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Aplicação de substituto de pele em oncologia cutânea: estudo experimental com derme acelular e ceratinócitos cultivados

Application of skin substitutes in skin oncology: experimental study using acellular dermis and cultured keratinocytes

Resumos

FUNDAMENTOS: As neoplasias malignas da pele de grandes dimensões apresentam dificuldades de reconstrução após a excisão. OBJETIVO: O objetivo deste estudo foi avaliar a exeqüibilidade de uma nova proposta de cobertura para feridas cirúrgicas criadas após a ressecção de grandes tumores cutâneos, a combinação da derme acelular humana com epitélio autólogo cultivado. MÉTODOS: A aplicação dos substitutos de pele foi feita em quatro pacientes com área de implante variando de 33 a 120 cm2. Além da observação dos resultados clínicos, realizou-se estudo morfológico para avaliação da integração dos implantes. RESULTADOS: Ceratinócitos autólogos cultivados foram enxertados em dois pacientes e não demonstraram integração. A derme acelular foi aplicada em quatro pacientes, sendo que em um deles foram feitas duas aplicações. Dos cinco implantes de derme acelular realizados, dois não apresentaram integração, em dois a integração foi de 70%, e de 50% no último. CONCLUSÃO: A cobertura imediata e definitiva de defeitos cirúrgicos através da aplicação de derme acelular humana combinada com epitélio autólogo cultivado é exeqüível. Em oncologia cutânea apenas em situações especiais o uso de substitutos de pele pode ser conveniente no sentido de evitar reconstruções mais complexas.

Neoplasias cutâneas; Pele artificial; Técnicas de cultura de tecidos; Transplante de pele


BACKGROUND: Reconstruction difficulties may arise after excision of large malignant skin neoplasms.a OBJECTIVE: The objective of this study was to assess the feasibility of a new coverage for surgical wounds following resection of large skin tumors: a combination of human acellular dermis with cultured autologous epithelium. METHODS: The skin substitute was implanted in four patients, one of them received two implants and the area ranged from 33 to 120 cm2. Clinical results and morphologic studies were assessed as to implant integration. RESULTS: Cultured autologous epithelium was grafted in two patients and no integration was observed. The acellular dermis was applied to four patients. Out of five acellular dermis implants, two did not present integration, two presented 70% integration and the remaining, 50% integration. CONCLUSION: The immediate and definite coverage of surgical defects by means of application of human acellular dermis combined with cultured autologous epithelium is feasible. In skin oncology, the use of skin substitutes might be convenient only in special situations to avoid more complex reconstructions.

Skin artificial; Skin neoplasms; Skin transplantation; Tissue culture techniques


INVESTIGAÇÃO CLÍNICA, EPIDEMIOLÓGICA, LABORATORIAL E TERAPÊUTICA

Aplicação de substituto de pele em oncologia cutânea: estudo experimental com derme acelular e ceratinócitos cultivados* * Trabalho promovido pelo Curso de Pós-Graduação em Dermatologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e realizado no Hospital Geral de Bonsucesso, Hospital de Força Aérea do Galeão e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Conflito de interesse / Conflict of interest: Nenhum Suporte financeiro / Financial funding: Nenhum

Application of skin substitutes in skin oncology: experimental study using acellular dermis and cultured keratinocytes

José Anselmo Lofêgo FilhoI; Bernardo Miguel de Oliveira PascarelliII; Paulo Roberto Cotrim de SouzaIII; Luciana França OliveiraIV; Marcos Aurélio Leiros da SilvaV; Christina Maeda TakiyaVI; Radovan BorojevicVII

IPreceptor de Cirurgia Dermatológica do Hospital Geral de Bonsucesso, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Mestre em Dermatologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIMestrando do Curso de Pós-Graduação em Ciências Morfológicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIIChefe da Clínica Dermatológica do Hospital Geral de Bonsucesso – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IVDermatologista do Hospital Naval Marcílio Dias – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

VChefe do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital de Força Aérea do Galeão – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

VIProfessora adjunta do Departamento de Histologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-doutorado em Medicina no Albert Einstein College of Medicine, Nova York, EUA

VIIProfessor titular do Departamento de Histologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Endereço para correspondência/Mailing Address Endereço para correspondência/Mailing Address: José Anselmo Lofêgo Filho Est. dos Três Rios 200 Bl 1/201 Jacarepaguá, 22755 002 Rio de Janeiro - RJ Tel./Fax:(21)2456-1909 E-mail: anselmolofego@terra.com.br

RESUMO

FUNDAMENTOS: As neoplasias malignas da pele de grandes dimensões apresentam dificuldades de reconstrução após a excisão.

OBJETIVO: O objetivo deste estudo foi avaliar a exeqüibilidade de uma nova proposta de cobertura para feridas cirúrgicas criadas após a ressecção de grandes tumores cutâneos, a combinação da derme acelular humana com epitélio autólogo cultivado.

MÉTODOS: A aplicação dos substitutos de pele foi feita em quatro pacientes com área de implante variando de 33 a 120 cm2. Além da observação dos resultados clínicos, realizou-se estudo morfológico para avaliação da integração dos implantes.

RESULTADOS: Ceratinócitos autólogos cultivados foram enxertados em dois pacientes e não demonstraram integração. A derme acelular foi aplicada em quatro pacientes, sendo que em um deles foram feitas duas aplicações. Dos cinco implantes de derme acelular realizados, dois não apresentaram integração, em dois a integração foi de 70%, e de 50% no último.

CONCLUSÃO: A cobertura imediata e definitiva de defeitos cirúrgicos através da aplicação de derme acelular humana combinada com epitélio autólogo cultivado é exeqüível. Em oncologia cutânea apenas em situações especiais o uso de substitutos de pele pode ser conveniente no sentido de evitar reconstruções mais complexas.

Palavras-chave: Neoplasias cutâneas; Pele artificial; Técnicas de cultura de tecidos; Transplante de pele

ABSTRACT

BACKGROUND: Reconstruction difficulties may arise after excision of large malignant skin neoplasms.a

OBJECTIVE: The objective of this study was to assess the feasibility of a new coverage for surgical wounds following resection of large skin tumors: a combination of human acellular dermis with cultured autologous epithelium.

METHODS: The skin substitute was implanted in four patients, one of them received two implants and the area ranged from 33 to 120 cm2. Clinical results and morphologic studies were assessed as to implant integration.

RESULTS: Cultured autologous epithelium was grafted in two patients and no integration was observed. The acellular dermis was applied to four patients. Out of five acellular dermis implants, two did not present integration, two presented 70% integration and the remaining, 50% integration.

CONCLUSION: The immediate and definite coverage of surgical defects by means of application of human acellular dermis combined with cultured autologous epithelium is feasible. In skin oncology, the use of skin substitutes might be convenient only in special situations to avoid more complex reconstructions.

Keywords: Skin artificial; Skin neoplasms; Skin transplantation ; Tissue culture techniques

INTRODUÇÃO

O coeficiente de incidência dos carcinomas basocelular e espinocelular, a despeito de todas as campanhas preventivas realizadas nos últimos anos, tem aumentado.1,2 A reconstrução desses tumores imediatamente após a ressecção, pela simples aproximação das bordas da ferida - fechamento primário - é certamente o método preferido, porém nem sempre possível. Às vezes, além do tamanho, a localização anatômica dificulta o fechamento, mesmo por meio de retalhos ou enxertos. Observam-se também situações em que a presença de co-morbidades torna-se contra-indicação relativa à realização de cirurgia mais extensa.

As pesquisas na área da bioengenharia tecidual aplicada à dermatologia têm como objetivo principal fabricar um equivalente de pele que a possa substituir à altura. Nesse sentido, a combinação de células vivas com matriz extracelular é muito apropriada quando se busca simular tecido de estrutura e função tão complexas quanto a pele.3 A presença de qualquer componente biológico qualifica o material como substituto de pele; por sua vez, produtos totalmente sintéticos disponíveis comercialmente são categorizados como curativos.4

As primeiras experiências bem-sucedidas com cultivo de ceratinócitos aconteceram há mais de 25 anos. Em 1979, Green e cols.,5 demonstraram que grande quantidade de epitélio poderia ser produzida a partir de pequena biópsia de pele, em curto espaço de tempo. As pesquisas envolvendo a aplicabilidade clínica dos ceratinócitos autólogos cultivados (QAC), sobretudo em pacientes queimados, demonstraram resultados heterogêneos. Quando ceratinócitos cultivados são enxertados isoladamente, observam-se dificuldades de manipulação e integração, sendo mais apropriado restringir a utilização da epiderme isolada a áreas cruentas que contenham derme na profundidade.6

Na fabricação de substituto de pele, o tipo de análogo dérmico incorporado ao composto pode influenciar a subseqüente funcionalidade do produto. Na busca de um componente dérmico para melhor ambientação dos ceratinócitos no substituto, a derme humana mostrou-se a mais eficaz. De acordo com o método usado em seu processamento, alcança-se a acelularização, com preservação da matriz e das proteínas da membrana basal. Assim, a adesão e proliferação dos ceratinócitos tornam-se facilitadas, e a interface de padrão papilar com o substrato dérmico é mantida.7

Os substitutos de pele assumem papel relevante na redução da morbimortalidade dos grandes queimados. No entanto, seu uso vem sendo estendido a outras enfermidades antes não aventadas como condições essenciais a essa aplicação, como as úlceras de perna,8 a epidermólise bolhosa,9 o vitiligo10 e os defeitos cirúrgicos oriundos da ressecção de neoplasias cutâneas.11-15

O uso de derme acelular humana (DAH) associada aos QAC é objeto de pesquisa em vítimas de queimaduras. Entretanto, até o presente momento, nenhuma publicação trata da aplicação desses substitutos em oncologia cutânea. O objetivo deste trabalho foi avaliar a exeqüibilidade da combinação da DAH com QAC na cobertura de feridas cirúrgicas criadas após a ressecção de tumores cutâneos, analisando seu desempenho diante das peculiaridades próprias dessa condição clínica. Além da observação dos resultados clínicos, realizou-se estudo morfológico para avaliação da integração dos implantes.

MATERIAIS E MÉTODOS

Foram selecionados para o estudo pacientes portadores de neoplasias cutâneas cujos defeitos cirúrgicos a serem restaurados fossem de difícil reconstrução e que, caso cicatrizassem por segunda intenção, não trouxessem prejuízo aos mesmos. Fazia parte dos critérios de exclusão a presença de tumores localizados na face ou tumores infiltrativos com invasão de planos profundos e de qualquer disfunção que viesse a prejudicar a cicatrização.

A aplicação do substituto foi programada para ser feita em duas etapas. A primeira foi constituída de implante da DAH sobre o leito da ferida cirúrgica, e a segunda, de enxertia de QAC, cinco dias após a primeira. O curativo primário foi realizado com material poroso e não aderente (Adaptic®/Jonhson's), que permite a drenagem do exudato da ferida. Por fim, a área tratada foi imobilizada por curativo compressivo. A primeira troca dos curativos foi inicialmente programada para ocorrer no quinto dia após cada etapa cirúrgica e aumentar em freqüência à medida que barreira mais forte se desenvolvesse no local de implantação dos substitutos. O acompanhamento dos pacientes foi semanal até a completa cicatrização das feridas. A cada consulta pós-operatória a ferida cirúrgica foi fotografada e submetida a limpeza e curativo.

Preparo de derme acelular humana

Utilizou-se pele humana normal, obtida de doadores de órgãos, seguindo todo o protocolo do programa Rio Transplante. Sua retirada aconteceu em centro cirúrgico, sob condições assépticas, usando o dermátomo de Paget. Ao chegar ao Banco de Células do Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a pele foi lavada (de três a quatro vezes) com solução tampão fosfatada (PBS), adicionada de ciprofloxacina 5µg/ml e anfotericina 1µg/ml e incubada em glicerol 50% em PBS durante quatro horas, à temperatura ambiente. Posteriormente, imersa em glicerol 85% em PBS durante quatro horas, à temperatura ambiente, sendo o mesmo procedimento repetido com glicerol 98% em PBS durante 40 horas. Na seqüência, foi submetida a processo de secagem, sendo removido todo o excesso do glicerol, e embalada em grau cirúrgico para ser esterilizada em óxido de etileno. Posteriormente, a pele sofreu processo de reidratação em PBS adicionado de ciprofloxacina 5Ìg/ml e anfotericina 1µg/ml durante 48 horas a 37ºC e foi incubada em cloreto de sódio 1M durante 6-8 horas a 37ºC. Finalmente, a epiderme pôde ser removida com auxílio de escova de dente estéril, e a derme acelularizada foi lavada e armazenada em PBS na geladeira, pronta para uso clínico (Figura 1). Esse preparo de derme acelular, a partir de pele cadavérica fresca, segue o método descrito por Chakrabarty e cols. em 1999,14 com leves modificações.


Preparo do epitélio cultivado

De acordo com o protocolo de Green e cols.,5 coletou-se biópsia de pele de aproximadamente 1-2cm2 dos pacientes, cerca de três semanas antes da data provável da cirurgia. Chegando ao laboratório, o fragmento de pele passou por dissociação mecânica, separando derme e epiderme. A fração epidérmica foi cortada em fragmentos de 2 a 3mm2, passando para a etapa seguinte, de dissociação química pela tripsina 0,3% com EDTA 0,02% em solução salina balanceada. Acrescentou-se também ciprofloxacina e anfotericina, ficando o material incubado em geladeira a 4ºC, por período variável de 18 a 20 horas. Uma segunda dissociação foi realizada no dia seguinte por apenas 40 minutos, a 37ºC, em banho-maria com agitação orbital. Os ceratinócitos dissociados foram coletados, centrifugados, quantificados e plaqueados nas garrafas de cultivo, juntamente com células 3T3 irradiadas, servindo como camada alimentadora. Utilizou-se para cultivo o meio de Eagle modificado por Dulbecco (DMEM), contendo o meio F12 de HAM (3:1), suplementado com insulina (5µg/ml), L-glutamina (4mM/l), toxina colérica (10-10M), transferrina (5µg/ml), hidrocortisona (0,4µg/ml), T3 (Triiodotironina - 2x10-9 M), anfotericina B (1µg/ml) e ciprofloxacina (2µg/ml). Os ceratinócitos confluíram, ocupando, ao final do período de cultivo, toda a extensão da garrafa. A lâmina de ceratinócitos foi então descolada da garrafa, pelo uso da enzima dispase, sendo fixada sobre gaze não aderente (Adaptic®/Jonhson's) com clipes cirúrgicos (Ligaclip®/Ethicon ), estando pronta para ser aplicada (Figura 2).


RESULTADOS

A utilização do substituto foi realizada em quatro pacientes portadores de neoplasias cutâneas com idade variando de 40 a 69 anos, todos do sexo masculino. O tempo de evolução das lesões, do surgimento à data da cirurgia, variou de três a 22 anos. A área de ressecção, incluindo a margem de segurança, variou de 33 a 120cm2. Dois pacientes foram submetidos ao implante de DAH e, em seguida, de QAC em tempos distintos. Em um deles a DAH foi ampliada por expansor de enxerto antes de sua aplicação, assumindo a forma de malha. Os outros dois pacientes foram submetidos à aplicação de DAH em malha seguida de enxerto fino em malha em tempo único. Os enxertos foram extraídos com dermátomo de Paget da região anterior da coxa, que serviu de área doadora para ambos os pacientes.

Em resumo, três enxertos de QAC foram feitos em dois pacientes e não demonstraram integração. A derme acelular foi aplicada em quatro pacientes, tendo em um deles sido feitas duas aplicações. Dos cinco implantes de derme acelular realizados, dois não apresentaram integração. Dos outros três, a integração foi de 70% em dois pacientes e de apenas 50% no último. (Quadro 1)


Os defeitos cirúrgicos foram totalmente reparados, e o uso dos substitutos não trouxe conseqüências negativas ou graves aos pacientes. O tempo requerido para que se completasse a reepitelização foi longo, e o fechamento das feridas se processou de forma semelhante à cicatrização por segunda intenção, com média de 70 dias. O número de curativos com necessidade de supervisão médica também foi elevado, principalmente no primeiro mês após o implante.

Sob o ponto de vista cosmético, as alterações de cor e textura, se comparadas à pele nativa, foram inicialmente bastante evidentes. Naqueles pacientes que se mantiveram em acompanhamento por período mais prolongado, o remodelamento da cicatriz pôde ser observado, havendo melhora de seu aspecto cosmético. No entanto, a capacidade de distensão da área tratada manteve-se reduzida e com função de barreira prejudicada.

Análises morfológicas, realizadas dentro dos dois primeiros meses nas áreas em que ocorreu integração da derme acelular em malha sobreposta por enxerto fino em malha, revelaram trama colagênica mais frouxa com infiltrado inflamatório linfocitário focal e reconstituição do epitélio. Após quatro meses, o aspecto histológico da ferida ficou semelhante ao da pele normal, estando a trama colagênica uniforme e sem inflamação.

DISCUSSÃO

Realizou-se estudo em feridas cirúrgicas utilizando, inicialmente, forma de substituição cutânea considerada bem próxima da composição da pele normal, DAH sobreposta por QAC. Os dois substitutos são incorporados de modo definitivo ao tecido cicatricial. A função da derme acelular é basicamente regeneração dérmica. Por possuir pouco efeito de barreira, seu uso foi combinado com enxerto de epitélio autólogo cultivado.

A integração da derme acelular segue os mesmos princípios relativos à integração dos enxertos de pele. Por não conter plexo vascular funcionante, o tempo necessário a sua revascularização tende a ser mais lento se comparado ao do enxerto de pele natural. Essa deficiência pode contribuir para a não-integração do substituto, além de favorecer a ocorrência de infecção secundária da ferida.15 Quanto mais espessa a derme acelular implantada, maiores serão suas dificuldades de sofrer revascularização e, conseqüentemente, integração. A DAH aplicada no primeiro paciente desta pesquisa era notadamente espessa, podendo ser essa a razão da perda dos substitutos implantados. A partir daí, foi feita a opção pelo uso da derme em malha, já que nessa condição sua integração, bem como a nutrição dos enxertos sobrepostos, fica facilitada (Figura 3).


A DAH como substrato dérmico para enxertia de QAC já teve seu desempenho criteriosamente avaliado em estudos in vitro e experimentais também no Brasil.16, 17 Sua presença favorece a formação da junção dermoepidérmica, com diferenciação dos ceratinócitos e manutenção das estruturas anexiais. Buscando explicação para a baixa taxa de integração da DAH e perda completa dos enxertos de epiderme cultivada, os autores investigaram amostra da DAH estocada no Banco de Células. A análise estrutural através de microscopia eletrônica de varredura revelou perda das projeções de suas papilas (Figura 4). Essa perda das ondulações da superfície dérmica provavelmente foi determinada por escovação excessiva durante o processo de acelularização. Tal alteração justifica a nãointegração do epitélio cultivado nos dois pacientes que dele fizeram uso, mas não se relaciona com os baixos índices de integração da derme no sítio receptor.


A acelularização da derme pode ser conseguida através de vários protocolos. Dawson e cols.18 submeteram a pele a banho em glicerol a 85% por quatro semanas, seguido de outro em PBS a 37ºC por mais quatro semanas para torná-la acelular. A metodologia seguida por Ralston e cols.19 incluía glicerol a 98% por um mês, cloreto de sódio 1M por quatro dias e água destilada por mais um mês. O protocolo de acelularização seguido nesta pesquisa, semelhante ao seguido por Chakrabarty e cols.,14 foi mais curto que os anteriores e manteve a pele incubada em glicerol por apenas 48 horas. Na seqüência, ela era reidratada em PBS durante 48 horas a 37ºC e, posteriormente, incubada em cloreto de sódio a 1M durante oito horas a 37ºC, antes da remoção da epiderme. Uma vez finalizado o processamento da DAH, pequena amostra era corada pelo HE para confirmação da acelularização. Apesar de esse procedimento ser de rotina e funcionar como critério de segurança, o segmento analisado pode não corresponder de forma fidedigna ao que acontece no restante da derme.

O sucesso dos enxertos de ceratinócitos cultivados depende em parte da habilidade das células cultivadas no sentido da continuação indefinida de sua proliferação. A aplicação de QAC em estágio subconfluente pode resultar em fechamento mais rápido da ferida e em melhores percentuais de permanência do enxerto. Já em estágio confluente, o descolamento dos ceratinócitos da garrafa de cultivo pode ser feito sem desarranjo da morfologia epitelial, mas a densidade inibitória reduz o potencial de crescimento dos ceratinócitos.20 O fato de os ceratinócitos terem sido enxertados nesse estágio pode ter contribuído para sua não-permanência no sítio receptor (Figura 5).


O tempo necessário para a cultura dos ceratinócitos, que é de aproximadamente três semanas, é citado com freqüência na literatura como um dos inconvenientes do método. Em pacientes queimados, que necessitam de cobertura imediata, essa espera é sem dúvida fator limitante à utilização. Em oncologia cutânea, uma vez constatada a necessidade de uso do método, o período de cultivo pode, em geral, ser aguardado e até coincide com o tempo necessário para a obtenção dos exames pré-operatórios e do risco cirúrgico.

Ceratinócitos de doadores acima de 60 anos crescem mais lentamente, e a confluência pode chegar a não acontecer. Eles apresentam também sobrevida mais curta e menor resposta a mitógenos, características que tendem a persistir após enxertia sobre o leito da ferida.21 Essa condição acaba limitando a aplicabilidade de QAC em oncologia cutânea, já que a prevalência dos cânceres de pele tem aumento proporcional à idade.

Deixar de enxertar a epiderme cultivada, abandonando a proposta metodológica inicial, não foi considerada opção, mas necessidade. Diante dos maus resultados inicialmente obtidos, era de bom senso acompanhar a evolução de um substituto de cada vez, e não dos dois conjuntamente. Fez-se então a opção pela associação da DAH em malha com auto-enxerto fino em malha, em virtude dos bons resultados descritos na literatura sobre uso de análogos dérmicos sobrepostos por enxerto fino expandido.22-24 Novamente, nenhuma publicação tratando do uso dessa associação em feridas oriundas da ressecção de neoplasias cutâneas foi encontrada. Dessa forma, foi dado prosseguimento na avaliação clínica da derme acelular processada pelo Banco de Células do Rio de Janeiro, mas através de nova combinação. Só assim pôde-se caracterizar através de estudo morfológico a participação da DAH na cicatrização das feridas tratadas.

A fotomicrografia da ferida cirúrgica de um dos pacientes, no 50º dia após a aplicação da DAH em malha sobreposta por enxerto fino em malha, exibia infiltrado inflamatório linfocitário focal e células gigantes do tipo corpo estranho na derme reticular. Resposta granulomatosa nem sempre se correlaciona a resultados clínicos ruins, rejeição ou exposição prévia ao substituto, podendo representar apenas reação inata à presença de material estranho.25

A população testada foi insuficiente para qualquer análise estatística. A obtenção da amostra foi o primeiro problema encontrado neste estudo, já que o número de pacientes atendidos cujas dimensões dos tumores justificassem o emprego do substituto de pele, era ínfimo. Por prudência, os pacientes que apresentavam tumores na face foram excluídos. Essa decisão pode ser computada como mais um fator que restringiu a obtenção da amostra, uma vez que a face é o sítio de localização dos carcinomas basocelulares em aproximadamente 65% dos casos.26 Esses dados apontam para a necessidade de se reformular a maneira de obtenção da amostra. Uma pesquisa clínica com substitutos de pele, no campo da oncologia cutânea, que vise a resultados estatisticamente significativos em pouco tempo, deve ser multicêntrica ou, no mínimo, realizada em um grande hospital de referência em câncer.

O uso do substituto de pele pode passar a impressão de facilitar o manejo pós-operatório das feridas, o que não se mostrou verdadeiro. Apesar de diminuir a necessidade de mudança diária de curativos, os substitutos requerem meticulosa participação de equipe médica e trazem risco de lesão ao implante.

Estudar o uso da derme acelular associada a QAC e até mesmo da DAH em malha associado a enxerto fino em malha, em oncologia cutânea, foi relevante, pois a análise de seu comportamento e desempenho pôde ser feita diante das peculiaridades próprias dessa condição clínica. Diferentemente dos grandes queimados, esses pacientes apresentam teoricamente sítio receptor de implante menos propenso à infecção, porém sujeito à eliciação de resposta imunológica.

CONCLUSÃO

As técnicas de preparo da derme acelular humana e cultivo de ceratinócitos, apesar de requererem tempo, tecnologia e recursos financeiros, encontramse estabelecidas e foram passíveis de execução. A falha ocorrida no preparo da derme acelular foi atribuída basicamente à necessidade de aquisição de mais experiência prática. A técnica cirúrgica envolvida no implante dessa nova tecnologia se diferencia daquela tradicionalmente usada nas enxertias de pele. A manipulação da lâmina de QAC durante a enxertia deve ser extremamente delicada, visando à manutenção da integridade do epitélio. Apesar das particularidades existentes, o ato cirúrgico transcorreu de forma estável. Sendo assim, a cobertura imediata e definitiva de defeitos cirúrgicos através da aplicação de DAH combinada com QAC mostrou-se exeqüível.

A presença da derme acelular parece não interferir no remodelamento da cicatriz, que melhorou em aparência com o passar dos meses. A a capacidade de distensão e a função de barreira do tecido reparado mostraram-se reduzidas, ficando o local sujeito a lacerações após traumas moderados. Após quatro meses o aspecto histológico da ferida ficou semelhante ao da pele normal, estando a trama colagênica uniforme e sem inflamação.

Em oncologia cutânea, apenas em situações especiais o uso de substitutos de pele pode ser conveniente no sentido de reduzir morbidade, evitando reconstruções mais complexas. Seu emprego, atualmente ainda muito restrito, pode ser ampliado no futuro de acordo com o aprimoramento das técnicas e dos substitutos. q

Recebido em 29.03.2007.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 16.01.2008.

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  • Endereço para correspondência/Mailing Address:
    José Anselmo Lofêgo Filho
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    Trabalho promovido pelo Curso de Pós-Graduação em Dermatologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e realizado no Hospital Geral de Bonsucesso, Hospital de Força Aérea do Galeão e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
    Conflito de interesse / Conflict of interest: Nenhum
    Suporte financeiro / Financial funding: Nenhum
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008

    Histórico

    • Recebido
      29 Mar 2007
    • Aceito
      16 Jan 2008
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