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Dermatose perfurante adquirida associada à insuficiência hepática em paciente transplantado de fígado

Acquired perforating dermatosis associated with hepatic failure in a liver-transplanted patient

Resumos

A dermatose perfurante adquirida é entidade clinicopatológica caracterizada por eliminação transepitelial de material dérmico degenerado, ocorrendo em muitas condições, entre elas diabetes mellitus, insuficiência renal crônica e colangite esclerosante. Relata-se o caso de paciente de 17 anos, com dermatose perfurante adquirida associada à insuficiência hepática crônica, conseqüente à complicação hepática de transplante de fígado para tratamento de sua doença de base, a glicogenose tipo I.

Colestasia; Doença do armazenamento de glicogênio tipo I; Foliculite; Insuficiência hepática; Prurido; Queratina; Transplante de fígado


Acquired perforating dermatosis is characterized by transepithelial elimination of degenerated dermal substances. It occurs in many conditions, such as: diabetes mellitus, chronic renal failure and sclerosing cholangitis. This article describes a 17-year-old Caucasian female with type I glucogenosis and acquired perforating dermatosis due to chronic hepatic failure caused by hepatic complication of liver transplant.

Cholestasis; Folliculitis; Glycogen storage disease type I; Keratin; Liver failure; Liver transplantation; Pruritus


CASO CLÍNICO

Dermatose perfurante adquirida associada à insuficiência hepática em paciente transplantado de fígado* * Trabalho realizado na Serviço de Dermatologia do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná - (PR), Brasil.

Acquired perforating dermatosis associated with hepatic failure in a liver–transplanted patient

Daniela BadziakI; Carolina LenhardtII; Michele F. de BarrosIII; Fernando Luiz MandelliIV; Sérgio Zuñeda SerafiniV; Jesus Rodriguez SantamariaVI

IMédica dermatologista

IIResidente em Dermatologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul, (RS), Brasil

IIIMédica dermatologista

IVMédico dermatologista

VProfessor–assistente de Dermatologia da Universidade Federal do Paraná – Paraná (PR), Brasil

VIProfessor–assistente de Dermatologia da Universidade Federal do Paraná – Paraná (PR), Brasil. Mestre em Dermatologia pela Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo – São Paulo (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Daniela Badziak R. Manoel Eufrásio, 293 ap.1102. CEP 80030–440 Curitiba–PR. Tel/Fax: (41) 21123971 / (41) 3322 2349 E–mail: danielabadziak@hotmail.com

RESUMO

A dermatose perfurante adquirida é entidade clinicopatológica caracterizada por eliminação transepitelial de material dérmico degenerado, ocorrendo em muitas condições, entre elas diabetes mellitus, insuficiência renal crônica e colangite esclerosante. Relata–se o caso de paciente de 17 anos, com dermatose perfurante adquirida associada à insuficiência hepática crônica, conseqüente à complicação hepática de transplante de fígado para tratamento de sua doença de base, a glicogenose tipo I.

Palavras–chave: Colestasia; Doença do armazenamento de glicogênio tipo I; Foliculite; Insuficiência hepática ; Prurido; Queratina; Transplante de fígado

ABSTRACT

Acquired perforating dermatosis is characterized by transepithelial elimination of degenerated dermal substances. It occurs in many conditions, such as: diabetes mellitus, chronic renal failure and sclerosing cholangitis. This article describes a 17–year–old Caucasian female with type I glucogenosis and acquired perforating dermatosis due to chronic hepatic failure caused by hepatic complication of liver transplant.

Keywords: Cholestasis; Folliculitis; Glycogen storage disease type I; Keratin; Liver failure; Liver transplantation; Pruritus

INTRODUÇÃO

A dermatose perfurante adquirida é entidade clinicopatológica caracterizada por eliminação transepitelial de material dérmico degenerado,1–4 ocorrendo em muitas condições, entre elas diabetes mellitus, insuficiência renal crônica e doenças hepáticas, incluindo colangite esclerosante.3,5 Hepatopatias graves, como colangite esclerosante, e distúrbios metabólicos hereditários, como a glicogenose tipo I, são indicações de transplante hepático.6

A descrição da dermatose perfurante adquirida associada à insuficiência hepática foi previamente relatada em casos de colangite esclerosante, sem transplante hepático como tratamento.3, 7

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 17 anos, branca, vista pela primeira vez em fevereiro de 2004 por apresentar pápulas pruriginosas com 30 dias de evolução. Essas pápulas inicialmente acometeram os membros inferiores com progressão para os membros superiores e face. Referia melhora clínica com hidratação da pele e expressão das lesões com saída de material pastoso. Apresentava como comorbidades hipotireoidismo, controlado com 75mcg/dia de tiroxina, e glicogenose hepática tipo I, tendo sido submetida a tratamento com transplante hepático cadavérico em 2002; tardiamente, evoluiu com trombose de artéria hepática e colangite isquêmica, com conseqüente insuficiência hepática crônica.

Ao exame físico apresentava icterícia acentuada e o biotipo clássico da glicogenose tipo I, com bochechas grandes, baixa estatura, abdômen protuberante e membros relativamente magros. Na pele, presença de pápulas eritematosas foliculares, de 2 a 8mm, com centro queratótico, e algumas com escoriações, localizadas principalmente nos membros inferiores (Figura 1), mas também nos membros superiores e face.


A investigação laboratorial revelou volume globular de 31,6% (normal: 35–45%), volume corpuscular médio de 93,2fl (normal: 80–100fl), aspartato aminotransferase de 192U/L (normal: 15–40U/L), alanina aminotransferase de 262U/L (normal: 7–35U/L), bilirrubina total de 10,75mg/dl (normal: até 1,2mg/dl) com direta de 5,32mg/dl, fosfatase alcalina de 2928U/L (normal: 90–360U/L), gama glutamil transferase de 992U/L (normal: 2–30U/L), tempo de atividade de protrombina de 15,3 segundos (controle de 12,3 segundos) e albumina de 3,9g/dl (normal: 3,4–4,8g/dl). As contagens de plaquetas, leucócitos, creatinina, uréia, glicemia de jejum, hormônio estimulante da tireóide, tiroxina livre, colesterol total e frações, lactato desidrogenase, sódio, potássio e cloreto foram normais. A sorologia anti–HIV I e II por método de Elisa foi negativa.

O exame histopatológico nas colorações em hematoxilina–eosina , PAS e orceína para fibras elásticas revelou acantose irregular moderada, folículo piloso dilatado contendo restos celulares, queratinócitos necróticos, fibras elásticas e colágenas e infiltrado linfocitário na derme superficial (Figura 2).


Instituiu–se tratamento sintomático com antihistamínicos sistêmicos (dexclorfeniramina e hidroxizina) e corticóide tópico de alta potência (clobetasol). Após sete meses de seguimento apresentou melhora das lesões iniciais, porém mantendo o aparecimento de novas lesões. A paciente aguarda novo transplante hepático como tratamento definitivo.

DISCUSSÃO

As desordens perfurantes compreendem um grupo de doenças caracterizadas pela eliminação transepitelial de material dérmico degenerado. Classificam–se em primárias (doença de Kyrle, elastose perfurante serpiginosa, colagenose perfurante reativa, foliculite perfurante) e secundárias (dermatose perfurante adquirida).5,8

A dermatose perfurante adquirida é entidade clinicopatológica inicialmente descrita em associação com insuficiência renal crônica dialítica ou não e com diabetes mellitus.5 Entretanto, relatos com associação à hipertensão arterial sistêmica, ateroesclerose, psoríase, 3,4,9 tumores (incluíndo linfomas),5 infecção pelo HIV,4 insuficiência hepática crônica (colangite esclerosante) têm sido descritos.3,7 Caracteriza–se pela presença de pápulas eritematosas com centro queratótico, pruriginosas, acometendo principalmente tronco e membros. 8,10 Os achados clínicos e histológicos são semelhantes aos das dermatoses perfurantes primárias, sendo que Rappini et al. sugerem que a dermatose perfurante adquirida pode apresentar–se de diferentes maneiras, assemelhando–se histologicamente às quatro dermatoses perfurantes primárias, de forma isolada ou como combinação delas.8,11

No caso em discussão, a associação das características clínicas e histopatológicas permitiu o diagnóstico de dermatose perfurante adquirida, perfil de foliculite perfurante, secundária à insuficiência hepática crônica.

As glicogenoses são doenças de armazenamento do glicogênio, resultantes da deficiência hereditária de enzimas envolvidas em sua síntese ou degradação. A glicogenose tipo I, também chamada de doença de Von Gierke, resulta da deficiência da enzima glicose–6–fosfatase e corresponde à forma hepática–hipoglicêmica da doença de armazenamento do glicogênio, caracterizando– se por hipoglicemia e/ou hepatomegalia com enzimas hepáticas praticamente normais e ausência de fibrose. A letalidade aproxima–se de 50%, e o tratamento definitivo baseia–se no transplante hepático.12

O comprometimento vascular devido à trombose ou estenose de artéria hepática é uma das complicações do transplante de fígado6 e pode ocasionar insuficiência hepática, como relatado no caso descrito.

Glicogenose do tipo I, transplante hepático sem complicações e drogas imunossupressoras não são citados como causa de dermatose perfurante adquirida na literatura. Os casos relatados associados à insuficiência hepática são devidos à colangite esclerosante, sem tratamento com transplante de fígado.3, 7

Vários mecanismos patogênicos têm sido incriminados na dermatose perfurante adquirida (perfil foliculite perfurante), entre eles uma queratinização folicular precoce e/ou uma alteração primária do tecido conectivo, com depósito de material tipo corpo estranho na derme superficial e sua eliminação pelo epitélio proliferado (eliminação transepitelial).3,8

Propõe–se que a intensa fricção causada pelo prurido colestático induza uma prematura hiperqueratinização folicular.3 Essa alteração pode ser influenciada por fatores genéticos, visto que ela só se desenvolve em determinados pacientes, e não em todos expostos às mesmas condições.7 A correlação existente entre a gravidade da insuficiência hepática e a afecção dermatológica sustenta a hipótese de que o prurido e a fricção, atuando na epiderme, desempenham papel importante no desencadeamento e manutenção da dermatose perfurante adquirida.7

Existem controvérsias quanto à relação de sais biliares e prurido colestático. Acreditava–se que o depósito de sais biliares na pele poderia iniciar o prurido e gerar eliminação transepitelial,3 porém pesquisas posteriores falharam em correlacionar diretamente a concentração plasmática ou tecidual de sais biliares com a presença ou a intensidade do prurido.13 Altas concentrações plasmáticas de sais biliares podem indiretamente ser responsáveis pelo prurido colestático,3,13 provavelmente, por induzir a liberação de fatores pruridogênicos.13 Também é possível a liberação e o acúmulo de opióides endógenos, os quais agem em receptores opióides centrais produzindo prurido.13

Existem evidências do envolvimento de alterações dérmicas na patogênese da dermatose perfurante adquirida. Postula–se que a fibronectina, acumulada na pele (derme) ou no soro de indivíduos predispostos, induz proliferação e migração epitelial criando uma direção para eliminação transepidérmica.14

Os leucócitos também têm participação, liberando colagenases e elastases que alteram o tecido conectivo, e proteinases que agem nas pontes intercelulares dos queratinócitos, facilitando a extrusão do tecido conectivo alterado.8

As alternativas terapêuticas são sintomáticas e empíricas devido aos mecanismos incertos do prurido colestático e da patogenia da dermatose perfurante adquirida.3,13

Terapêuticas como corticóides tópicos, intralesionais ou oclusivos; queratolíticos tópicos; retinóides tópicos ou sistêmicos;8,10 talidomida;4 PUVA;12 UVB banda estreita — 311nm;10,15 crioterapia; e exérese cirúrgica são alternativas paliativas geralmente insatisfatórias.8 Lembrando que a gravidade da insuficiência hepática correlaciona–se com a evolução da dermatose perfurante adquirida,7 a terapêutica definitiva é o tratamento da causa subjacente.3 Neste relato de caso, o tratamento definitivo é um novo transplante hepático, sendo essa terapêutica de primeira linha para a glicogenose tipo I, a insuficiência hepática e a afecção de pele.

Conflito de interesse declarado: Nenhum

Recebido em 29.11.2004.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 06.07.2005.

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  • Endereço para correspondência:
    Daniela Badziak
    R. Manoel Eufrásio, 293 ap.1102.
    CEP 80030–440 Curitiba–PR.
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    Trabalho realizado na Serviço de Dermatologia do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná - (PR), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2007

    Histórico

    • Aceito
      06 Jul 2005
    • Recebido
      29 Nov 2004
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