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1925 - 2005 Evolução e estado atual da quimioterapia da hanseníase

ANAIS 80 ANOS

1925 - 2005 Evolução e estado atual da quimioterapia da hanseníase1 1 Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (MG).

Marcelo Grossi Araújo

Professor Assistente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Dermatologia - UFMG (MG)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Marcelo Grossi Rua Maranhão, 99/s-504 - Santa Efigênia 30150-330 - Belo Horizonte - MG Fax: (31) 3241-6941 E-mail: mgrossi@medicina.ufmg.br

INTRODUÇÃO

No primeiro número do volume dois dos Annaes Brasileiros de Dermatologia e Syphilographia, J. Ramos e Silva, em artigo intitulado "A chimiotherapia da lepra; seu estado actual", escrevia: "Farta tem sido com effeito nos ultimos annos a messe de descobertas de real valor que fizeram avançar de muito a chimiotherapia da lepra; parece comtudo que se não fechou ainda o cyclo da indagação minuciosa que levará sem duvida ao aperfeiçoamento maximo os meios actualmente conhecidos ou fará surgir outros novos rigorosamente específicos".1

A discussão desse tema permanece tão atual quanto foi na época. A hanseníase continua sendo relevante problema de saúde pública no Brasil, um dos nove países relacionados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como áreas endêmicas importantes no mundo.2 Em 2003 foram diagnosticados 49.206 casos novos (coeficiente de detecção 2,86/10.000hab), e o país tinha 79.908 casos em registro (coeficiente de 4,6/10.000hab).2 A prevalência mostra-se acima da meta proposta pela OMS, inferior a um caso por 10.000 habitantes, e a detecção, em patamar de alta endemicidade, segundo os parâmetros adotados pelo Ministério da Saúde (MS).3

Se por um lado dispõe-se da poliquimioterapia (PQT) como esquema terapêutico oficial, aliado à ampla cobertura de serviços públicos de atenção à saúde, foram diagnosticados 2.696 casos novos com grau 2 de incapacidades físicas, ou seja, com seqüelas instaladas. A PQT recomendada pela OMS em 19814 é considerada eficaz, tendo resolvido o problema da resistência secundária à dapsona, reduzido o tempo de tratamento e aumentado a adesão de pacientes.

É inegável a evolução do tratamento desde o início do século passado. Permanecem, no entanto, a ocorrência das reações hansênicas em percentual significativo de pacientes, a possibilidade de recidivas em casos multibacilares com altos índices baciloscópicos (IB),5 e o estigma minorado, mas não abolido.

A ERA CHALMÚGRICA

A utilização dos óleos chalmúgricos na antiga farmacopéia hindu e chinesa era preconizada para doenças de pele, especialmente para a hanseníase.6 Seu uso na medicina ayurveda, na Índia, remonta há mais de 2.000 anos e é relacionado à lenda que conta a cura da hanseníase do príncipe Rama (de Benares) e da princesa Piya pelos frutos da árvore kalav.7 No Ocidente tornou-se conhecido a partir dos relatos de Mouat em 18546,2 2 Mouat FJ. Notes on native remedies. Indian Ann Med Sci.1854;1:646-652. Apud 6 e começou a ser utilizado em finais do século 19 no tratamento de várias doenças, entre as quais a tuberculose e a hanseníase.6,8 O óleo de chalmugra é obtido de sementes dos frutos de plantas da família Flacourtiácea. Inicialmente acreditava-se que fosse originário de plantas do gênero Gynocarpus, tendo sido mais tarde esclarecido o fato de que originalmente provinha do Hydnocarpus kurzii.1,7 As plantas produtoras desse óleo são encontradas nas florestas tropicais asiáticas, na Índia, Sri Lanka, península Indo-China, Filipinas e Indonésia.6 No Brasil, foi identificada a espécie Carpotroche braziliensis, conhecida por sapucainha.7

Os derivados chalmúgricos vieram como alternativa aos antimoniais, arsenicais e iodo, entre outros.1,7 As plantas produtoras do óleo passaram a ser cultivadas em várias regiões do mundo, o Brasil incluído. A identificação posterior da C. braziliensis fez com que essa se tornasse a principal fornecedora da substância ativa no país.7 O óleo chalmúgrico era obtido pela prensa das sementes e a posterior saponificação, pelo hidróxido de sódio. Entre os ácidos graxos obtidos estão os ácidos chalmúgrico e o ácido hydnocárpico, que diferem ligeiramente em sua composição química e em seu poder de desvio ótico da luz polarizada.6,7 Sua utilização era feita por meio de fórmulas magistrais, como a de Brocq e Pomaret, citada por Ramos e Silva:1

Óleo de chaulmoogra 70cc Eucalyptol 30cc Para injeções intra-musculares.

A indústria farmacêutica local desenvolveu vários produtos e as multinacionais produziram, entre outros, o Alepol®, Moogrol® (Burroughs-Welcome),6 Antileprol® (Bayer). Na realidade, o tratamento chalmúgrico representou a primeira possibilidade concreta para o arsenal terapêutico da hanseníase. Foi empregado por via oral, abandonada pelos efeitos irritantes para o trato gastrointestinal, parenteral (intramuscular ou endovenosa) e em forma de aplicações intralesionais conhecida como plancha. Esta última modalidade teve muitos adeptos e era considerado eficaz na regressão de lesões paucibacilares.7,9,10 Seu mecanismo de ação não era conhecido. Acreditava-se que estimularia a ação das lípases séricas na parede bacteriana facilitando a lise do microorganismo.1,8,11 De Mello, em 1925, considerava também um possível efeito imunoestimulador11 e alguns autores sugeriam que, no caso do tratamento intralesional, o trauma mecânico seria responsável por essa estimulação.9

Embora tivessem seu uso largamente difundido, muitos questionamentos foram feitos desde a introdução dos derivados chalmúgricos no arsenal terapêutico da hanseníase. Bechelli, Rotberg, em 1951, mostraram a grande discordância entre os diversos autores em relação aos resultados obtidos com esse tratamento e afirmavam não haver estudos metodologicamente adequados capazes de confirmar sua eficácia. Admitiam, entretanto, seu efeito local na melhora de muitas lesões e seu papel no controle, facilitando ou estimulando a busca de tratamento pelos pacientes que antes se ocultavam.10

A introdução das sulfonas no tratamento da hanseníase a partir das observações de Faget em 1941 iniciou o declínio dos chalmúgricos.12,3 3 Faget GH, Pogge RC, Johansen FA, Dinan JF, Prejean BM, Eccles CG. The promin treatment of leprosy. Public Health Rep.1943;58:1729. Apud 12 A implantação da política de controle ambulatorial da hanseníase no final da década de 1950 levou ao encerramento dessa etapa do tratamento da hanseníase.13

QUIMIOTERAPIA ATUAL

Em 1981 a OMS recomendou o tratamento com os esquemas poliquimioterápicos (ou multidrogaterapia - MDT). Os esquemas propostos eram constituídos por várias drogas, com mecanismos de ação distintos, com a finalidade de evitar o surgimento de resistência bacteriana, sendo eficazes mesmo na presença de cepas de M. leprae resistentes à dapsona. A duração reduzida da PQT em relação ao tratamento sulfônico, que era mantido por toda a vida do paciente, tinha como objetivo aumentar a adesão dos pacientes ao tratamento. Para isso recomendava-se a associação de drogas bactericidas.4 Os esquemas-padrão, na verdade, têm uma droga fortemente bactericida, que é a rifampicina, e duas drogas consideradas bacteriostáticas ou bactericidas fracas, dapsona e clofazimina.14

Dos esquemas oficialmente recomendados pela OMS, o Brasil adota hoje a PQT-PB, sugerido para formas paucibacilares de hanseníase - indeterminada e tuberculóide -, e a PQT-MB, para formas multibacilares da doença - dimorfa e virchowiana.3 Ambos preconizam a rifampicina como droga administrada sob supervisão em doses mensais. A PQT-PB prevê a auto-administração diária da dapsona e deve ser concluída após seis doses supervisionadas em até nove meses. A PQT-MB prevê na dose supervisionada a tomada da clofazimina, além da rifampicina, e doses diárias auto-administradas de dapsona e clofazimina. A duração do tratamento foi inicialmente de 24 doses, sendo posteriormente admitida sua realização com 12 doses em até 18 meses.3 Existe ainda o terceiro esquema, alternativo, recomendado para formas PB com lesão única de pele, denominado ROM - rifampicina,ofloxacina e minociclina administradas em dose única.

Os esquemas-padrão já foram utilizados por 14 milhões de pacientes em todo o mundo,2 sendo comprovadas sua segurança e aceitação para uso no campo. Taxas de recidiva na ordem de 0,1%/ano entre multibacilares levam em conta o esquema com duração de 24 doses.14 Entretanto, têm sido relatadas recidivas em patamares considerados inaceitáveis para grupos específicos de multibacilares, com IB elevados.5,15 A busca de esquemas que possam agregar drogas fortemente bactericidas prossegue, com perspectivas promissoras a partir da demonstração, em animais de laboratório, da superioridade da rifapentina e moxifloxacina em relação à rifampicina e ofloxacina, e de sua associação com minociclina (PMM) considerada superior ao ROM.14,16

A PQT trouxe em seu bojo a premissa do cuidado multidisciplinar com o paciente, o estreitamento do vínculo do paciente com o serviço, melhorando os níveis de adesão ao tratamento e possibilitando diagnósticos precoces e intervenções nos estados reacionais, e o trabalho contínuo na prevenção de incapacidades físicas.

O impacto da PQT fez-se essencialmente na prevalência da doença, não tendo havido redução significativa na detecção de casos novos.14 Estima-se que essa entre em declínio, que poderá ser lento, fazendo-se necessária a adoção de estratégias de controle a longo prazo.17

É preciso que se tenha o envolvimento de toda a sociedade, o compromisso de governos e profissionais de saúde, destacando-se o papel do dermatologista, profissional importante no suporte da estrutura de saúde, na abordagem dessa doença tipicamente dermatoneurológica.

Finalizando, pode-se afirmar que as expectativas de Ramos e Silva foram corretamente traçadas quando prognosticou a quimioterapia como o método terapêutico ideal a ser alcançado, que levaria à extinção do isolamento compulsório e ao tratamento ambulatorial da hanseníase.1 A evolução da quimioterapia ao longo do século 20 permitiu que esses objetivos fossem alcançados, com a cura da infecção. Espera-se que os problemas remanescentes, como os distúrbios imunológicos que levam aos estados reacionais e o estigma que ainda existe em muitas sociedades, tenham, com a evolução dos tratamentos hoje existentes e a consolidação das metas de eliminação nos vários níveis, o desfecho almejado no cenário da erradicação. q

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. João Gontijo, pelo valioso material bibliográfico disponibilizado.

REFERÊNCIAS

1. Ramos e Silva J. A chimiotherapia da lepra; seu estado actual. An Bras Dermatol. 1926;2:17-28.

2. World Health Organization. Global leprosy situation, 2004. Week Epidemiol Rec. 2005; 80:118-24.

3. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1073/GM, de 26 de setembro de 2000. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 28 set. 2000. Seção 1, p. 18.

4. World Health Organization Study Group. Chemotherapy of leprosy for control programmes. Geneve: WHO; 1982. p. 675. [WHO Technical Report Serie].

5. Gelber RH, Balagon MVF, Cellona RV.The relapse rate in MB leprosy patients treated with 2 years of WHO-MDT is not low. Int J Lepr Other Mycobact Dis. 2004;72:493-500.

6. Norton AS. Useful plants in dermatology.I. Hydnocarpus and chaulmoogra. J Am Acad Dermatol. 1994;31:683-6.

7. Bechelli LM, Rotberg A, Maurano F. Medicação Chalmúgrica. In: Bechelli LM, Rotberg A, Maurano F. editores. Tratado de Leprologia. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Lepra; 1944.p. 235-314.

8. Urbino G. Le traitement chimiothérapique de la tuberculose et de la lèpre. Presse Med. 1925;33:1332-4.

9. Muir E. Hydnocarpus oil. In: Muir E. editor. Manual of Leprosy.Edinburgh: E&S Livingstone; 1948. p.117-23.

10. Bechelli LM, Rotberg A. Chaulmugra, outras drogas, medicações em estudo. In: Bechelli LM, Rotberg A. editores. Compêndio de leprologia. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda; 1951. p.459-77.

11. De Mello F. Ètat actuel de la chimiothérapie anti-lépreuse. Presse Méd.1925;33:1348-52.

12. Muir E. Sulphone treatment. In: Muir E. Editor. Manual of leprosy. Edinburgh: E&S Livingstone; 1948. p.124-30.

13. Paula ASV. A hanseníase em Minas Gerais (comentários sobre a situação da endemia em 1979). Boletim Informativo SOSP. 1980;65:3-7.

14. Report of the International Leprosy Association technical Fórum. Paris, 2002. Int J Lepr Other Mycobact Dis. 2002;70: 62.

15. Jamet P, Ji B. Relapse after long-term follow up of multibacillary patients treated by WHO multidrug regimen. Marchoux Chemotherapy Study Group. Int J Lepr Other Mycobact Dis.1995; 63:195-201.

16. Consigny S, Bentoucha A, Bonnafous P, Grosset J, Ji B. Bactericidal activities of HMR3647, moxifloxacin, and rifapentine against Mycobacterium leprae in mice. Antimicrob Agents Chemother. 2000;44:2919-21.

17. Meima A, Smith WC, van Oortmarssen GJ, Richardus JH,Habbema JD.The future incidence of leprosy: a scenario analysis. Bull World Health Organ. 2004; 82:373-80.

Recebido em 04.10.2004.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 04.10.2004.

  • Endereço para correspondência
    Marcelo Grossi
    Rua Maranhão, 99/s-504 - Santa Efigênia
    30150-330 - Belo Horizonte - MG
    Fax: (31) 3241-6941
    E-mail:
  • 1
    Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (MG).
  • 2
    Mouat FJ. Notes on native remedies. Indian Ann Med Sci.1854;1:646-652.
    Apud
    6
  • 3
    Faget GH, Pogge RC, Johansen FA, Dinan JF, Prejean BM, Eccles CG. The promin treatment of leprosy. Public Health Rep.1943;58:1729.
    Apud
    12
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2005
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