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Vasculopatia livedóide: relato de caso com possível evidência de etiopatogenia neurovascular

Livedoid vasculopathy: report of a case with evidence for a possible neurovascular etiopathogenesis

Resumos

A etiopatogênese da vasculopatia livedóide ainda hoje permanece indeterminada e, apesar de algumas etiologias aventadas, com freqüência elas não apresentam associação com a vasculopatia em seu curso. Os tratamentos descritos na literatura não apresentam resultados reproduzíveis. Relata-se caso de paciente de 42 anos, com vasculopatia livedóide e boa resposta ao tratamento pioneiro com a carbamazepina. A droga foi instituída diante das discretas evidências de inflamação, da inconstância dos achados relacionados às teorias sugeridas, da forte sintomatologia dolorosa e dos recentes relatos da participação neural na coagulação, que levaram os autores a considerar a possibilidade de associação vasculoneural na patogênese dessa vasculopatia.

Canais de sódio; Coagulação sangüínea; Epinefrina; Vasculite


Etiopathogenesis of livedoid vasculopathy remains elusive, and this condition is still frequently designated as idiopathic or secondary to various disorders. While several etiologies have been proposed, neither are they always associated with the disease, nor do they necessarily include livedoid vasculopathy in their course. Moreover, treatments described in the literature do not present reproducible results. We present the case of a 42-year-old man with livedoid vasculopathy who presented a good response to treatment with carbamazepine, a previously unattempted approach. In view of the very scarce evidence for vascular inflammation, discrepancies in the proposed etiologies of this pathological state and the intense pain that is the hallmark symptom; and considering recent reports on the neural participation in coagulation processes, the authors here address the question of a potential association between the vascular and nervous systems in the etiology of this vasculopathy.

Blood coagulation; Epinephrine; Sodium channels; Vasculitis


CASO CLÍNICO

Vasculopatia livedóide: relato de caso com possível evidência de etiopatogenia neurovascular* * Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Antônio Pedro – Niterói (RJ), Brasil.

Livedoid vasculopathy: report of a case with evidence for a possible neurovascular etiopathogenesis

Neide Kalil-GasparI; Patricia Shu KurizkyII; Antônio Pedro A. GasparIII; Joelma Maria de OliveiraIV

IProfessora titular do Departamento de Dermatologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Hospital Universitário Antônio Pedro – Niterói (RJ), Brasil

IIEspecializanda em Dermatologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Hospital Universitário Antônio Pedro – Niterói (RJ), Brasil

IIIProfessor adjunto IV do Departamento de Dermatologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Hospital Universitário Antônio Pedro – Niterói (RJ), Brasil

IVEspecializanda em Dermatologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Hospital Universitário Antônio Pedro – Niterói (RJ), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Neide Kalil-Gaspar Rua Sousa Dias, 01 – Santa Rosa 24230-400 - Niterói - RJ Tel./Fax: (21) 2610-4337 / (21) 2611-9163 E-mail: neide2605@yahoo.com.br

RESUMO

A etiopatogênese da vasculopatia livedóide ainda hoje permanece indeterminada e, apesar de algumas etiologias aventadas, com freqüência elas não apresentam associação com a vasculopatia em seu curso. Os tratamentos descritos na literatura não apresentam resultados reproduzíveis. Relata-se caso de paciente de 42 anos, com vasculopatia livedóide e boa resposta ao tratamento pioneiro com a carbamazepina. A droga foi instituída diante das discretas evidências de inflamação, da inconstância dos achados relacionados às teorias sugeridas, da forte sintomatologia dolorosa e dos recentes relatos da participação neural na coagulação, que levaram os autores a considerar a possibilidade de associação vasculoneural na patogênese dessa vasculopatia.

Palavras-chave: Canais de sódio; Coagulação sangüínea; Epinefrina; Vasculite

ABSTRACT

Etiopathogenesis of livedoid vasculopathy remains elusive, and this condition is still frequently designated as idiopathic or secondary to various disorders. While several etiologies have been proposed, neither are they always associated with the disease, nor do they necessarily include livedoid vasculopathy in their course. Moreover, treatments described in the literature do not present reproducible results. We present the case of a 42-year-old man with livedoid vasculopathy who presented a good response to treatment with carbamazepine, a previously unattempted approach. In view of the very scarce evidence for vascular inflammation, discrepancies in the proposed etiologies of this pathological state and the intense pain that is the hallmark symptom; and considering recent reports on the neural participation in coagulation processes, the authors here address the question of a potential association between the vascular and nervous systems in the etiology of this vasculopathy.

Keywords: Blood coagulation; Epinephrine; Sodium channels; Vasculitis

INTRODUÇÃO

A vasculopatia livedóide constitui quadro relativamente raro, primeiramente descrito por Millian, em 1929, e também conhecido como atrofia branca e vasculite livedóide. Caracteriza-se por lesões crônicas e intensamente dolorosas, com ulcerações, localizadas nas extremidades distais dos membros inferiores, que, ao cicatrizarem, deixam áreas hiperpigmentadas associadas a cicatrizes atróficas porcelânicas. A histopatologia revela microtromboses e hialinização subendotelial da íntima dos vasos da derme, sem vasculite associada. A patogênese precisa do quadro ainda permanece obscura, redundando em esquemas terapêuticos variados, na maioria das vezes de resultados insatisfatórios.1,2

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, de 42 anos, branco, referindo lesões associadas a dor intensa na região inferior das pernas há aproximadamente três anos. Relatava tratamentos prévios com vários pulsos de antibióticos e corticóides tópicos, sob diagnósticos de erisipela e eczema de contato, sem melhora. O exame dermatológico evidenciava lesões purpúricas, algumas mostrando pequenas vesículas e úlceras, associadas a áreas atróficas e esbranquiçadas circundadas por halo purpúrico, distribuídas no dorso dos pés e região maleolar interna bilateral (Figura 1). O exame histopatológico confirmou o diagnóstico de vasculopatia livedóide. Investigação laboratorial (hemograma, coagulograma, hepatograma, VHS, FAN, proteína C reativa, fator reumatóide, dosagem de complemento) não mostrou alterações, exceto pela positividade para anticorpo antifosfolípide. Realizado tratamento com ácido acetilsalicílico 300mg/dia e pentoxifilina 1.200mg/dia por três meses sem melhora da dor e sempre com aparecimento de novas úlceras. Optou-se então por iniciar carbamazepina 200mg/dia, observando-se melhora da dor com 15 dias e cicatrização completa das lesões com 35 dias de uso da medicação (Figura 2). O paciente manteve o tratamento por mais 40 dias, apresentando-se sem lesões há seis meses.



DISCUSSÃO

Investigações recentes apóiam a associação de coagulação alterada na patogênese da vasculopatia livedóide.3 Estudos já demonstraram a presença de disfunção da atividade plaquetária, níveis elevados do fibrinopeptídeo A e de inibidor do ativador do plasminogênio, bem como liberação defeituosa do ativador do plasminogênio tecidual (t-PA) e diminuição acentuada da expressão nas células endoteliais da trombomodulina, uma proteína antitrombótica.4 Entretanto, tratamentos com anticoagulantes e antiagregantes plaquetários nem sempre são eficazes. Calamia et al.4 relacionaram esse fato à associação de outros mecanismos que estimulariam a trombose, como fatores imunológicos ou outros fatores locais que iniciariam e perpetuariam o processo apesar do controle da trombose.

Há evidências crescentes de que a inervação cutânea é capaz de modular uma variedade de fenômenos cutâneos agudos e crônicos, interagindo com as células da pele e seus componentes imunes.5 A discreta participação inflamatória, a inconstância de achados relativos a outros processos orgânicos condicionantes e a intensa sintomatologia dolorosa nos levaram a considerar uma possível disfunção neuroarterial capilar na patogênese do quadro.

A associação da vasculopatia livedóide com quadros neurológicos, como mononeurite múltipla, já foi relatada.6 Lesões semelhantes à vasculopatia livedóide associadas a lúpus eritematoso sistêmico (LES) já foram observadas, constatando-se que os pacientes com esse tipo de lesão cutânea apresentam maior probabilidade de acometimento do sistema nervoso central. A raridade dessas mesmas lesões nos pacientes com quadro de nefrite grave — grupo caracterizado pela alta incidência do teste da banda lúpica positivo, hipocomplementenemia marcante, altos níveis de anticorpos antiDNA e depósitos de complexos imunes nos tecidos renais — levanta dúvidas quanto ao papel dos complexos imunes circulantes na patogênese da atrofia branca no LES.7

A hipótese da participação neural baseia-se também em recentes investigações que valorizam a participação adrenovascular no processo da coagulação. Coleman8 observou que o sistema nervoso simpático age direta ou indiretamente na liberação do fator de von Willebrand (vWF) pelo endotélio vascular, dessa forma tendo papel importante também na determinação da atividade e meia-vida do fator VIII (FVIII), além de determinar vasoconstricção. A infusão de adrenalina induz o recrutamento rápido de plaquetas e ativação do fator VIII do baço.9 FVIII, vWF e t-PA são armazenados nos corpúsculos de Weibel Palade das células endoteliais.10 Este último, porém, também pode ser encontrado nas vesículas armazenadoras de catecolaminas, nos terminais axônicos simpáticos das paredes vasculares e nas células neuroendócrinas derivadas da pituitária, sugerindo possível conexão entre o sistema nervoso simpático e o sistema fibrinolítico.10

A carbamazepina foi escolhida por apresentar efeitos capazes de inibir a participação neural no funcionamento vascular, visando ao controle dos músculos vasculares lisos,11 que obedecem a mediadores secretados pelos nervos simpáticos e endotélio vascular, bem como pelos hormônios circulantes. Sua ação supressora no sistema adrenérgico vem sendo descrita desde 1977, e, recentemente, foi observada sua capacidade de atuar perifericamente no controle da dor, através da supressão sustentada dos disparos neuronais de alta freqüência pelo bloqueio dos canais de sódio nos neurônios sensoriais primários.12 O resultado obtido sugere que essa droga possa ser considerada tratamento eficaz no controle da dor e das lesões cutâneas da vasculopatia livedóide, embora ainda sejam necessários estudos comparativos com casuística mais ampla.

Com base nas recentes evidências encontradas na literatura da participação neural no processo de coagulação e no resultado obtido a partir do uso da carbamazepina, os autores sugerem um novo enfoque na patogênese da vasculite livedóide, reforçando possível participação neural.

Conflito de interesse : Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

Recebido em 01.12.2006.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 03.04.2007.

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  • Endereço para correspondência:
    Neide Kalil-Gaspar
    Rua Sousa Dias, 01 – Santa Rosa
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    Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Antônio Pedro – Niterói (RJ), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      03 Abr 2007
    • Recebido
      01 Dez 2006
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