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Dermatose por IgA linear induzida pela gestação

Linear IgA dermatosis induced by pregnancy

Resumos

A dermatose por IgA linear é doença bolhosa auto-imune subepidérmica rara, caracterizada pelo depósito linear de IgA na zona da membrana basal da epiderme. Nos relatos de gestação em pacientes com essa dermatose, nota-se sempre melhora do quadro clínico. Contrariando essas observações,é apresentado caso de dermatose por IgA linear induzida pela gestação, que demonstrou boa resposta terapêutica à dapsona e prednisona , sem complicações materno-fetais.

Dapsona; Dermatopatias vesiculobolhosas; Gravidez; Membrana basal


Linear IgA disease is a rare autoimmune subepidermal bullous disorder characterized by linear IgA deposits at the epidermal basement membrane zone. According to the literature, in patients who have linear IgA disease and become pregnant, the disease tends to improve. We report a case of linear IgA disease induced by pregnancy, successfully treated with dapsone and prednisone with no adverse effects observed in the patient and her newborns.

Basement membrane; Dapsone; Pregnancy; Skin diseases, vesiculobullous


CASO CLÍNICO

Dermatose por IgA linear induzida pela gestação* * Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Padre Bento de Guarulhos – Guarulhos (SP), Brasil. Conflito de interesse: Nenhum / Conflict of interest: None Suporte financeiro: Nenhum / Financial funding: None

Linear IgA dermatosis induced by pregnancy

Telma KanagusukoI; Valéria AokiII; Antonio José TebcheraniIII; Ana Paula Galli SanchezIV

IMédica residente do Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Padre Bento de Guarulhos – Guarulhos (SP), Brasil

IIProfessora doutora do Departamento de Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – São Paulo (SP), Brasil

IIIMestre em Patologia pela Escola Paulista de Medicina. Médico patologista do Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Padre Bento de Guarulhos – Guarulhos (SP), Brasil

IVMestra em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Médica dermatologista do Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Padre Bento de Guarulhos – Guarulhos (SP), Brasil

Endereço para correspondência/Mailing Address Endereço para correspondência/Mailing Address: Telma Kanagusuko Rua Pensilvânia, 940, Brooklin 04564 003 - São Paulo -SP Tel./Fax: (11) 5093-3645 (11) 6409-8209 E-mail: telma.k@ig.com.br

RESUMO

A dermatose por IgA linear é doença bolhosa auto-imune subepidérmica rara, caracterizada pelo depósito linear de IgA na zona da membrana basal da epiderme. Nos relatos de gestação em pacientes com essa dermatose, nota-se sempre melhora do quadro clínico. Contrariando essas observações,é apresentado caso de dermatose por IgA linear induzida pela gestação, que demonstrou boa resposta terapêutica à dapsona e prednisona , sem complicações materno-fetais.

Palavras-chave: Dapsona; Dermatopatias vesiculobolhosas; Gravidez; Membrana basal

ABSTRACT

Linear IgA disease is a rare autoimmune subepidermal bullous disorder characterized by linear IgA deposits at the epidermal basement membrane zone. According to the literature, in patients who have linear IgA disease and become pregnant, the disease tends to improve. We report a case of linear IgA disease induced by pregnancy, successfully treated with dapsone and prednisone with no adverse effects observed in the patient and her newborns.

Keywords: Basement membrane; Dapsone; Pregnancy; Skin diseases, vesiculobullous

INTRODUÇÃO

A dermatose por IgA linear (DAL) é doença bolhosa auto-imune rara, que se caracteriza pela formação de bolhas subepidérmicas e pelo depósito linear de IgA na zona da membrana basal (ZMB). Os principais alvos dos auto-anticorpos são os domínios extracelulares de 120kDa (LAD-1) e de 97kDa (LABD97) do BP 180.1

Há duas apresentações clínicas: da infância (dermatose bolhosa crônica da infância) e da idade adulta.2 Segundo a literatura, pacientes com DAL que engravidaram evoluíram com melhora do quadro.3 Relata-se caso inédito de DAL desencadeado por gestação, que apresentou boa resposta terapêutica à prednisona e dapsona, sem complicações maternofetais.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 17 anos, parda. Apresentava, em outubro de 2001, vesículas e bolhas na periferia de placas eritêmato-edematosas, além de máculas acastanhadas residuais e áreas com crostas hemáticas no abdômen (Figura 1) e membros. Encontrava-se no segundo mês de gestação. Negava uso de medicações ou outras doenças associadas. Realizada biópsia de lesão bolhosa, revelou clivagem subepidérmica com necrose de papila dérmica, intenso infiltrado neutrofílico e alguns eosinófilos na derme (Figura 2). A imunofluorescência direta (IFD) mostrou depósito linear de IgA (Figura 3) e depósito granuloso e focal discreto de C3 na ZMB. A imunofluorescência indireta (IFI) foi negativa. Confirmado o diagnóstico de DAL, foi introduzida corticoterapia sistêmica (prednisona 40mg/dia), com melhora significativa das lesões. O tratamento foi suspenso pela própria paciente no sexto mês de gestação. Apesar de a criança ter nascido prematura (no sétimo mês), não apresentou outras intercorrências, recebendo alta no terceiro dia de vida. No pós-parto, a paciente evoluiu com melhora progressiva e espontânea das lesões. Engravidou novamente em agosto de 2002 e em dezembro de 2005, sempre coincidindo com o reaparecimento e disseminação das bolhas. A partir da segunda gestação foi usada dapsona (100mg/dia) com boa resposta. Nos intervalos entre as gestações ocorriam melhora paulatina e desaparecimento das lesões, possibilitando a suspensão da medicação sistêmica. Na segunda e terceira gestações, os bebês nasceram a termo, sem complicações materno-fetais. Atualmente, a paciente encontra-se sem lesões. Seus três filhos são saudáveis, com desenvolvimento adequado para a idade.




DISCUSSÃO

A DAL, descrita em 1901 por Bowen, é doença bolhosa auto-imune subepidérmica rara, caracterizada pela presença de depósitos lineares e homogêneos de IgA, e, ocasionalmente, de IgG, IgM e C3 na ZMB da epiderme.4 Há duas variantes clínicas: a da infância e do adulto. A primeira é mais comum entre os dois e cinco anos de idade, acomete preferencialmente a região perineal, o abdômen inferior e a região perioral, sendo raro o envolvimento de mucosas. Na forma do adulto o quadro clínico é heterogêneo, podendo assemelhar-se ao penfigóide bolhoso ou à dermatite herpetiforme, sendo o acometimento mucoso mais comum.2

As diversas apresentações clínicas refletem a presença de diferentes auto-anticorpos envolvidos na imunopatogênese da doença. Os principais antígenosalvo são os ectodomínos de 120kDa (LAD-1) e 97kDa (LABD97) do BP 180 (colágeno XVII),1 sendo também descritos casos com auto-anticorpos contra colágeno VII, BP 230, a6b4 integrina, laminina e outras proteínas. 2,4 Os baixos títulos de IgA circulante dificultam a pesquisa desses antígenos, sendo apenas 30% das IFI positivas em adultos.4

O exame histopatológico da DAL revela clivagem subepidérmica com infiltrado inflamatório rico em polimorfonucleares, sobretudo neutrófilos. Microabscessos nas papilas dérmicas podem ser encontrados.4 É fundamental a realização da IFD para a confirmação do diagnóstico, já que outras dermatoses bolhosas auto-imunes podem cursar com esses achados histológicos. Neste caso, em função da gestação, esse exame foi decisivo, pois, além de ratificar a DAL, possibilitou a exclusão do penfigóide gestacional (PG), o principal diagnóstico diferencial.

A propósito, na dermatose bolhosa auto-imune mais comum da gestação, o PG, também há formação de auto-anticorpos antiBP 180, mas contra o domínio extracelular da proteína, localizado próximo à membrana citoplasmática do queratinócito basal, denominado NC16A.1 Há evidências de que a expressão placentária do BP 180 seja a responsável pelo desencadeamento da resposta auto-imune.5 Esse antígeno é expresso na placenta a partir do segundo trimestre da gestação, coincidindo com o pico de incidência do PG nas doentes.5

Em pacientes com DAL que ficaram grávidas foram descritos depósitos de IgA na ZMB placentária, sugerindo que a expressão de antígenos comuns à placenta e à pele favoreça o desenvolvimento da autoimunidade. 3,6 Considerando esses dados e o fato de que o principal alvo dos auto-anticorpos na DAL é o mesmo do PG, ou seja, o BP 180, seria possível inferir que houvesse maior incidência de DAL na gestação. No entanto, os poucos relatos de casos revelam melhora do quadro clínico com a gravidez.3 Acreditase que essa melhora seria secundária à maior glicosilação da IgA na gestação por ação hormonal, o que levaria à modificação de seu estado conformacional, alterando sua capacidade de se ligar ao antígeno cutâneo. 3 Portanto, a exata imunopatogênese da DAL associada à gestação permanece desconhecida, sendo necessários mais estudos para sua compreensão.

Há casos de mola hidatiforme associados à DAL7 e ao PG,8 porém não se encontrou na literatura descrição de DAL desencadeada pela gestação, sendo este relato inédito.

A droga de escolha para o tratamento da DAL é a dapsona, que deve ser iniciada em doses baixas (inferiores a 0,5mg/kg), com aumento até melhora clínica, variando a dose máxima recomendada de 2,5 a 3mg/kg.4 A dapsona inibe a mieloperoxidase nos neutrófilos e a peroxidase nos eosinófilos, levando a menor produção de compostos halogenados tóxicos por estas células. Diminui a expressão de integrinas (moléculas de adesão) nos neutrófilos, dificultando sua adesão ao endotélio e migração para a pele. Além disso, diminui a produção de leucotrieno B4 (fator quimiotático para neutrófilos), bem como a adesão do neutrófilo à IgA tecidual.9 É classificada como droga da categoria C pelo Food and Drug Administration (FDA) e atravessa a placenta, mas não se mostrou teratogênica para ratos e coelhos em doses de até 200mg/kg/dia. Não produziu teratogenicidade em recém-nascidos de mais de mil gestantes inglesas que receberam o medicamento.10 Entretanto, metaemoglobinemia, anemia hemolítica, leucopenia e icterícia podem ocorrer, sendo recomendados a dosagem da enzima glicose-6-fosfato-desidrogenase e controle das séries branca e vermelha do sangue na gestante e no recém-nascido. Outros possíveis efeitos colaterais são: hepatite, neuropatia periférica, reações cutâneas e síndrome de hipersensibilidade à sulfona.10 Trata-se, portanto, de droga que deve ser usada com cautela na gestação, ponderando-se sempre a relação risco/benefício.

É inédito este caso de DAL desencadeado pela gestação, com boa resposta terapêutica ao corticóide e à dapsona, destacando-se a importância da realização da IFD para adequada diferenciação com o PG, que é a dermatose bolhosa auto-imune mais comum na gestação. q

Recebido em 30.01.2007.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 20.12.2007.

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  • *
    Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Padre Bento de Guarulhos – Guarulhos (SP), Brasil.
    Conflito de interesse: Nenhum / Conflict of interest: None
    Suporte financeiro: Nenhum / Financial funding: None
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008

    Histórico

    • Aceito
      20 Dez 2007
    • Recebido
      30 Jan 2007
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