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Considerações sobre o momento atual da Dermatologia Brasileira

ARTIGO ESPECIAL

Considerações sobre o momento atual da Dermatologia Brasileira* * Editores do Anais Brasileiros de Dermatologia

Bernardo Gontijo* * Editores do Anais Brasileiros de Dermatologia ; Everton Carlos Siviero do Vale* * Editores do Anais Brasileiros de Dermatologia ; Sílvio Alencar Marques* * Editores do Anais Brasileiros de Dermatologia

INTRODUÇÃO

Em contraponto ao artigo do Dr. Bruce Thiers "Issues facing dermatology in the United States", publicado nesse número, os editores dos Anais julgam oportuno oferecer à comunidade dermatológica uma breve e concisa visão de alguns tópicos relativos à nossa especialidade.

É de se destacar que muitos de nossos problemas são semelhantes àqueles vivenciados pelos dermatologistas americanos. A finalidade primeira dessas considerações é um convite à reflexão sobre os rumos de nossa profissão e especialidade e nosso poder de atuação para as correções necessárias.

ESCOLAS MÉDICAS E O CONTINGENTE DE MÉDICOS NO BRASIL

Para melhor compreensão desse problema, complexo em sua essência e mais ainda em suas possíveis soluções, é fundamental uma análise histórica da abertura das escolas de medicina em nosso país (Tabela. 1).

O primeiro período avaliado na tabela 1 caracteriza-se pelo predomínio das escolas públicas, com forte presença do Estado no ensino médico. A partir da década de 50, com a criação dos quatro primeiros cursos privados, o número de escolas particulares aumentou de forma avassaladora e contínua, até atingir nos dias atuais um equilíbrio, possivelmente efêmero, com as escolas públicas.

Cursos de medicina envolvem custos elevados para sua manutenção. Para o capital privado, com objetivo final de resultado financeiro, é interessante um número maior de vagas, o que nem sempre caminha paralelo à qualidade do ensino. Talvez o aspecto mais perverso dos cursos particulares, em função de suas altas mensalidades, é que os exames de admissão se tornam, em última análise, uma seleção econômica, e não de conhecimento.

Os três últimos anos do governo Fernando Henrique (2000-2002) detêm o recorde do aumento proporcional de escolas médicas no Brasil com a criação de 28 novos cursos. Também durante o primeiro mandato de Fernando Henrique foi retirado do Conselho Nacional de Saúde o poder de emitir parecer terminativo sobre a necessidade social de abertura de novas escolas médicas, prerrogativa existente até 1996. Políticos, em geral, e governantes, em particular, são usualmente dotados de uma visão míope em relação à educação. O ensino é considerado por eles como uma atividade dispendiosa, de escasso retorno eleitoral e combustível para permanentes manifestações oposicionistas. Para ficar em um só exemplo do descaso oficial, único, porém eloqüente, basta constatar que o salário de um professor titular, em regime de dedicação exclusiva, das universidades federais se equipara ao de um ascensorista do Senado.

Formam-se hoje no país mais de 10.000 médicos por ano, um dado subestimado já que alguns cursos recentemente autorizados ainda não graduaram seus alunos. Esses números fazem com que o Brasil ostente a proporção média geral de 1 médico/622 habitantes, abaixo da preconizada pela Organização Mundial de Saúde de 1 médico/1.000 habitantes. Rio de Janeiro e Distrito Federal lideram o quesito de concentração de médicos com índices de 1/302 e 1/309 habitantes, respectivamente.

O número de médicos cresce a uma razão duas vezes maior que o aumento da população, sendo uma parcela significativa de profissionais egressa de cursos de graduação sem a mínima condição de funcionamento. O governo estimula a formação de novos cursos universitários fundamentado no argumento, nem sempre verdadeiro e muitas vezes falacioso, da inclusão social. Uma clara e descabida opção pela quantidade em detrimento da qualidade. Em vez de investir no ensino fundamental e técnico, reconhecidamente o ponto crítico do sistema educacional, decide pela abertura de cursos sem observar os mais elementares requisitos técnicos e muitas vezes mirando o dividendo político. Na data da redação desse artigo (18.12.06), o total de escolas médicas em funcionamento no país era de 162 (93 privadas e 69 públicas), com oferta de 14.730 vagas no primeiro ano. A última autorização data de 14.11.06 para o Centro Universitário do Estado do Pará.

A pletora de médicos, muitos desprovidos de qualificação, traz reflexos inevitáveis ao mercado de trabalho gerando baixa remuneração, concorrência desleal e condições de trabalho desfavoráveis. As conseqüências se fazem sentir em todos os segmentos, mas atinge sobremaneira exatamente aquele que deveria ser o maior beneficiário de uma medicina exercida com conhecimento, arte e dedicação: o paciente.

Um determinado governante, conhecido por reunir um sem número de características indesejáveis em um político, recebeu certa vez um grupo de médicos que reivindicavam aumento salarial. Para justificar sua recusa, saiu-se com essa pérola de pensamento. "Não dou aumento porque médico é como sal: branquinho, barato e pode ser encontrado em qualquer esquina". Quando palavras como essas, emitidas por alguém dessa estirpe, se aproximam perigosamente da realidade, algo de muito errado deve estar acontecendo.

Um aspecto digno de nota é que, contra todos esses fatos e evidências, os cursos de medicina continuam a ser os que atraem o maior número de candidatos e os que exigem maior média para aprovação. Talvez a explicação mais simplista seja que nossa profissão, embora conviva com o subemprego e a baixa remuneração, ainda não apresenta desemprego.

A DERMATOLOGIA E O MERCADO DE TRABALHO

Paralelamente, o mercado de trabalho vem sofrendo profundas mudanças. Talvez a de maior destaque tenha sido a redução drástica, beirando a extinção, da clínica privada e a emergência dos planos de saúde ou convênios. De um profissional eminentemente liberal, o médico passou a ser um prestador de serviço cujos honorários são estipulados pelas organizações proprietárias dos planos. Triste destino o da área da saúde (medicina, odontologia, psicologia, fisioterapia, etc.), a única em que a atividade profissional é mediada e regida por empresas, não raro bancos e seguradoras, que se outorgam o direito de fixar o valor do trabalho.

Nesse cenário nebuloso, caracterizado pelo desequilíbrio trabalho/remuneração, a dermatologia acrescentou às suas áreas de atuação a cosmiatria. Tal fato se sustenta em um tripé de evidências incontestáveis: a busca desmedida pela beleza, alçada por muitos à condição de objetivo principal da vida; demanda crescente de um público ávido, que paga elevadas somas por procedimentos estéticos, em contraposição ao sempre desvalorizado raciocínio clínico; e a possibilidade de ganhos extras, mesmo com pacientes de convênio, uma vez que os planos de saúde não cobrem procedimentos cosméticos.

Na última década a dermatologia tornou-se a especialidade da moda e, como tal, atrai um número crescente de médicos. Alguns genuinamente interessados, outros seduzidos unicamente pelo glamour e possibilidades financeiras. E, a reboque desses, um bando de espertalhões criadores de cursos de pósgraduação de fim de semana, com objetivo único de se locupletarem à custa de propaganda enganosa e formação de pseudo-especialistas.

A necessidade de exposição permanente na mídia fez surgir a figura, até então desconhecida na medicina, do assessor de imprensa e do profissional de marketing. A despeito dos inegáveis valores de um marketing ético, nada melhor para a divulgação de um médico que um paciente bem atendido.

A Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) possui atualmente 62 serviços credenciados, com uma capacidade instalada para oferecer ensino de especialização a 235 médicos por ano. A abertura de novas vagas não deve obedecer a critérios exclusivos de demanda, visto que ela tende a ser crescente pelas razões anteriormente expostas. Há que se ter em conta, entre outros parâmetros, as necessidades do mercado com base na população e na distribuição dos especialistas nas diversas regiões do Brasil.

NOSSA IMAGEM PERANTE O PÚBLICO LEIGO E OS MÉDICOS

Colegas dermatologistas são freqüentemente convidados pela mídia para opinar sobre assuntos relativos à especialidade. Tais temas são eventualmente clínicos ou de saúde pública, mas sua esmagadora maioria diz respeito a procedimentos de embelezamento. Independente da natureza do tópico abordado, entrevistas em qualquer tipo de mídia representam uma oportunidade inestimável para que o especialista se posicione como profissional sério, de sólida formação e conhecimentos. Assim agindo, valoriza-se e, sobretudo, dignifica a dermatologia como especialidade médica.

Lamentavelmente, contudo, muitos aproveitam tais oportunidades para a promoção pessoal. O que passa pela cabeça do leigo ao ver o dermatologista posar ao lado do seu carro importado do ano ou exibir seu closet repleto de sapatos e roupas de grife? Uma imagem de sucesso, sem dúvida, já que esses valores são erroneamente levados em conta como sinônimo de competência profissional. Mas o pior risco é o de sermos reduzidos aos olhos do público a médicos frívolos, profissionais que se ocupam apenas de detalhes de embelezamento. A dermatologia não pode, definitivamente, se deixar estigmatizar como uma especialidade restrita a procedimentos estéticos. Deve manter sua identidade clínico-patológica, razão maior de sua existência, como de resto de qualquer outra especialidade médica.

A banalização do ato médico, com pacientes expostos em programas de televisão para a demonstração de novas técnicas de tratamento, é uma das grandes responsáveis pela deturpação da especialidade. Transmite-se, falsamente, a idéia de que os atos são simples, podendo ser realizados em qualquer ambiente e sob quaisquer condições. Assim, não pode causar estranheza o fato de que algumas dessas modalidades terapêuticas já sejam oferecidas até mesmo em salões de beleza. Se não valorizarmos nossa especialidade, ninguém o fará por nós.

É clássica na medicina a superposição entre algumas especialidades tais como ortopedia e reumatologia, nefrologia e urologia, otorrinolaringologia e cirurgia de cabeça e pescoço. É natural que a dermatologia, sendo a pele o maior órgão do corpo, apresente mais interfaces com outras especialidades do que qualquer outra área médica. E como decorrência de nossa expansão como especialidade, passamos a atuar em segmentos anteriormente restritos à cirurgia plástica ou cirurgia oncológica, para ficar apenas nesses dois exemplos. A mesma dermatologia, que em um passado não tão remoto queixava-se da invasão de outros especialistas, meros prescritores de "creminhos e pomadinhas", estendia agora seus tentáculos, ampliando seus domínios.

A resposta das demais especialidades não se fez esperar. Ao reluzir como ouro em um cenário de devastação, a dermatologia se viu invadida por egressos de várias outras especialidades médicas. Muitos dos alunos que se matriculam nos famigerados cursos de fim de semana são ginecologistas, pediatras, endocrinologistas e anestesistas, entre outros. Que razões os levam a tal atitude? Em primeiro lugar, sem dúvida, o vislumbre do ganho fácil e clientela farta. Entretanto, há outra razão que muitos se recusam a admitir, mas que salta aos olhos de qualquer observador atento. Se a aplicação de toxina botulínica, procedimento respaldado em evidências científicas e de inquestionável valor, pode ser realizada por especialistas tão distintos como dermatologistas, cirurgiões plásticos, oftalmologistas, otorrinolaringologistas, ginecologistas ou endocrinologistas, conclui-se que sua realização não depende de um treinamento formal, completo e exclusivo em uma dessas áreas médicas. Esse é o grande dilema de muitos dos procedimentos estéticos: o risco de se tornarem uma terra de ninguém, acessível a qualquer forasteiro com conhecimentos adquiridos em cursos práticos de um dia de duração.

Os colegas que assim procedem, definitivamente, não mudam de especialidade. Simplesmente travam contato com algumas técnicas de tratamento estético. A Dermatologia, com D maiúsculo, é infinitamente maior.

O PAPEL DAS ENTIDADES DE CLASSE E DA SBD

Vários dos problemas que nos afetam são oriundos de decisões tomadas com base em aspectos políticos, em vez de técnicos, como a abertura de novos cursos de medicina, da conjuntura econômica, como os baixos salários e a existência dos planos de saúde, ou mesmo de uma legislação ineficaz. O combate a essas incoerências é uma luta árdua, por vezes inglória, mas que depende fundamentalmente de nossa capacidade de organização e poder como classe.

Médicos jovens tendem a considerar as atividades associativas como burocráticas e maçantes, além de onerosas, esquecendo-se que somente o engajamento efetivo pode gerar proveitos à nossa profissão. Devem portanto ser estimulados, desde o início de suas carreiras, a se associarem às entidades de classe e sociedades científicas, palco adequado para a discussão dos problemas que nos dizem respeito.

Não é pequeno o esforço empreendido pela Associação Médica Brasileira (AMB) e Conselho Federal de Medicina (CFM) junto ao poder público para melhorar a situação dos médicos. Muitas vezes, entretanto, todo esse esforço se perde na burocracia, na morosidade da Justiça, ou mesmo na ausência de compromisso das autoridades. Nada mais difícil do que fechar um curso médico em funcionamento, ainda que comprovadamente precário e destituído das mínimas condições de existência.

Muitas faculdades se aproveitam das brechas nas leis ou das incoerências entre as constituições federal e estadual para colocarem em funcionamento cursos não aprovados pelo MEC. Nesse sentido, o CFM publicou a resolução 1.808, de 10 de novembro de 2006, determinando que os Conselhos Regionais de Medicina somente procedam ao registro de diplomas de formatura expedidos por instituições de ensino superior reconhecidas pelo MEC. Já que o governo não cumpre sua parte, que sejam tomadas as medidas necessárias.

O credenciamento do MEC para cursos de pósgraduação lato sensu é outra área fértil para a ação mal intencionada. Algumas instituições, regularmente credenciadas, "transferem" esse direito a entidades criadas com o único propósito de gerenciar esses cursos e auferir ganhos excepcionais.Como o controle oficial é precário e as avaliações inexistentes, a taxa de natalidade de tais cursos cresce exponencialmente. O que esperar de um médico que, após realizar esses cursos, não consegue obter seu título de especialista em dermatologia? Que entre no mercado de trabalho, mesmo sem a qualificação necessária, que se prepare para um novo exame, ou que mude de especialidade? Não é preciso bola de cristal para acertar a resposta.

O CFM e a AMB reconhecem 59 especialidades, dentre elas a dermatologia e suas três áreas de atuação: cirurgia dermatológica, hansenologia e cosmiatria. Inexiste, portanto, a tão propalada especialidade"medicina estética". Embora desprovida de existência legal, a medicina estética, na prática, é exercida por muitos, médicos e não-médicos. Em alguns casos, sabe-se lá como.

Uma hipótese possivelmente promissora para enfrentar esses problemas é a criação da Ordem dos Médicos, a exemplo do que ocorre com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Afligida por um número exagerado de escolas de direito e profissionais desqualificados, e sem detectar qualquer ação oficial para coibir esses descalabros, a OAB criou o exame da ordem. À graduação, recebe-se o título de bacharel em direito, insuficiente para o exercício da profissão. Para tanto, há que se obter a aprovação no exame, passando a fazer jus ao título de advogado. Em exame recente, o índice de reprovação superou os 80%. Prever o índice de reprovação em um exame de ordem para médicos seria um exercício de imaginação, mas é razoável supor um número desapontador. Aqui, mais uma vez, como o governo não fez sua parte, controlando a qualidade do ensino, coube à OAB fazer a dela.

A SBD tem, dentre suas múltiplas funções, atuado nas áreas científica, prestação de serviços públicos e política. É a única sociedade científica credenciada pela AMB como representante da especialidade e de suas áreas de atuação e autorizada a realizar o exame de especialista. É crucial que esse papel seja repetidamente lembrado ao público, bombardeado pela propaganda enganosa de outras entidades sem representatividade, mas intensamente dedicadas à divulgação de seus eventos, cursinhos e de seus milagres terapêuticos.

Por fim cabe uma menção, ainda que breve, ao título de especialista da SBD. Inicialmente destinado a certificar os aprovados, o exame deve se adaptarà realidade do momento e incorporar uma nova característica: diferenciar aqueles efetivamente treinados para o exercício da especialidade daqueles oportunistas precariamente formados, geralmente pródigos em ações judiciais para contestar as questões. Enquanto a prova for meramente teórica, corremos o risco de aprovar candidatos que simplesmente tenham bytes de memória suficientes para decorar textos. É preciso exigir conduta, avaliar em exames práticos o desempenho do candidato diante de um caso clínico, seus diagnósticos diferenciais, quadro histopatológico e opções terapêuticas. Somente assim poderemos fazer essa distinção.

REFERÊNCIAS

1. Bueno RRL, Pieruccini MC. Abertura de escolas de medicina no Brasil. Relatório de um cenário sombrio. [Acesso 1 Dez 2006]. Disponível em: http://www.amb.org.br/escolas_abertura.pdf

2. Escolas Médicas do Brasil [homepage]. Todas asescolas. [Acesso 18 Dez 2006]. Disponível em: http://www.escolasmedicas.com.br/novas.php

3. Gontijo B, Almeida FA, Machado MH, coords. Perfil dos dermatologistas no Brasil: análise preliminar. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Dermatologia; 2001.

4. Machado MHM, Vieira ALS, coords. Perfil dos dermatologistas no Brasil. Relatório final (Brasil e grandes regiões). Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Dermatologia; 2003.

5. Sodré, CT. Mercado de trabalho dos dermatologistas no Brasil. Conferência no 61º Congresso da Sociedade Brasileira de Dermatologia; 16 Out 2006; Curitiba, PR.

Conflito de interesse declarado: Nenhum

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    Editores do Anais Brasileiros de Dermatologia
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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