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Neurite silenciosa na hanseníase multibacilar avaliada através da evolução das incapacidades antes, durante e após a poliquimioterapia

Resumos

FUNDAMENTOS: A neurite silenciosa é definida como deterioração da função nervosa na ausência de dor neural, diferenciando-se da neurite franca, em que ocorre dor no nervo periférico, com ou sem prejuízo da função nervosa. Sua detecção precoce é importante para tentar impedir o estabelecimento de seqüelas decorrentes da hanseníase. OBJETIVOS: Conhecer a freqüência das neurites silenciosas em portadores de formas multibacilares de hanseníase. MÉTODOS: Cento e três pacientes (18,4% BB, 47,6% BL e 34% LL) foram acompanhados durante o período médio de 64,6 meses a partir do momento do diagnóstico, durante e após a poliquimioterapia, por meio da avaliação do grau de incapacidade. RESULTADOS: Foram analisados doentes que tiveram piora do grau de incapacidade no término de tratamento, ou ao fim do seguimento, em relação ao grau manifestado antes do tratamento ou no término do tratamento medicamentoso. Ao todo, pelo menos cinco pacientes (4,9% do total) evoluíram com neurite silenciosa, durante ou após a poliquimioterapia. CONCLUSÃO: Preconiza-se exame neurológico seqüencial cuidadoso dos pacientes multibacilares, de modo a detectar e tratar precocemente a neurite silenciosa.

Avaliação da deficiência; hanseníase; neurite


BACKGROUND: Silent neuritis is defined as deterioration of the neural function without neural pain, in contrast to overt neuritis, characterized by pain in the peripheral nerve that may accompany damage to neural function. Its early detection is important to prevent the development of leprosy disabilities. OBJECTIVES: To evaluate the frequency of silent neuritis in multibacillary leprosy patients. METHODS: One hundred and three patients (18.4% BB, 47.6% BL and 34% LL) were followed-up for an average of 64.6 months from diagnosis, during and after multidrug therapy, in relation to physical impairments and according to a disability grade. RESULTS: Patients that presented a worsening of the disability grade by the end of treatment or at the end of follow-up compared to the baseline grade or to the end of treatment, were studied. Altogether we detected five patients (4.9% of the total) that developed silent neuritis, during or after multidrug therapy. CONCLUSION: We recommend a careful regular neurological examination of multibacillary patients, with a view to prompt detection and treatment of silent neuritis.

disability evaluation; leprosy; neuritis


INVESTIGAÇÃO CLÍNICA, LABORATORIAL E TERAPÊUTICA

Neurite silenciosa na hanseníase multibacilar avaliada através da evolução das incapacidades antes, durante e após a poliquimioterapia* * Estudo desenvolvido na Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ.

Maria Inês Fernandes PimentelI; José Augusto da Costa NeryII; Esther BorgesIII; Rosângela RoloIV; Euzenir Nunes SarnoV

IDoutora em Dermatologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora titular de Dermatologia da Escola de Ciências Médicas do Centro Universitário de Volta Redonda (Uni-FOA), Volta Redonda, RJ

IIDoutor em Doenças Infecciosas e Parasitárias pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, médico do Ambulatório Souza Araújo, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

IIIFisioterapeuta do Ambulatório Souza Araújo, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

IVTerapeuta ocupacional do Ambulatório Souza Araújo, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

VVice-presidente de Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Maria Inês Fernandes Pimentel Rua Dr. Satamini, 210 / 1004 - Bloco A - Tijuca 20270-231 Rio de Janeiro RJ Tel.: (21) 2240-0013 E-mail: minespimentel@bigfoot.com

RESUMO

FUNDAMENTOS: A neurite silenciosa é definida como deterioração da função nervosa na ausência de dor neural, diferenciando-se da neurite franca, em que ocorre dor no nervo periférico, com ou sem prejuízo da função nervosa. Sua detecção precoce é importante para tentar impedir o estabelecimento de seqüelas decorrentes da hanseníase.

OBJETIVOS: Conhecer a freqüência das neurites silenciosas em portadores de formas multibacilares de hanseníase.

MÉTODOS: Cento e três pacientes (18,4% BB, 47,6% BL e 34% LL) foram acompanhados durante o período médio de 64,6 meses a partir do momento do diagnóstico, durante e após a poliquimioterapia, por meio da avaliação do grau de incapacidade.

RESULTADOS: Foram analisados doentes que tiveram piora do grau de incapacidade no término de tratamento, ou ao fim do seguimento, em relação ao grau manifestado antes do tratamento ou no término do tratamento medicamentoso. Ao todo, pelo menos cinco pacientes (4,9% do total) evoluíram com neurite silenciosa, durante ou após a poliquimioterapia.

CONCLUSÃO: Preconiza-se exame neurológico seqüencial cuidadoso dos pacientes multibacilares, de modo a detectar e tratar precocemente a neurite silenciosa.

Palavras-chave: Avaliação da deficiência; hanseníase; neurite.

INTRODUÇÃO

O acometimento neural está presente na hanseníase em qualquer de suas formas clínicas, desde as formas mais iniciais de hanseníase indeterminada, com áreas cutâneas de hipoanestesia térmica, até as formas polares bem definidas da enfermidade, como as lesões anestésicas bem delimitadas da hanseníase tuberculóide, passando pelas formas dimorfas, até as anestesias "em luva" e "em bota", próprias das formas avançadas de hanseníase virchowiana, com múltiplos troncos nervosos acometidos. O comprometimento neural é subjacente a todas as formas de hanseníase.1,2

A patogenia do dano nervoso varia com a forma clínica de hanseníase. Assim, na hanseníase tuberculóide, a lesão nervosa está ligada à hipersensibilidade de tipo retardado contra os antígenos do Mycobacterium leprae presentes nos nervos, com formação de granulomas de células epitelióides e, ocasionalmente, necrose.1,3 Nas formas borderline de hanseníase, há vários graus de hipersensibilidade aos antígenos micobacterianos, com maiores concentrações de bacilos nos nervos;1,3 formam-se focos de granulomas epitelióides ao lado de áreas com células de Schwan relativamente preservadas, embora com bacilos presentes.3 Nas formas virchowianas, ocorre grande quantidade de bacilos em toda a estrutura do nervo, com destruição nervosa lenta e gradual, insidiosa.1

Neurite significa, literalmente, "inflamação dos nervos". A neurite tem, entretanto, um sentido específico, significando a presença de dor, espontânea ou à palpação, num tronco nervoso, acompanhada ou não de comprometimento da função; ou, ainda, o comprometimento isolado da função nervosa, detectado no exame seqüencial do paciente, com ausência de dor.1,3 Pode haver neurite com pouca ou nenhuma lesão do nervo.1

As neurites ocorrem principalmente durante os episódios reacionais. Assim, nas reações de tipo I ou reações reversas, associadas com aumento da resposta imunológica contra antígenos do M. leprae, ocorre aumento do granuloma e edema intraneural, com dor e espessamento no trajeto nervoso. A compressão súbita pode levar ao comprometimento funcional rápido,1,3 ocasionalmente sem dor.1 Nas reações de tipo II ou eritema nodoso hansênico (ENH), os nervos periféricos podem estar dolorosos por períodos prolongados, sem grande comprometimento da função.3 Ocasionalmente, lesões de eritema nodoso são vistas nos nervos, com infiltração neutrofílica e formação de microabscessos, podendo ocorrer extensa destruição neural.1

A neurite silenciosa foi identificada a partir do início da década de 1980, com os estudos de Duncan e Pearson,4 que reconheceram a deterioração da função nervosa sem história de sinais/sintomas objetivos de neurite franca. Posteriormente, foi objeto de preocupação por parte de diversos hansenólogos,5,6,7 já que só pode ser detectada mediante cuidadoso exame neurológico seqüencial.

Aqui serão utilizados os conceitos de neurite franca, para os casos de dor nos troncos nervosos periféricos, acompanhada ou não de espessamento do nervo e/ou de alterações da função nervosa, e de neurite silenciosa, para os casos de alteração da função nervosa sem a ocorrência de dor no tronco nervoso correspondente.

O dano neural é bem reconhecido e temido no grupo de pacientes paucibacilares (tuberculoid tuberculoid, TT; e borderline tuberculoid, BT). Entretanto, verificou-se que com relação ao grupo dos multibacilares existe menor preocupação dos profissionais em geral com a ocorrência da lesão nervosa, exceção feita àqueles portadores de formas dimorfas (borderline borderline, BB), reconhecidamente susceptíveis ao maior dano nervoso pela predisposição conhecida a reações reversas. Os portadores de formas multibacilares de hanseníase (borderline borderline, BB; borderline lepromatous, BL; lepromatous lepromatous, LL) parecem apresentar apreciavelmente mais reações e neurite do que os casos paucibacilares.8,9 Estudos epidemiológicos das incapacidades em hanseníase mostram risco maior para os pacientes multibacilares e aqueles com neurite.10,11

O objetivo do presente estudo foi o de acompanhar uma coorte de pacientes multibacilares visando conhecer a ocorrência de dano neurológico sem dor (neurite silenciosa).

MATERIAL E MÉTODOS

Cento e três pacientes portadores de formas multibacilares de hanseníase (19 BB - 18,4%; 49 BL - 47,6%; e 35 LL - 34%),12 seqüencialmente admitidos para poliquimioterapia (PQT - MB 24 doses) no Ambulatório Souza Araújo da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, entre janeiro de 1990 e dezembro de 1992, foram acompanhados durante e após o tratamento medicamentoso por período médio de 64,6 meses a partir do diagnóstico, que variou entre 28 e 90 meses. Todos assinaram consentimento para participar de pesquisas na referida instituição.

Foram excluídos do estudo os indivíduos submetidos previamente a quaisquer tipos de tratamento medicamentoso para hanseníase; os que abandonaram o tratamento antes de sua conclusão; e aqueles com formas exclusivamente neurais, sem comprometimento cutâneo.

Entre janeiro de 1990 e dezembro de 1992 foram aceitos para tratamento, no referido ambulatório, 168 portadores de formas multibacilares de hanseníase, tendo sido excluídos do estudo, pelos motivos mencionados acima, 65 doentes.

Avaliação das incapacidades físicas

A avaliação das incapacidades físicas foi realizada por fisioterapeutas ou terapeutas ocupacionais experientes em hanseníase, ao início do tratamento; mensalmente, durante a poliquimioterapia, e anualmente, após sua conclusão (ou a intervalos menores quando da vigência de episódios reacionais ou quando julgado necessário pela equipe de saúde).

A avaliação de incapacidades foi feita pelo cálculo do grau de incapacidade, utilizando-se o formulário recomendado pela Coordenação Nacional de Dermatologia Sanitária (CNDS) para essa finalidade.14 Foram avaliados mãos, pés e olhos, segundo acometimento sensitivo (teste dos monofilamentos de Semmes-Weinstein) ou motor (VMT, teste dos músculos voluntários).14 A avaliação de sensibilidade ocular foi feita pela técnica do fio dental.14 O grau de incapacidade para um dado paciente é considerado o grau máximo encontrado no preenchimento do respectivo formulário, variando desde o grau zero (nenhuma incapacidade relacionada à hanseníase), até graus um, dois ou três. O grau de incapacidade foi calculado para cada paciente por ocasião do diagnóstico (grau de incapacidade antes do tratamento, GIAT), no término da poliquimioterapia (grau de incapacidade ao término do tratamento, GITT), e ao fim do período de seguimento (grau de incapacidade final, GIF).

Estados reacionais corresponderam a episódios agudos dentro do curso crônico da hanseníase, sendo basicamente classificados como tipo um (reação reversa, RR) e tipo dois (eritema nodoso hansênico, ENH; eritema polimorfo, EP), acompanhados ou não de neurites.

Os episódios de neurite franca foram cuidadosamente anotados, sendo considerada como tal a presença de dor no tronco nervoso periférico, acompanhada ou não de espessamento neural.

RESULTADOS

Os pacientes que tiveram piora do grau de incapacidade ao término do tratamento (GITT) ou do grau de incapacidade final (GIF), em relação ao grau de incapacidade antes do tratamento (GIAT) totalizaram 12 indivíduos (11,7% do total). Entre eles, 11 (91,7%) tiveram reações durante e/ou após o tratamento, e apenas um não apresentou episódios reacionais; 10 (83,3%) tiveram episódios de neurite franca, durante ou após a poliquimioterapia. Observar no Quadro 1 a evolução do grau de incapacidade desses pacientes e os episódios reacionais por eles apresentados. Dois deles (pacientes 3 e 11) não apresentaram episódios de neurite franca no período de seguimento, embora um apresentasse reação tipo dois durante o tratamento. Esses dois doentes que tiveram deterioração de suas capacidades físicas apesar da ausência de neurite detectável clinicamente (dor neural) apresentaram neurite silenciosa.


Observando as incapacidades físicas presentes no início do tratamento, no término de tratamento e ao fim do período de seguimento, destacam-se os pacientes que tiveram grau de incapacidade antes do tratamento de zero ou um e que evoluíram com grau de incapacidade no término de tratamento igual a dois. São eles:

Paciente nº 2: teve quatro episódios de neurite franca durante o tratamento (nas quinta, décima sexta, vigésima e vigésima segunda doses da poliquimioterapia). Desde o primeiro episódio de neurite (quinta dose), do nervo fibular esquerdo, apresentou pé caído à esquerda, acusando comprometimento funcional pela neurite franca. Na ocasião, atribuiu-se a responsabilidade pela perda da função nervosa ao retardo no diagnóstico da neurite fibular e à demora no início da corticoterapia. No quarto episódio de neurite franca, na vigésima segunda dose (nervos fibulares direito e esquerdo), mostrou pé caído bilateralmente, que persistiu na avaliação de incapacidades ao término de tratamento (GITT=2). Outros quatro episódios de neurite franca foram detectados no período pós-tratamento, nos décimo, décimo quarto, trigésimo e trigésimo sétimo meses após a poliquimioterapia, tendo em três dessas ocasiões desenvolvido neurite franca de um ou ambos os nervos fibulares. Porém, já no décimo quarto mês pós-tratamento, havia recuperado a função dos nervos fibulares, não tendo sido mais detectado pé caído em nenhum dos exames subseqüentes até o quadragésimo oitavo mês pós-tratamento, sua última avaliação.

Paciente nº 4: teve cinco episódios de neurite franca durante a poliquimioterapia, nas décima primeira, décima quarta, vigésima, vigésima segunda e vigésima quarta doses. Desde a décima quarta dose, com neurite franca ulnar direita, teve garra ulnar móvel direita (grau de incapacidade igual a dois). Na vigésima dose, detectou-se ainda pé caído à direita, sem ocorrência de dor (neurite silenciosa do nervo fibular direito). Em todas as ocasiões, foi tratado com corticoterapia intensiva. Houve remissão da garra ulnar móvel à direita, porém persistiu o pé caído à direita no exame do término de tratamento (GITT = 2) e no nono mês pós-tratamento (GIF = 2), quando abandonou o seguimento.

Paciente nº 5: teve 17 episódios de neurite franca, geralmente acompanhando reação tipo dois (eritema nodoso hansênico), sendo sete durante o tratamento e 10 no período até o trigésimo sétimo mês pós-tratamento, tendo persistido durante quase todo o acompanhamento sob corticoterapia. No quinto episódio de neurite franca (neurite ulnar direita e esquerda, neurite fibular direita e esquerda), apresentou garra ulnar móvel à esquerda, pé caído à esquerda e incapacidade de extensão das mãos direita e esquerda (neurite silenciosa de nervos radiais direito e esquerdo), sendo estas três últimas incapacidades persistentes no exame de término de tratamento (GITT = 2). Houve recuperação da capacidade de extensão das mãos logo a seguir (primeiro mês pós-tratamento), porém persistiu o pé caído à esquerda, e repetidos episódios de neurite franca ulnar direita e esquerda resultaram em garra ulnar móvel bilateral (grau de incapacidade = 2), que mostrou certa melhora posteriormente. Na última avaliação de incapacidades, apresentava amiotrofia ulnomediana bilateral (grau de incapacidade final = 2), sem garra.

Paciente nº 11: evoluiu sem detecção de episódios de neurite franca, tendo todavia desenvolvido lagoftalmo bilateral por ocasião do término de tratamento - neurite silenciosa de nervos supra-orbiculares direito e esquerdo (grau de incapacidade ao término de tratamento, GITT = 2). Abandonou seguimento depois do primeiro mês pós-tratamento.

Esses dados podem ser verificados no Quadro 2.


Conforme observado pela análise desses quatro doentes, foram detectados mais dois indivíduos (pacientes 4 e 5) com neurite silenciosa durante a poliquimioterapia.

Analisaram-se, em seguida, aqueles casos que apresentaram piora do grau de incapacidade final (GIF) em relação ao grau de incapacidade ao término de tratamento (GITT), que totalizaram três pessoas. Duas delas tiveram episódios de neurite franca após o tratamento, e uma sofreu reação tipo um no mesmo período, mas com neurite silenciosa, conforme se observa no Quadro 3.


Freqüência de neurite silenciosa

Numa coorte de 103 pacientes multibacilares observados continuamente num período médio de 64,6 meses, pelo menos cinco (4,9%) experimentaram deterioração de suas capacidades físicas (medida pela piora do grau de incapacidade), sem apresentar neurite franca, ou seja, tiveram neurite silenciosa. Os nervos afetados por neurite silenciosa, as incapacidades por ela geradas e as presentes ao término do acompanhamento desses doentes estão relacionados no Quadro 4.


DISCUSSÃO

A neurite franca (acometimento nervoso agudo e doloroso) sempre foi reconhecida pelos hansenólogos como perigosa e capaz de comprometer a função nervosa (sensitiva e/ou motora). Entretanto, em 1976, Naafs et al. já recomendavam a corticoterapia para os pacientes em reação reversa, com ou sem dor neural.15 A neurite silenciosa só foi identificada como tal a partir dos estudos de Duncan & Pearson,4 que observaram a ocorrência de deterioração da função nervosa sem sinais ou sintomas objetivos de neurite franca. Seguiram-se os estudos de Srinivasan et al.,5 preconizando corticoterapia para os casos de neurite silenciosa, com bons resultados, e de Hamilton.6 que advogou a necessidade de acompanhamento seqüencial e repetitivo da sensibilidade e função motora dos pacientes hansenianos, de modo a detectar e tratar precocemente a neurite sem dor, prevenindo o desenvolvimento de incapacidades. Posteriormente, van Brakel & Khawas7 sugerem a expressão "neuropatia silenciosa", discutindo suas diferentes possibilidades patogênicas: lesão das células de Schwann, fibrose do nervo, reação imunológica mediada por células e eritema nodoso hansênico intraneural.7

Quando observados os 12 pacientes que tiveram piora do grau de incapacidade ao término de tratamento ou após o período total de seguimento, em relação ao exame inicial, verificou-se que 11 (91,7%) tiveram episódios reacionais, tendo 10 (83,3%) demonstrado neurite franca. Entre eles, dois pacientes (números 3 e 11 no Quadro 1) mostraram piora de seu grau de incapacidade (ambos iniciaram com GIAT = 0 e ao final do acompanhamento apresentaram GIF = 2), sem que tivesse ocorrido a detecção de neurite franca. Esses dois indivíduos tiveram neurite subclínica, isto é, neurite silenciosa (o de número 3 nos nervos fibular, sural e tibial posteriores direito e esquerdo; o de número 11 nos nervos supra-orbiculares direito e esquerdo). A análise daqueles que tiveram o grau de incapacidade ao término de tratamento piorado até GITT = 2 demonstrou, ainda, outros dois doentes com neurite silenciosa: pacientes número 4, no nervo fibular direito, e número 5, nos nervos radiais direito e esquerdo. Mais um paciente apresentou piora do grau de incapacidade entre o término de tratamento e o final do período total de acompanhamento sem detecção de neurite franca - paciente número 15 no Quadro 3, que teve neurite silenciosa nos nervos tibial posterior, fibular e sural direitos e tibial posterior esquerdo. Na coorte estudada, pelo menos cinco doentes (4,9%) tiveram, portanto, neurite silenciosa durante o acompanhamento. (É possível, entretanto, que alguém mais tenha tido neurite silenciosa com recuperação mais ou menos rápida das incapacidades provocadas - por exemplo, sob corticoterapia para tratamento de episódios reacionais - sem que essas incapacidades momentâneas fossem detectadas nos exames de avaliação do grau de incapacidade, dependendo de sua periodicidade).

Vale a pena, ainda, ressaltar o caso do paciente número 11, que desenvolveu lagoftalmo bilateral, com neurite silenciosa dos nervos supra-orbiculares, o que configura uma situação grave, podendo, entretanto, passar despercebida num exame rotineiro desatento.

A neurite silenciosa recebeu diversas definições: "deficiência da função nervosa e/ou motora sem dor ou sensibilidade do nervo",4 "presença de perda sensitiva ou motora não acompanhada de dor nervosa, da qual o paciente geralmente não se dá conta e, portanto, não se queixa",6 "assintomática"1 ou, ainda, "deficiência sensitiva ou motora sem sinais cutâneos de reação reversa ou eritema nodoso hansênico, sem sensibilidade nervosa evidente e sem queixas espontâneas de dor nervosa (queimação ou pontadas), parestesia ou paralisia".7 Sua freqüência pode variar, portanto, com a definição empregada, tendo sido de 7% dos pacientes recentemente diagnosticados como portadores de hanseníase no estudo de van Brakel e Khawas.7 Existe, entretanto, grande ênfase entre os autores em afirmar a importância de exames periódicos para detecção de neurite silenciosa e emprego de corticoterapia intensiva, que resulta em melhora da função nervosa.1,5,6,16 Infelizmente, no Brasil, não são tratados rotineiramente com corticóide os casos em que são detectadas incapacidades no exame seqüencial dos portadores de hanseníase, sem a ocorrência de neurite franca. Pode-se ter apenas uma pálida noção de quantos doentes evoluem com seqüelas neurológicas devido a essa omissão de tratamento, muitas das quais poderiam ser evitadas pelo tratamento corticoterápico precoce e fisioterapia adequados.

Mais grave ainda é a deficiência do acompanhamento das incapacidades, a ser feito rotineiramente nos comparecimentos mensais dos pacientes para a poliquimioterapia. Médicos e outros profissionais de saúde devem estar atentos ao acometimento dos nervos periféricos em cada consulta, e o treinamento no exame neurológico bem feito, de realização simples, deve ser enfatizado para todos os que acompanharem portadores de hanseníase. Isso se torna ainda mais importante, como questão a ser levantada, num momento em que se discute a possibilidade de realização de poliquimioterapia auto-administrada, PQT acompanhada (PQT-A), em que os pacientes receberiam a medicação para todo o tratamento poliquimioterápico e só compareceriam, a seu término, para receber alta.

CONCLUSÃO

Nunca é demais sublinhar a importância de um acompanhamento rotineiro e seqüencial cuidadoso dos pacientes multibacilares, durante e após o tratamento medicamentoso, pois aproximadamente metade deles desenvolverá neurites, francas ou silenciosas, durante e/ou após a poliquimioterapia.17 As neurites silenciosas só podem ser detectadas pelo exame seqüencial de rotina, na avaliação cuidadosa das incapacidades físicas, o que permitiria o emprego de medidas terapêuticas, como a corticoterapia e o acompanhamento fisioterápico adequados, para tentar reverter o quadro neurítico e minimizar as seqüelas neurológicas, diminuindo o estabelecimento de incapacidades físicas provenientes da hanseníase. q

Recebido em 05.06.2002

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 02.12.2003

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  • Endereço para correspondência
    Maria Inês Fernandes Pimentel
    Rua Dr. Satamini, 210 / 1004 - Bloco A - Tijuca
    20270-231 Rio de Janeiro RJ
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    Estudo desenvolvido na Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jun 2004
    • Data do Fascículo
      Abr 2004

    Histórico

    • Aceito
      02 Dez 2003
    • Recebido
      05 Jun 2002
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