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Reação reversa atípica em paciente com hanseníase dimorfa co-infectado pelo HIV

Atypical reversal reaction in a borderline leprosy patient co-infected with HIV

Resumos

A infecção pelo HIV não altera a história natural da hanseníase. Observa-se maior incidência de estados reacionais nos pacientes co-infectados, além de casos mais graves de neurite. Paciente soropositiva com hanseníase dimorfa tuberculóide manifestou reação reversa exuberante. Lesões cutâneas atípicas e raras surgiram após a introdução da terapia anti-retroviral que promoveu o início da recuperação imunológica com aumento de linfócitos T CD4+ e queda da carga viral. A restauração da imunidade celular nos pacientes soropositivos pode precipitar reações reversas, descritas recentemente como uma das manifestações da síndrome inflamatória de reconstituição imunológica associada à hanseníase.

Hanseníase dimorfa; HIV; Imunidade celular; Terapia anti-retroviral de alta atividade


HIV infection does not modify the natural course of leprosy. However, HIV co-infection seems to be associated with an increased rate of reactional states and more severe cases of neuritis. The authors describe a case of borderline tuberculoid leprosy in a HIV-positive patient who developed a marked reversal reaction. Atypical and rare skin manifestations, such as verrucous lesions and ulcers, appeared after highly active antiretroviral therapy, which resulted in increased CD4+ T-lymphocyte count and drop in viral load. The restoration of the cellular immunity in HIV-seropositive patients can trigger reversal reactions that are one of the manifestations of the immune reconstitution inflammatory syndrome. Only recently the syndrome has been associated with leprosy.

Antiretroviral therapy; highly active; HIV; Immunity, cellular; Leprosy, borderline


CASO CLÍNICO

Reação reversa atípica em paciente com hanseníase dimorfa co-infectado pelo HIV

Atypical reversal reaction in a borderline leprosy patient co-infected with HIV

Rafaela de Lima CarusoI; Renata Martins FernandesII; Márcio Soares SerraIII; Ricardo Barbosa LimaIV; Carlos José MartinsV

IMédica pós-graduanda do Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIMédica pós-graduanda do Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIIProfessor substituto do Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IVProfessor adjunto do Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

VProfessor adjunto e responsável pelo Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Endereço para correspondência/Mailing Address Endereço para correspondência /Mailing Address Rafaela de Lima Caruso Rua: Xavier da Silveira, 55/601, Copacabana. 22061 010 - Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2523-8836 E-mail: rafaelacaruso@yahoo.com.br

RESUMO

A infecção pelo HIV não altera a história natural da hanseníase. Observa-se maior incidência de estados reacionais nos pacientes co-infectados, além de casos mais graves de neurite. Paciente soropositiva com hanseníase dimorfa tuberculóide manifestou reação reversa exuberante. Lesões cutâneas atípicas e raras surgiram após a introdução da terapia anti-retroviral que promoveu o início da recuperação imunológica com aumento de linfócitos T CD4+ e queda da carga viral. A restauração da imunidade celular nos pacientes soropositivos pode precipitar reações reversas, descritas recentemente como uma das manifestações da síndrome inflamatória de reconstituição imunológica associada à hanseníase.

Palavras-chave: Hanseníase dimorfa; HIV; Imunidade celular; Terapia anti-retroviral de alta atividade

ABSTRACT

HIV infection does not modify the natural course of leprosy. However, HIV co-infection seems to be associated with an increased rate of reactional states and more severe cases of neuritis. The authors describe a case of borderline tuberculoid leprosy in a HIV-positive patient who developed a marked reversal reaction. Atypical and rare skin manifestations, such as verrucous lesions and ulcers, appeared after highly active antiretroviral therapy, which resulted in increased CD4+ T-lymphocyte count and drop in viral load. The restoration of the cellular immunity in HIV-seropositive patients can trigger reversal reactions that are one of the manifestations of the immune reconstitution inflammatory syndrome. Only recently the syndrome has been associated with leprosy.

Keywords: Antiretroviral therapy, highly active ; HIV; Immunity, cellular; Leprosy, borderline

INTRODUÇÃO

A hanseníase manifesta-se clinicamente de acordo com a resposta imunocelular do hospedeiro. Devido ao fato de o vírus HIV comprometer linfócitos T CD4+, esperava-se que pacientes portadores de HIV/AIDS, infectados pelo Mycobacterium leprae, apresentassem a forma virchowiana da hanseníase ou evoluíssem rapidamente da forma tuberculóide para a forma lepromatosa à medida que a infecção pelo HIV-1 progredisse. Entretanto, estudos recentes evidenciaram que a superposição dessas entidades não altera a evolução clínica, nem as prevalências de ambas as doenças.1-5

Ustianowski et al. notaram que, apesar da baixa contagem de linfócitos T CD4+ no sangue periférico, os pacientes co-infectados pelo HIV possuem resposta imunológica preservada ao bacilo no sítio da doença.2 Sampaio et al. demonstraram que biópsias de lesões de pacientes dimorfos tuberculóides co-infectados apresentam granulomas bem formados contendo número normal de linfócitos T CD4+, contrastando com os granulomas encontrados em outras micobacterioses como a tuberculose. Nesse mesmo estudo, observaram a expressão do HLA-DR por células dérmicas adjacentes ao granuloma evidenciando a produção local de INF-g ama. Além disso, a ausência de bactérias comprova a grande eficácia da imunidade local. Apesar de a coinfecção não interferir com o espectro tuberculóide lepromatoso da hanseníase, observam-se nesses pacientes casos mais graves de neurite e maior incidência de reações reversas.1,2

Blum et al. relatam que as reações reversas em geral acometem de 10 a 30% dos dimorfos tuberculóides, porém, eventualmente, ocorrem de maneira espontânea. Todavia, o quadro típico manifesta- se nos primeiros meses de tratamento da hanseníase, causando inflamação aguda das lesões cutâneas e dos nervos. Esse quadro reacional está relacionado com o aumento da imunidade celular, sendo considerado manifestação de hipersensibilidade tardia.6

Pereira et al. em trabalho recente descreveram as reações reversas como uma das manifestações da síndrome inflamatória de reconstituição imunológica (IRIS).3 A introdução da poliquimioterapia para o tratamento da hanseníase e o uso da terapia anti-retroviral (TARV) nos co-infectados proporcionam melhora da resposta imunológica podendo causar estados reacionais atípicos. Lesões incomuns podem compor o quadro clínico, evidenciando que o aumento da imunidade relacionada ao uso de TARV pode causar uma variedade de manifestações clínicas inusitadas.2,7

RELATO DE CASO

Paciente de 28 anos de idade, do sexo feminino, melanodérmica, natural e procedente da cidade do Rio de Janeiro, RJ, há dois meses observou lesões que aumentaram de tamanho e número no antebraço direito, com posterior disseminação por todo o corpo. Queixava-se de alteração de sensibilidade no local das lesões, além de parestesia de membros inferiores. Há quatro anos soropositiva para HIV, em uso de TARV com lapinavir/ritonavir, zidovudina e lamivudina (LPV/r, AZT e 3TC) há seis meses.

Ao exame dermatológico constatou-se presença de pápulas e placas eritêmato-infiltradas, algumas descamativas, disseminadas em todo o tegumento. O teste de sensibilidade realizado revelou hipoestesia e anestesia em algumas lesões.

O exame histopatológico de lesão cutânea revelou infiltrado inflamatório granulomatoso com disposição focal na derme superior e inferior, associado a comprometimento de filete nervoso caracterizando neurite (Figura 1). A pesquisa de Baar e a baciloscopia foram negativas.


Os dados clínicos e histopatológicos confirmaram o diagnóstico de hanseníase dimorfa tuberculóide. Foi introduzido o esquema multibacilar (clofazimina, rifampicina, dapsona) adotando-se como critério o número de lesões, preconizado pelo Ministério da Saúde (mais de cinco lesões - multibacilar). Após dois meses de tratamento a paciente evoluiu com exacerbação súbita das lesões. Ao exame dermatológico observaram-se lesões verrucosas principalmente na face, algumas semelhantes a cornos cutâneos (Figuras 2A e 2B), ulceração na hemiface direita, placas eritêmato-infiltradas descamativas no tronco e membros, além de extensa ulceração indolor no dorso (Figura 3).




Atualmente sem alterações no hemograma e bioquímica sangüínea. O VDRL era negativo, e as dosagens de linfócitos T CD4+ e CD8+ foram de 57 células/mm3 e 571 células/mm3, respectivamente. A relação CD4/CD8 era de 0,1, e a carga viral menor que 80 cópias. A cultura de material colhido da lesão ulcerada não evidenciou crescimento de fungos ou bactérias. Foi realizada biópsia da lesão verrucosa na face e da lesão ulcerada no dorso. O exame histopatológico revelou intenso infiltrado inflamatório granulomatoso com presença de linfócitos, células epitelióides e numerosas células gigantes (Figura 4), hiperplasia epidérmica e áreas de necrose. Excluídos os diagnósticos diferenciais, confirmamos a hipótese de reação reversa atípica como manifestação IRIS.


Ao esquema multibacilar foi associada prednisona na dose de 60mg/dia. Observou-se regressão parcial das lesões após um mês de tratamento. Após seis meses houve resolução completa do quadro clínico restando apenas atrofia e hipercromia residuais (Figura 5). A dose do corticóide oral foi reduzida gradativamente até a retirada completa, e a paciente continua em acompanhamento, permanecendo com as lesões residuais.


DISCUSSÃO

A IRIS no paciente HIV+ é conseqüência da resposta imune a um patógeno específico devido à introdução da TRAV. À medida que a resposta inflamatória do hospedeiro é ativada, infecções subclínicas são desmascaradas ou infecções oportunistas são exacerbadas. 2,4,8-10

Segundo Goebel a TARV melhora a função imunológica, e quanto mais rápido isso ocorrer mais brevemente se manifestará a síndrome inflamatória.10 O tempo entre a introdução da TARV e o início da síndrome varia, segundo a literatura, de poucas semanas a quatro anos. A IRIS pode ocorrer associada a infecções bacterianas, virais, fúngicas e parasitárias. Há relatos de associações com sarcoma de Kaposi, carcinoma anal, tireoidites, lúpus eritematoso sistêmico e sarcoidose.10 Embora as micobacterioses sejam as infecções mais comumente associadas à IRIS,2,8 a síndrome só foi correlacionada à hanseníase em 2003.3-5,9

A apresentação da hanseníase como manifestação de reconstituição imunológica sugere que a imunodepressão associada ao HIV tenha mascarado a manifestação da doença antes da introdução do antiretroviral, 4 o que promoveu marcante crescimento de linfócitos T CD4+ e queda da carga viral, considerada talvez o parâmetro mais indicativo dessa síndrome.8

No caso em questão, a paciente possuía CD4 + de 2 células/mm3 e carga viral de 2.200.000 cópias antes do tratamento com anti-retrovirais. Quando manifestou a hanseníase e a reação reversa, o CD4+ era de 57 células/mm3, e a carga viral, menor que 80 cópias, o que sustentou o diagnóstico de IRIS.8

A introdução do anti-retroviral foi o "gatilho imunológico" que permitiu a manifestação da hanseníase, assim como da reação reversa exuberante com manifestações atípicas e raras, como verrucosidades e úlceras. Estas últimas foram originalmente descritas como manifestação da síndrome por Couppié et al.9

No caso relatado os diagnósticos diferenciais foram paracoccidioidomicose, histoplasmose, leishmaniose e micobacteriose atípica. É importante ressaltar a necessidade de se excluírem diagnósticos diferenciais já que em pacientes imunodeprimidos, co-infectados pelo vírus HIV, é possível a modificação da apresentação clínica de várias doenças.

O HIV não implica maior risco para desenvolvimento de hanseníase, e estudos mostram que ele não altera o curso clínico da doença nem a resposta a seu tratamento.2,4,5 Portanto, pacientes co-infectados devem continuar sendo tratados com o esquema multibacilar padronizado pelo Ministério da Saúde, que, associado à TARV, tem-se mostrado eficiente.2,5 Já o IRIS depende de sua extensão e sintomatologia. Em muitos casos ela é autolimitada, e apenas o suporte clínico é suficiente. Nos casos graves, os antiinflamatórios e corticóides orais estão indicados.10

A corticoterapia oral foi de extrema importância para o controle e resolução da síndrome. Apesar de serem pacientes imunodeprimidos, nos casos de reação reversa os co-infectados podem e devem ser tratados com corticóide oral, já que esse continua sendo o tratamento de escolha preconizado na literatura. 4,6-10 q

Recebido em 14.11.2006.

Aprovado pelo Conselho Editorial e aceito para publicação em 14.11.2007.

Suporte financeiro: Nenhum / Financial funding: None

  • 1. Sampaio EP, Caneshi JR, Nery JA, Duppre NC, Pereira GM, Vieira LM, et al. Cellular immune response to Mycobacterium Leprae in human immunodeficiency virus -infected individuals. Infect Immun.1995;63:1848-54.
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  • 10. Goebel FD. Immune reconstitution inflammatory syndrome (IRIS)-another new disease entity following treatment initiation of HIV infection. Infection. 2005;33:43-5.
  • Endereço para correspondência
    /Mailing Address
    Rafaela de Lima Caruso
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    22061 010 - Rio de Janeiro – RJ
    Tel.: (21) 2523-8836
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    Trabalho realizado no Ambulatório do Departamento de Dermatologia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
    Conflito de interesse: Nenhum / Conflict of interest: None
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      14 Nov 2007
    • Recebido
      14 Nov 2006
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