M, Lehmann P. Lupus erythematosus tumidus- a neglected susbset of cutaneous Lupus Erythematosus: repor of 40 cases. Arch Dermatol 2000;136 (8):1044-9.
  • 20. O'Leary PA. Disseminated lupus erythematosus. Minnesota Med 1934;17:637-44.
  • 21. Millard LG, Rowell NR. Abnormal laboratory test results and their relationship to prognosis in discoid lupus erythematosus: a long-term follow-up study. Arch Dermatol 1979;115:1055-8.
  • 22. Wilson CL, Burge SM, Dean D, Dawber RPR. Scarring alopecia discoid lupus erythematosus. Br J Dermatol 1992;126:307-14.
  • 23. Proença NG, Bernardes MF, Machado EAR, Müller H. Freqüência do acometimento mucoso em lúpus eritematoso discóide. An Bras Dermatol 1985;60:11-4.
  • 24. Burge SM, Frith PA, Juniper RP, Wojnarowska F. Mucosal involvement in systemic and chronic cutaneous lupus erythematosus. Br J Dermatol 1989;121:727-41.
  • Endereço para correspondência
    Thaís Helena Proença de Freitas
    Rua Morás 782 - apto. 62
    São Paulo SP 05434-020
    Tel/Fax: (11) 223-0501
    E-mail:
  • *
    Trabalho realizado na Clinica de Dermatologia do Hospital da Sta Casa de Misericórdia de SP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Recebido
      11 Mar 2003
    • Aceito
      17 Set 2003
    Sociedade Brasileira de Dermatologia Av. Rio Branco, 39 18. and., 20090-003 Rio de Janeiro RJ, Tel./Fax: +55 21 2253-6747 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revista@sbd.org.br