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Uso de Cetoconazol® no tratamento da entomoftoromicose cutâneo-mucosa: relato de caso

Resumos

As entomoftoromicoses constituem entidade clínica pertencente ao grupo das zigomicoses, cujos agentes etiológicos são o Conidiobolus coronatus, Conidiobolos incongruus e o Basidiobolos ranarum. Um caso de entomoftoromicose cutâneo-mucosa é descrito em homem de 51 anos de idade, lavrador, procedente da região amazônica do Estado do Maranhão, Brasil. Teve diagnóstico esclarecido por exame anatomopatológico, um ano após as manifestações clínicas iniciais. Como tratamento utilizou-se um dos derivados imidazólicos (cetoconazol®) 400mg/dia divididos em duas tomadas, por 12 meses), mostrando boa tolerância, com resposta favorável. Na última avaliação, 24 meses após início do tratamento, encontrava-se clinicamente curado.

diagnóstico; evolução clínica; zigomicose


Entomophthoromycosis represents a clinical entity belonging to the group of zygomycoses, whose etiological agents are Conidiobolus coronatus, Conidiobolus incongruus and Basidiobolus ranarum. This paper describes the case of a 51-year-old male laborer with mucocutaneous entomophthoromycosis, who originates from the Amazon region of the State of Maranhão, Brazil. The diagnosis was established by anatomopathological examination one year after the onset of clinical manifestations. Treatment consisted of 400 mg daily (divided into two doses every 12 hours) of an imidazole derivative (ketoconazole®), which was tolerated well by the patient who showed a favorable response. The last assessment carried out 24 months after the beginning of treatment revealed that the patient was clinically cured.

diagnosis; clinical evolution; zygomycosis


CASO CLÍNICO

Uso de Cetoconazol® no tratamento da entomoftoromicose cutâneo-mucosa: relato de caso* * Trabalho realizado no Núcleo de Patologia Tropical e Medicina Social do Departamento de Patologia da Universidade Federal do Maranhão - UFMA.

Jackson M. L. CostaI; Luciola N. BarbosaII; Lucio Cristiano Paiva e PaivaIII; Josélia L. NunesII; Sirlei G. MarquesIV; José Manuel M. RebeloV; Ana Cristina R. SaldanhaVI

IDoutor em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina. Prof. Adjunto do Curso de Medicina da Universidade Federal do Maranhão e pesquisador associado do Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz-FIOCRUZ/Bahia

IIMédica do Núcleo de Patologia Tropical da Universidade Federal do Maranhão - UFMA/MA

IIIMédico do Núcleo de Patologia Tropical da Universidade Federal do Maranhão - UFMA/MA

IVMestre em Saúde e Ambiente, Universidade Federal do Maranhão - UFMA/MA

VDoutor em ciências pela Universidade de São Paulo - USP/SP. Prof. Titular de Biologia da Universidade Federal do Maranhão - UFMA/MA

VIMestre em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, Universidade de Brasília - UnB. Pesquisador do Núcleo de Patologia Tropical da Universidade Federal do Maranhão - UFMA/MA

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Jackson Mauricio Lopes Costa Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz - FIOCRUZ/Bahia Rua Valdemar Falcão No 121 (Bairro Brotas) CEP 41295-001 Salvador Bahia E-mail: jcosta@cpqgm.fiocruz.br

RESUMO

As entomoftoromicoses constituem entidade clínica pertencente ao grupo das zigomicoses, cujos agentes etiológicos são o Conidiobolus coronatus, Conidiobolos incongruus e o Basidiobolos ranarum. Um caso de entomoftoromicose cutâneo-mucosa é descrito em homem de 51 anos de idade, lavrador, procedente da região amazônica do Estado do Maranhão, Brasil. Teve diagnóstico esclarecido por exame anatomopatológico, um ano após as manifestações clínicas iniciais. Como tratamento utilizou-se um dos derivados imidazólicos (cetoconazol®) 400mg/dia divididos em duas tomadas, por 12 meses), mostrando boa tolerância, com resposta favorável. Na última avaliação, 24 meses após início do tratamento, encontrava-se clinicamente curado.

Palavras-chave: diagnóstico; evolução clínica; zigomicose.

INTRODUÇÃO

As entomoftoromicoses pertencem a um grupo de doenças causadas pelos fungos Conidiobolus coronatus, Conidiobolus incongruus e Basidiobolus ranarum.1,2,3 O C. coronatus tem sido isolado de amostras do solo e de detritos vegetais, sendo também capaz de parasitar várias espécies de artrópodes.1 No homem, a lesão primária ocorre na mucosa nasal, provável porta de entrada do fungo sob a forma de infiltração difusa ou pólipos, que impedem a passagem do ar. Propaga-se para os tecidos adjacentes do nariz e da face (zigomicose centrofacial) e algumas vezes para a nasofaringe e os seios nasais.4,5 A pele é pouco comprometida, sendo difícil ocorrer ulceração, embora o edema de características inflamatórias possa estender-se para a fronte, zigomas e lábios, desfigurando o rosto do paciente de forma leve a grave.2,4,5

Já a infecção causada por B. ranarum manifesta-se por comprometimento do tecido subcutâneo, com tumefação localizada na região torácica, estendendo-se ao pescoço e região próxima aos lábios. Pode ocorrer invasão do abdômen e cavidade torácica por extensão da tumoração subcutânea, havendo relatos recentes de casos com manifestações viscerais, comprometendo o trato gastrointestinal com tumorações que apresentam sinais e sintomas de abdômen agudo.2,6

Renoirte et al.,7 no Congo (África), e Bras et al.,4 na Jamaica (América Central), simultaneamente, foram os primeiros a descrever a doença em humanos. Atualmente, a maioria dos casos relatados é proveniente do continente africano, principalmente da Nigéria.1,6 No Brasil, o primeiro caso da doença foi descrito no Estado da Bahia (Região Nordeste);8 posteriormente foram registrados casos em outros estados da mesma região (Maranhão, Piauí, Pernambuco e Sergipe) e mais recentemente no Pará (Norte do Brasil).1,2,5,8-11

Neste estudo apresenta-se um caso de entomoftoromicose cutâneo-mucosa autóctone do Estado do Maranhão, Brasil, tratado com um dos derivados imidazólicos (Cetaconazol®), apresentando boa resposta clínica. Chama-se atenção para as dificuldades encontradas no diagnóstico em função da raridade do problema.

RELATO DE CASO

A. P. S.,51 anos, do sexo masculino, pardo, lavrador, procedente do município de Bela Vista, região amazônia do Estado do Maranhão,-Brasil, onde reside há 17 anos. Em janeiro de 1999, apresentou queixa de obstrução nasal (narina direita) associada a rinorréia, de início incolor, que posteriormente evoluiu para secreção branco-amarelada. Apresentou ainda episódios de cefaléia na região frontal e epistaxes. Um mês após as manifestações iniciais procurou auxilio médico em sua região, onde lhe foi prescrita medicação à base de corticosteróides, obtendo discreta melhora do quadro.

Posteriormente, evoluiu com progressiva dificuldade respiratória, à medida que o processo inflamatório aumentava e se estendia para as regiões malar e labial superior dessa hemiface. Uma espécie de tumoração arredondada firme e dura podia ser percebida à palpação da área afetada. Em conseqüência, houve alterações dos traços fisionômicos do paciente (Figura 1). Em junho do mesmo ano, procurou novo auxílio médico (otorrinolaringologista), o qual solicitou radiografia dos seios da face (sem alterações), submetendo o paciente a um raspado da lesão, objetivando alívio do quadro obstrutivo.


Em outubro, realizou novos exames (tomografia computadorizada de crânio), mostrando obstrução do pertuito nasal (Figura 2). Em fevereiro de 2000, foi submetido no Hospital Aldenora Belo (São Luís, MA) a biópsia da mucosa nasal e da pele do nariz, cujo diagnóstico anatomopatológico sugeriu etiologia micótica. Em março foi colhido material de secreção nasal (cultura - isolando Estafilococos aureus e Proteus sp), sendo então encaminhado a este serviço, onde foi reavaliado, incluindo o material do exame anatomopatológico (confirmando o diagnóstico de entomoftoromicose nasofacial) (Figura 3). Submeteu-se a esquema terapêutico a base de cetoconazol‚ 400mg/dia durante um período de 12 meses.



Evolução do caso - Após uma semana de tratamento, já era possível observar-se regressão do edema, com melhora da obstrução nasal, ausência de rinorréia, epistaxes e cefaléia. Foi orientado então a continuar o tratamento em seu domicílio e retornar para controle ambulatorial a cada dois meses até completar 12 meses. Na segunda avaliação, havia evidente melhora do processo, com respiração normal, associada à regressão do processo obstrutivo. Ao exame do nariz, verificou-se discreto edema com características inflamatórias, com evidente melhora do quadro inicial. Recomendou-se a continuação do medicamento na mesma dose, programando-se o retorno após cada dois meses para novas avaliações do quadro (Figura 4).


No término do esquema terapêutico (12 meses), encontrava-se com lesão totalmente involuída. Na última avaliação, 24 meses após o início da medicação, encontrava-se clinicamente curado.

DISCUSSÃO

As entomoftoromicoses ocorrem esporadicamente nas regiões tropicais e subtropicais dos continentes americano, africano e asiático, sendo relatadas quatro formas de apresentação clínica da doença.

1) Subcutânea - as lesões iniciam-se por pequenos nódulos que evoluem lenta e progressivamente, crescem firmes, elásticos, irregulares, móveis sobre os planos profundos, atingindo proporções gigantescas, sendo recobertos por tegumento íntegro e cor normal, acometendo mais as crianças do sexo masculino.

2) Subcutânea/visceral - a sintomatologia está na dependência da intensidade das lesões e dos órgãos viscerais comprometidos, podendo-se citar: perda de peso, diarréia, anorexia, dispnéia, febre, dificuldade nos movimentos articulares, adenopatia e trombose; de modo geral caracteriza-se por lesões exuberantes.

3) Visceral ou gastrointestinal - tem sintomatologia relacionada à intensidade das lesões e aos órgãos internos comprometidos. Em geral, cursa com perda de peso, vômitos, dor abdominal e torácica, diarréia mucossangüinolenta, tosse sem expectoração e, às vezes, complicações como peritonite e síndrome da veia cava inferior; de modo geral acomete crianças e adultos, indistintamente.

4) Centrofacial - acomete a região nasolabial, iniciando-se com quadro de obstrução nasal, associado a rinite, epistaxes e cefaléia, evoluindo para edema de face. As lesões caracterizam-se por hiperemia, edema, nódulos e pólipos. Os nódulos são firmes, com margens definidas, aderentes aos planos profundos, com mobilidade discreta, raramente exuberante, acometendo mais os indivíduos na fase adulta.5,11,12, 14

Apesar da apresentação clínica do paciente em questão ter sido caracterizada como forma centrofacial e de os achados histopatológicos serem bem sugestivos da doença, o fortalecimento do diagnóstico definitivo só é possível com o isolamento do fungo em meio de cultura apropriado, o que não se conseguiu obter, pois não houve crescimento do fungo em meio ágar Sabouraud em várias tentativas realizadas no laboratório do serviço. Para a condução do caso, levaram-se em consideração os principais diagnósticos diferenciais da doença, tais como escleroma, rinosporidiose, tumores malignos e benignos da cavidade nasal, paracoccidioidomicose e leishmaniose tegumentar americana (forma mucosa contígua), tendo em vista que as duas últimas citadas são consideradas endêmicas na região de procedência do paciente.13

Apesar de o tratamento recomendado para as entomoftoromicoses ser o iodeto de potássio, em geral com boa resposta,14,15 alguns casos têm sido tratados com outras drogas, como anfotericina B, associação de sulfametoxasol+trimetropin, 4,4-diaminodifenilsulfona, itraconazol, itraconazol+fluconazol, com bons resultados.10,11-19

Costa et al.10 utilizaram a 4,4-diaminodifenilsulfona (sulfona®) em dois pacientes portadores da doença, havendo resposta inicial satisfatória, mas, durante o acompanhamento evolutivo dos mesmos, houve recidiva das lesões. Posteriormente tais pacientes utilizaram o Cetaconazol® com excelentes resultados. Tal fato foi levado em consideração quando da decisão do uso do esquema terapêutico para o tratamento do paciente em questão, embora haja também relato de insucesso com esse mesmo esquema, em menor tempo de uso,11 na entomoftoromicose cutâneo-mucosa.

No presente caso, a escassez de dados na literatura em relação à doença pode ser a explicação para a demora da conclusão diagnóstica, haja visto que poucos são os relatos de casos, o que pode não corresponder à realidade da doença no país. Tal fato, propicia o uso de terapêutica empírica, em que a dose e o tempo preciso de tratamento podem variar de acordo com a resposta clínica dos pacientes.

Recebido em 20.11.2000.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 27.02.2004.

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  • Endereço para correspondência
    Jackson Mauricio Lopes Costa
    Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz - FIOCRUZ/Bahia
    Rua Valdemar Falcão No 121 (Bairro Brotas)
    CEP 41295-001 Salvador Bahia
    E-mail:
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    Trabalho realizado no Núcleo de Patologia Tropical e Medicina Social do Departamento de Patologia da Universidade Federal do Maranhão - UFMA.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Maio 2004

    Histórico

    • Aceito
      27 Fev 2004
    • Recebido
      20 Nov 2000
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