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Anais Brasileiros de Dermatologia
versão impressa ISSN 0365-0596versão On-line ISSN 1806-4841
An. Bras. Dermatol. v.81 n.1 Rio de Janeiro jan./fev. 2006
https://doi.org/10.1590/S0365-05962006000100012
SÍNDROME EM QUESTÃO
Você conhece esta síndrome?*
Júnia Bicalho de SousaI; Sílvia Pimenta de CarvalhoI; Luciana Baptista PereiraII; Everton Siviero do ValeII
IMédica especialista pela SBD e pelo MEC
IIProfessor Assistente de Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil
RESUMO
A lipodistrofia generalizada congênita (síndrome de Berardinelli-Seip), doença autossômica recessiva, caracteriza-se por escassez do tecido subcutâneo. A falta de tecido adiposo propicia disfunção metabólica dos lípides e carboidratos, resistência periférica à insulina, hipertrigliceridemia e hipermetabolismo. Outros achados são acantose nigricante, acromegalia, hepatomegalia e alterações musculares, ósseas, cardiovasculares e neurológicas. Relata-se o caso de paciente com essa síndrome, cujo diagnóstico foi realizado em um serviço de dermatologia.
Palavras-chave: Acantose nigricans; Acromegalia; Hiperinsulinismo; Hipertrigliceridemia; Lipodistrofia; Resistência a insulina
RELATO DO CASO
Paciente de 14 anos, do sexo feminino, parda, procedente de Felisburgo, MG. Foi atendida com queixa de lesões hipercrômicas aveludadas nas regiões cervical, axilar e inguinal, que se iniciaram aos dois meses de idade e recentemente haviam piorado. Relatava apetite aumentado e amenorréia. Apresentava bom desempenho escolar. Negava doenças prévias. Os pais eram primos distantes e não havia casos semelhantes na família.
Notava-se acantose nigricante nas regiões perioral, cervical, axilar, inguinal e antecubital (Figura 1). Apresentava ainda acromegalia e ausência da gordura de Bichat (Figura 2), hipertrofia muscular axial e de membros, hepatomegalia e escassez acentuada do tecido subcutâneo (Figura 3), exceto em mãos e pés. As mamas eram hipotróficas devido à falta de gordura, e o clitóris mostrava-se proeminente (Figura 3). Seu peso era 45kg, e a altura, 1,56m.
O laboratório revelou elevação da glicemia de jejum (125mg/dl), dos triglicérides (537mg/dl), das aminotransferases (AST 69u/L; ALT 112u/L), da gama-GT (113 u/L, referência 12-43u/L) e da insulinemia (48,6mU/ml; referência 2-27/mU/ml). Hemograma, ionograma, fosfatase alcalina, colesterol total e fracionado, função tireoidiana e renal, exame de urina rotina, sulfato de deidroepiandrosterona, testosterona, prolactina, GH, LH e FSH estavam na faixa da normalidade.
A ultra-sonografia abdominal mostrava hepatomegalia com esteatose e colecistolitíase. O ECG apresentava sinais indiretos de hipertrofia do ventrículo esquerdo. As radiografias de tórax e de ossos longos, e o ecodopplercardiograma não mostravam alterações.
Foi prescrita dieta restritiva para gorduras e açúcares. Evoluiu com o desenvolvimento de diabetes melito, sendo iniciada insulinoterapia e posteriormente glibenclamida, sem controle do quadro. As aminotransferases mantiveram-se elevadas.
A acantose nigricante foi tratada com creme de uréia e ácido salicílico, apresentando melhora parcial. Surgiram lesões papulosas amareladas nos membros superiores, cujo exame histopatológico confirmou a suspeita clínica de xantoma eruptivo (Figura 4).
Apresentou ainda albuminúria, glicosúria, hematúria e hipertensão arterial sistêmica, controlada com dieta hipossódica.
O acompanhamento multidisciplinar foi interrompido após um ano, por iniciativa da paciente.
QUE SÍNDROME É ESSA?
Síndrome de Berardinelli-Seip
As lipodistrofias compreendem um grupo de desordens congênitas ou adquiridas caracterizadas por perda parcial ou quase completa do tecido adiposo.
A lipodistrofia generalizada congênita, conhecida por síndrome de Berardinelli-Seip, de herança autossômica recessiva, caracteriza-se pela escassez de tecido adiposo, já notada ao nascimento ou na infância precoce.1-4 O defeito genético provavelmente resulta no mau desenvolvimento do tecido adiposo metabolicamente ativo.5,6 O tecido adiposo mostra-se escasso na maioria das áreas subcutâneas, no abdômen, no tórax, na medula óssea e na região malar.3,5,7 Encontra-se normal nas palmas, plantas e outros locais onde tem função mecânica.5,7
Hiperlipidemia é achado quase constante, podendo levar à xantomatose.3
A leptina sérica, hormônio importante na homeostase energética, é baixa, o que contribui para a ocorrência de resistência à insulina e de outras anormalidades metabólicas.8-10
Os distúrbios no metabolismo dos carboidratos são provavelmente conseqüentes à limitada capacidade de sua estocagem como gordura. A sobrecarga de carboidratos resulta em hiperinsulinemia e intenso anabolismo, podendo a glicemia manter-se normal. Entretanto, resistência periférica à insulina costuma ser observada desde a infância.3
Os indivíduos afetados geralmente apresentam crescimento linear acelerado, apetite voraz, idade óssea avançada na infância, acromegalia e hipertrofia muscular.3,8
Distúrbios mais graves do metabolismo dos lípides e carboidratos não costumam surgir até a puberdade, pelo efeito protetor da acelerada velocidade de crescimento.3 Com o fim do ganho estatural, a dislipidemia se agrava, e o diabetes melito se manifesta.3,11
Em decorrência da hiperinsulinemia, desenvolve-se acantose nigricante.3 Ocorre esteatose com hepatomegalia, que pode evoluir para esteato-hepatite e cirrose.3 As mulheres podem ter aumento do clitóris, hirsutismo, ovários policísticos e fertilidade reduzida; os homens costumam ter potencial reprodutivo normal.3,8 O tecido glandular mamário é bem desenvolvido, mas há escassez de tecido subcutâneo ao redor das mamas.5
Hipertensão arterial sistêmica e hipertrofia miocárdica são comuns.12,13 Distúrbios neurológicos costumam também ser relatados,4 assim como alterações ósseas.14
Com referência ao tratamento, não há dieta capaz de reverter a lipodistrofia, embora a restrição de gorduras e carboidratos sejam fundamentais.3
Os fibratos e as estatinas podem ser tentados para controlar a hipertrigliceridemia.9
O uso de insulina em geral não permite controle glicêmico adequado. As tiazolidinedionas parecem ser a terapia mais efetiva, embora ainda não sejam ideais.9 A metformina pode ser tentada.9 Em estudo recente, a terapia de reposição da leptina resultou em melhora do controle glicêmico e metabólico.9 No caso relatado, a glibenclamida foi opção da endocrinologia, devido à alteração das enzimas hepáticas, o que teoricamente contra-indicaria a administração de metformina.
Para o tratamento da acantose nigricante e dos xantomas é essencial o controle dos fatores desencadeantes, como a hiperinsulinemia e a dislipidemia.
O caso relatado reforça a importância do conhecimento das lipodistrofias pelo dermatologista, que pode inicialmente ser procurado devido à presença das alterações cutâneas a partir das quais se pode chegar ao diagnóstico de síndromes metabólicas com importante acometimento sistêmico.
REFERÊNCIAS
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3. Seip M, Trygstad O. Generalized lipodystrophy, congenital and acquired (lipoatrophy). Acta Paediatr Suppl. 1996;413:2-28. [ Links ]
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8. Garg A, Wilson R, Barnes R, Arioglu E, Zaidi Z, Gurakan F, et al. A gene for congenital generalized lipodystrophy maps to human chromossome 9q34. J Clin Endocrinol Metab. 1999;84:3390-4. [ Links ]
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10. Pardini VC, Victória IMN, Rocha SMV, Andrade DG, Rocha AM, Pieroni FB, et al. Leptin levels, beta-cell function, and insulin sensitivity in families with congenital and acquired generalized lipoatrofic diabetes. J Clin Endocrinol Metab. 1998;83:503-8. [ Links ]
11. Sovik O, Vestergaard H, Trygstad O, Pedersen O. Studies of insulin resistance in congenital generalized lipodystrophy. Acta Paediatr Suppl. 1996;413:29-38. [ Links ]
12. Viégas RFL, Diniz RVZ, Viégas TMRF, Filho EBL, Almeida DR. Envolvimento cardíaco na lipodistrofia total generalizada (Síndrome de Berardinelli-Seip). Arq Bras Cardiol. 2000;75:243-8. [ Links ]
13. Bjørnstad BG, Foerster A, Ihlen H. Cardiac findings in generalized lipodystrophy. Acta Paediatr Suppl.1996;413:39-43. [ Links ]
14. Westvik J. Radiological features in generalized lipodystrophy. Acta Paediatr Suppl. 1996;413:44-51. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Júnia Bicalho de Sousa
Bela Pele Clínica Dermatológica®
Rua Montes Claros, 443/104 - Bairro Anchieta
30310-370 - Belo Horizonte - MG
Telefone: (31) 3223-3250
E-mail: juniabicalho@click21.com.br
Recebido em 27.06.2003.
Aprovado pelo Conselho Editorial e aceito para publicação em 05.12.2005.
Conflito de interesse declarado: Nenhum.
* Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG) - Belo Horizonte (MG), Brasil.