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Doença de Crohn metastática sem manifestação clínica intestinal

Resumos

Os autores relatam caso de paciente feminina de 47 anos, com lesões cutâneas ulceradas, disseminadas, iniciadas sete anos antes do acompanhamento. Os achados histopatológicos de tais lesões, somados aos endoscópicos, permitiram o diagnóstico de uma entidade rara: a doença de Crohn metastática. O valor deste diagnóstico é ainda maior, por não se encontrar na literatura, relato de caso com atividade da doença de Crohn restrita às lesões cutâneas, sem a observação de queixas digestivas expressivas.

Doença de Crohn; Fístula; Granuloma


The authors report the case of a 47-year-old female patient with dispersed ulcerated skin lesions that appeared 7 years before medical follow-up. Histopathological and endoscopic findings of such lesions led to the diagnosis of a rare disorder: metastatic Crohn’s disease. This diagnosis is even more relevant because there is no case report in the literature of Crohn’s disease restricted to cutaneous lesions, without major gastro-intestinal complaints.

Crohn disease; Fistula; Granuloma


CASO CLÍNICO

Doença de Crohn metastática sem manifestação clínica intestinal

Marcelo D'Ambrosio FernandesI; Helena D'Ambrosio FernandesII; Rosângela DelizaIII; Caio Eduardo Ferreira PiresIV; Angela Cristina BortoncelloV

IMédico Especialista em Dermatologia, ex-residente do Complexo Hospitalar Padre Bento de Guarulhos – Guarulhos (SP), Brasil

IIMédica Especialista em Dermatologia, ex-residente do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Campinas (SP), Brasil

IIIMédica Patologista, com especialização em patologia digestiva no Japão, Especialista pela Sociedade Brasileira de Patologia (SBP), Laboratório de anatomia patológica – Campinas (SP), Brasil

IVMédicos residentes de Clínica Médica do Hospital Municipal Dr. Mário Gatti - Campinas (SP), Brasil

VMédicos residentes de Clínica Médica do Hospital Municipal Dr. Mário Gatti - Campinas (SP), Brasil

Endereço para correspondência/ Mailing Address : Endereço para correspondência Marcelo D'Ambrosio Fernandes Rua Sacramento, 501 Centro. 13010 210 Campinas SP Tel:/Fax: 19 32363224; 19 32581127; 19 81117893 E-mail: dermato.dambrosio@gmail.com

RESUMO

Os autores relatam caso de paciente feminina de 47 anos, com lesões cutâneas ulceradas, disseminadas, iniciadas sete anos antes do acompanhamento. Os achados histopatológicos de tais

lesões, somados aos endoscópicos, permitiram o diagnóstico de uma entidade rara: a doença de Crohn metastática. O valor deste diagnóstico é ainda maior, por não se encontrar na literatura, relato de caso com atividade da doença de Crohn restrita às lesões cutâneas, sem a observação de queixas digestivas expressivas.

Palavras-chave: Doença de Crohn; Fístula; Granuloma

INTRODUÇÃO

As úlceras cutâneas traduzem perda tecidual circunscrita, geralmente, de epiderme e derme, podendo haver comprometimento eventual da hipoderme. Podem ter etiologia traumática, vascular, infecciosa ou inflamatória. Na propedêutica clínica diagnóstica de lesões ulcerosas dermatológicas, é imperativo que se proceda a avaliação sistêmica do paciente, pois, muitas vezes, estamos diante da manifestação cutânea de patologia com acometimento primário não-cutâneo.

Assim acontece em úlceras relacionadas às vasculites, às micoses profundas, às micobacterioses e à doença de Crohn, entidade de lesão primária de trato digestivo, mas que pode determinar manifestações cutâneas, por contiguidade do acometimento intestinal ou não.1

Por vezes, este acometimento sistêmico não se evidencia em sinais e sintomas, é discreto ou está mascarado, mas não deve ser desvalorizado. Na doença de Crohn, é clássico o distúrbio intestinal que cursa, em casos graves, com dor abdominal, diarreia muco-sanguinolenta, emagrecimento e, por vezes, crises de abdômen agudo secundário às aderências intra-abdominais. 2 Porém, muitas vezes, o acometimento não atinge tal magnitude clínica e as queixas digestivas podem ser bem menos expressivas. A colonoscopia, em qualquer uma das possibilidades, aparece como método diagnóstico auxiliar de grande valor, pois, mesmo nos casos de acometimento intestinal discreto, com manifestações clínicas quase ausentes, pode confirmar o diagnóstico de Doença de Crohn por critérios macroscópicos e microscópicos.

RELATO DO CASO

Mulher de 47 anos procurou atendimento médico, por apresentar, há sete anos, nódulos e placas infiltradas e ulceradas, indolores, recobertas por crostas em mama e mamilo direito, glúteo, região suprapúbica, poplítea e tornozelo esquerdo ((Figuras 1, 2 e 3). Algumas lesões drenavam secreção fluída amarelada, sem eliminação de grãos. Duas delas, tiveram início após estímulo traumático – injeção intramuscular nas lesões em glúteo, e lesão suprapúbica sobre cicatriz cesárea.




Negava uso de medicações ou antecedentes mórbidos. Não apresentava febre, emagrecimento ou ulcerações orais / genitais. Sem alterações digestivas, urinárias ou antecedentes familiares relacionados. Ao exame físico, destacavam-se apenas as alterações cutâneas. A biópsia da lesão do tornozelo evidenciou processo inflamatório crônico ulcerado, com marcada reação linfo-histiocitária, sem sinais de malignidade e pesquisa para BAAR e fungos negativa. A cultura de tecido também foi negativa, para micobactérias e fungos.

Hemograma, função renal, perfil hepático, raios-X de tórax, urina 1 e complementos séricos eram normais. Sorologias para HIV, hepatite B e C, FAN e ANCA não eram reagentes. O VHS era de 29 mm (1ª hora) e o PPD, não reator. A sorologia para Leishmaniose foi negativa. Solicitado colonoscopia que visualizou erosões em íleo terminal, recobertas por fibrina, com exame anatomopatológico de ileíte crônica moderada, superficialmente erosiva, sugerindo doença de Crohn (Figuras 4 e 5).



Nova biópsia de pele, agora da mama, foi então realizada com achado de processo inflamatório ulcerado e granulomatoso, sem a presença de fungos ou micobactérias e sem halo linfocitário, compatível com doença de Crohn (Figura 6). Realizou-se tratamento com mezalasina e prednisona, sem resposta. No momento, a paciente está aguardando uso de infliximabe.


DISCUSSÃO

A doença de Crohn é uma moléstia inflamatória intestinal idiopática que pode comprometer todo trato digestivo, desde a cavidade oral até a borda anal. Manifesta-se em qualquer idade, com áreas afetadas da mucosa intercalando-se com áreas sadias. Há, contudo, evidente predileção pelo íleo terminal.1

As alterações inflamatórias – percebidas pela colonoscopia na forma de eritema e edema de mucosa, ulcerações frequentes e formação de pseudopólipos – podem levar a estenoses e perda da mobilidade intestinal, com quadros disabsortivos e deficiências nutricionais secundárias, dentre as quais, destacamse: a deficiência de zinco (com manifestações clínicas similares à acrodermatite enteropática), a pelagra e a anemia perniciosa.2 Também está classicamente associado à sua atividade o eritema nodoso, lesões de pioderma gangrenoso e vasculites necrotizantes cutâneas. 3 Há relato de doença de Crohn intestinal, associada à psoríase pustulosa aguda.4

Não raro, a doença de Crohn pode determinar lesões cutâneas específicas, na maioria das vezes, contíguas ao acometimento intestinal, apresentando-se clinicamente como fístulas ou ulcerações perianais.5 Na literatura descreve-se uma entidade caracterizada pelo surgimento de lesões cutâneas, com aspecto granulomatoso ao exame histopatológico, sem relação topográfica com o Crohn intestinal, isto é, lesões específicas separadas do acometimento intestinal, por grandes áreas de pele normal. Trata-se da chamada DOENÇA DE CROHN METASTÁTICA (DCM).6 Neste caso, há predileção pelo acometimento de genitais – o que se observa em 2/3 dos casos de DCM em crianças e jovens menores de 18 anos – e também de extremidades inferiores (38% dos casos), tronco e abdome (24%), extremidades superiores (15%), face e lábios (11%) e flexuras (8%). O acometimento generalizado no Crohn metastático não chega a ocorrer em 4% dos casos.7 No nosso caso, a paciente apresentava comprometimento de extremidades inferiores (tornozelo e joelho), abdome inferior (região suprapúbica), tronco (mama) e quadril (glúteo).

No diagnóstico diferencial da DCM, destacamse: o pioderma gangrenoso, a micobacteriose atípica, a tuberculose cutânea, as micoses profundas, a actinomicose, a doença de Behçet, a granulomatose de Wegener e a poliarterite nodosa cutânea.5 No caso descrito, o estudo anatomopatológico, microbiológico e sorológico afastou tais hipóteses, e a solicitação da colonoscopia, apesar da ausência de dor abdominal, emagrecimento ou diarreia, buscava afastar DCM. "Com a presença de alterações macroscópicas e microscópicas da doença de Crohn intestinal, o diagnóstico seria presuntivo, não fosse à nova biópsia de pele (mama) que acusou reação granulomatosa.

Kafity publicou artigo que relaciona, em 100% das vezes, a presença de doença intestinal à DCM.7 Em nosso caso, a doente apresentava atividade inflamatória moderada no íleo, sem manifestação clínica. Entretanto, a atividade da doença estava evidente nas lesões cutâneas.

A doença de Crohn cutânea tende a ter curso crônico, com o tratamento da doença gastrointestinal, clareando algumas lesões de pele. A remoção cirúrgica da porção afetada do trato digestivo não se correlaciona diretamente com a melhora das lesões cutâneas.8

A terapia é vasta. Metronidazol, corticoide oral, sulfassalazina, tetraciclina, azatioprina e ciclosporina estão entre as opções, com resultados favoráveis relatados, mas sem respostas e tempo de tratamento padronizados. 5 Os efeitos colaterais destas drogas para uso crônico limitam a prescrição. A ciclosporina parece ser útil para induzir remissões e tratar exacerbações agudas, quando os corticoides falham, mas hipertensão e insuficiência renal são comuns, a longo prazo.8

Quando não se alcança resposta clínica com as drogas citadas, a opção de uso dos biológicos – uma nova classe terapêutica com atividade anticitocinas – tem se mostrado efetiva.9 Para controle da atividade inflamatória das lesões da doença de Crohn clássica, encontram-se aprovados o adalimumabe e o infliximabe. Este último apresenta ação anti TNF alfa e foi utilizado em seguimento, publicado por Cohen, em 2001, com boa tolerabilidade e controle das lesões cutâneas fistulizadas.9,10 A ação destes anticorpos monoclonais promoveu melhora clínica rápida e duradoura, nas séries publicadas.10

A publicação de Kafty, em 1993, relaciona, em 100% dos casos, a doença intestinal à DCM. Não descreve, contudo, casos de acometimento intestinal histológico puro, sem queixas clínicas evidentes, como ocorreu no caso descrito. Assim, a apresentação de um caso com atividade inflamatória clínica da doença de Crohn, limitada à pele, em paciente sem queixas intestinais expressivas, merece destaque pela necessidade de se pensar nesta entidade, como parte do diagnóstico diferencial de lesões ulceradas, mesmo que o acometimento digestivo não esteja presente.

Recebido em 17.9.2008.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 9.07.09.

  • 1.  Felley C, Mottet C, Juillerat P, Froehlich F, Burnand B, Vader JP, et al. Fistulizing Crohn's disease. Digestion. 2005;71:26-8.
  • 2.  Thayu M, Shults J, Burnham JM, Zemel BS, Baldassano RN, Leonard MB. Gender differences in body composition deficits at diagnosis in children and adolescents with Crohn's disease. Inflamm Bowel Dis. 2007;13:1121-8.
  • 3.  Burgdorf W. Cutaneous manifestations of Crohn's disease. J Am Acad Dermatol. 1981;5:689-95.
  • 4.  Fernandes EI, Ferreira TC, Silveira TR, Ferreira CT. Psoríase pustulosa associada à doença de Crohn: relato de caso. An Bras Dermatol. 2000;75:57-64.
  • 5.  Gilson RT, Elston D, Pruitt A. Metastatic Crohn's Disease: Remission induced by mesalamine and prednisone. J Am Acad Dermatol. 1999;41:476-9.
  • 6.  Shum D, Guenther L. Metastatic Crohn's disease: case report and review of the literature. Arch Dermatol. 1990;126:645-8.
  • 7.  Kafity A, Pellegrini A, Fromkes J. Metastatic Crohn's disease: a rare cutaneous manifestation. J Clin Gastroenterol. 1993;17:300-3.
  • 8.  Saschar D. Maintenance therapy in ulcerative colitis and Crohn's disease. J Clin Gastroenterol. 1995;20:117-22.
  • 9.  Farrel RJ, Shah SA, Lodhavia PJ, Alsahli M, Falchuk KR, Michetti P, et al. Clinical experience with infliximab therapy in 100 patients with Crohn's disease. Am J Gastroenterol. 2000;95:3490-7.
  • 10.  Cohen MD. Efficacy and safety of repeated infliximab infusions for Crohn's disease: 1-year clinical experience. Inflamm Bowel Dis. 2001;(Suppl 1):S17-22.
  • :
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      09 Jul 2009
    • Recebido
      17 Set 2008
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