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Úlcera de Marjolin associada a ulceração e osteomielite crônicas

Resumos

Doente do sexo masculino, de 78 anos, portador de uma úlcera venosa crônica na perna esquerda, com cerca de 24 anos de evolução, complicada por carcinoma espinocelular. Após o estadia mento da doença, o tratamento preconizado foi amputação acima do joelho esquerdo. A úlcera de Marjolin é a transformação maligna de uma lesão ulcerosa crônica. Trata-se de um fenômeno relativamente raro. A neoplasia maligna mais frequentemente descrita na literatura é o carcinoma espinocelular, seguido do basalioma, sarcoma e melanoma. A sua patogenia permanece pouco compreendida.

Carcinoma de células escamosas; Osteomielite; Úlcera da perna


This report describes a 78-year old male patient with a chronic venous ulcer on his left leg for the past 24 years, complicated by a squamous-cell carcinoma. After staging of the disease, the treatment administered was amputation of the leg above the knee. Marjolin's ulcer consists of the malignant transformation of a chronic ulcerative lesion. It is a relatively rare phenomenon. The malignant tumor most commonly described in the literature is squamous cell carcinoma, followed by basal-cell carcinoma, sarcoma and melanoma. The pathogenesis of Marjolin's ulcer remains to be fully clarified.

Carcinoma, squamous cell; Leg ulcer; Osteomyelitis


CASO CLÍNICO

Úlcera de Marjolin associada a ulceração e osteomielite crônicas* * Trabalho realizado no Hospital de Santarém, Distrito de Santarém, Portugal.

Ermelindo TavaresI; Gonçalo MartinhoII; José Alberto DoresIII; Frederico Vera-CruzIV; Luís FerreiraV

IInterno do internato complementar de dermatologia e venereologia do Hospital de Santarém - Santarém, Portugal

IIInterno do internato complementar de ortopedia e traumatologia do Hospital de Santarém - Santarém, Portugal

IIIAssistente graduado de dermatologia e venereologia do Hospital de Santarém - Santarém, Portugal

IVInterno do internato complementar de cirurgia geral do Hospital de Santarém - Santarém, Portugal

VAssistente graduado de cirurgia geral do Hospital de Santarém - Santarém, Portugal

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr Ermelindo Tavares Rua Alexandre Herculano, Nº 26, 2º direito 2005-188 Santarém, Portugal e-mail: tavares.ermelindo@gmail.com

RESUMO

Doente do sexo masculino, de 78 anos, portador de uma úlcera venosa crônica na perna esquerda, com cerca de 24 anos de evolução, complicada por carcinoma espinocelular. Após o estadia mento da doença, o tratamento preconizado foi amputação acima do joelho esquerdo. A úlcera de Marjolin é a transformação maligna de uma lesão ulcerosa crônica. Trata-se de um fenômeno relativamente raro. A neoplasia maligna mais frequentemente descrita na literatura é o carcinoma espinocelular, seguido do basalioma, sarcoma e melanoma. A sua patogenia permanece pouco compreendida.

Palavras-chave: Carcinoma de células escamosas; Osteomielite; Úlcera da perna

INTRODUÇÃO

A úlcera de Marjolin foi descrita pela primeira vez no século XIX.1 Refere-se à malignização de uma lesão ulcerosa crônica,2 sendo que úlceras crônicas associadas a cicatrizes permanecem como as lesões precursoras mais frequentemente descritas na literatura médica. O carcinoma espinocelular (CEC) é a neoplasia encontrada na maior parte dos casos2 e, geralmente, localiza-se nas extremidades, particularmente nos membros inferiores. A latência até à transformação maligna é, em média, de três décadas.1 A cirurgia é o tratamento de eleição, sendo a modalidade terapêutica com maior taxa de cura e a que oferece maior sobrevida.

As úlceras crônicas, particularmente dos membros inferiores, constituem uma das muitas comorbidades que assolam grande número de doentes nas unidades de prestação de cuidados primários de saúde. Apresenta-se um caso clínico por complicação de úlceras crônicas, relembrando a sua raridade, eventuais consequências catastróficas para o doente e alguns dos sinais que podem traduzir a presença de malignização.

CASO CLÍNICO

Homem de 78 anos, caucasiano, agricultor reformado e residente em Santarém (Ribatejo, Portugal), referenciado pelo médico assistente para consulta de dermatologia em julho de 2008 por úlcera venosa crônica da perna esquerda que há um ano se apresentava com alargamento contínuo das bordas, supuração fétida abundante, aumento da intensidade e frequência das dores e área exofítica friável.

A consulta do processo clínico permitiu constatar que a úlcera foi contraída em 1984, após episódio de tromboflebite da perna esquerda; desde então, apesar da realização de curativos com diversos tipos de material, a úlcera evoluiu com períodos de cicatrização parcial e agravamento, nunca chegando a cicatrizar completamente. Em 1995, na sequência de uma tentativa de suicídio com arma de fogo, um dos projéteis ficou alojado imediatamente abaixo da úlcera, em área que se encontrava quase cicatrizada; com a permanência e posterior remoção cirúrgica do corpo estranho registrou-se de novo um agravamento severo da lesão. Em 1996, o doente beneficiou-se de enxerto cutâneo, cuja viabilidade foi efêmera. A partir de 1998, registrou-se abandono do follow-up hospitalar.

O paciente estava acamado, institucionalizado e totalmente dependente de terceiros para a realização das atividades da vida diária, sendo portador de coronariopatia isquêmica com um episódio de enfarte agudo do miocárdio, depressão grave, prótese total do joelho direito, bronquite crônica, hipertrofia prostática benigna e dermo-hipodermites bacterianas agudas de repetição da perna esquerda. Encontrava-se medicado com aminofilina 450 mg/dia, ácido acetilsalicílico 100 mg/dia e paracetamol 3 g/dia.

Ao exame objetivo geral, foram constatados um humor deprimido e estertores crepitantes nas duas bases pulmonares. Ao exame dermatológico, era evidente uma úlcera com cerca de 20 cm por 12 cm de dimensão, bordas elevadas e irregulares, área exofítica friável e dura no polo superior, área de exposição óssea no polo inferior e exsudação purulenta, fétida e muito abundante (Figuras 1 e 2). Não se palpavam adenopatias periféricas, nomeadamente, na fossa poplítea ou região inguinal esquerda.



Colocou-se como principal hipótese diagnóstica neoplasia maligna sobre lesão ulcerosa crônica, isto é, úlcera de Marjolin.

A avaliação analítica (hemograma, glicemia, função renal e hepática) foi normal. A expansão, esclerose e destruição ósseas na radiografia da perna esquerda foram compatíveis com processo de osteomielite crônica da tíbia (Figura 3). Não se detectaram opacidades nodulares na radiografia do tórax. A tomografia computadorizada abdominal e pélvica não acrescentou novos achados. O exame histológico do fragmento colhido no polo superior da úlcera permitiu estabelecer o diagnóstico definitivo de CEC bem diferenciado, com invasão profunda da derme (Figura 4).



A amputação acima do joelho esquerdo foi o tratamento de eleição, para o qual contribuíram as comorbidades do paciente, a osteomielite crônica e a invasão tumoral em profundidade. O exame histológico da peça operatória confirmou a invasão do tecido adiposo subcutâneo, do músculo e do periósteo, sem invasão neurovascular.

A evolução clínica durante o internamento foi favorável. No primeiro mês pós-operatório o coto cirúrgico encontrava-se cicatrizado e sem recidiva tumoral. Na consulta de follow-up dos seis meses, não se detectaram adenopatias inguinais, quer física ou ecograficamente, e a avaliação analítica manteve-se inalterada. A ecografia abdominal e a radiografia torácica não mostraram depósitos secundários no fígado e nos pulmões, respectivamente.

DISCUSSÃO

Jean-Nicholas Marjolin, cirurgião francês, descreveu pela primeira vez em 1828 a transformação maligna de cicatrizes crônicas resultantes de queimaduras. DaCosta, em 1923, foi o primeiro autor a aplicar o epônimo "úlcera de Marjolin" às neoplasias malignas sobre cicatrizes de queimaduras. Atualmente, refere-se a qualquer tipo de tumor maligno sobre uma ferida crônica, sendo que as mais frequentemente envolvidas são as cicatrizes de queimaduras e as fístulas crônicas, as quais são responsáveis juntas por cerca de 80 por cento dos casos.1 Casos menos frequentes ocorrem com as úlceras venosas e de decúbito, cicatrizes de vacinação, osteomielite crônica,1 hidradenite supurativa, sinus pilonidalis e lúpus discoide.3

A osteomielite é um precursor bem conhecido do carcinoma escamocelular. A incidência de úlceras de Marjolin na osteomielite crônica é difícil de avaliar; todavia, Hobart e Miller referem que 1,5 por cento de todas as osteomielites crônicas desenvolvem úlceras de Marjolin.1 Relativamente ao nosso paciente, ficamos por responder a seguinte questão: a osteomielite foi um precursor da neoplasia? Pensamos que a probabilidade de a osteomielite crônica ter sido

o precursor da neoplasia é reduzida, sendo mais convincente a hipótese de se tratar de uma sequela tardia da lesão ulcerosa.

O tipo de carcinoma mais frequentemente associado a essas lesões é o escamocelular, respondendo por 75 a 90 por cento dos casos; outros tipos histológicos, como o melanoma, o sarcoma e o basalioma, são raros. A maior parte dos tumores localiza-se nas extremidades, particularmente nos membros inferiores. Em média, a transformação maligna dá-se ao fim de 43 anos,2 mas esse período pode variar entre 10 e 70 anos.4 Tenopyr e Silverman estimam que o tempo de evolução de uma úlcera deve ser no mínimo de três anos para que se pense em malignização da lesão; caso contrário, deve ser ponderada a hipótese de lesão primária causadora da úlcera.5

A malignização de uma ferida crônica é um processo dinâmico ainda pouco elucidado, para o qual podem contribuir vários fatores, como traumas repetidos, imunodeficiência, fatores de crescimento presentes no exsudado, alterações na vascularização tecidual e predisposição genética. O aparecimento e/ou intensificação da dor,1 supuração fétida e de volume anormal,1 áreas exofíticas e friáveis, alargamento e endurecimento da lesão e tendência à hemorragia1 são sinais que traduzem fortemente a malignização.

O diagnóstico definitivo é dado pelo exame histológico da lesão. Devem fazer-se várias biópsias, inclusive da região central da úlcera (os sarcomas têm esse tipo de distribuição), para diminuir a probabilidade de um exame falso-negativo, pois mesmo com uma coleta alargada de tecido pode ser difícil para o anatomopatologista diferenciar entre hipertrofia pseudoepiteliomatosa e CEC.2

O tratamento, segundo alguns estudos, depende de fatores inerentes ao paciente (idade, comorbidades) e ao próprio tumor (localização, extensão, presença ou não de metástases) e, como tal, deverá ser individualizado.6 Na maior parte dos pacientes, devido ao estádio avançado em que se encontra o tumor no momento do diagnóstico, o tratamento de eleição é a exérese radical, com ou sem esvaziamento ou irradiação ganglionar, respeitando-se uma margem cirúrgica não inferior a 1 cm. A amputação está indicada nos casos de invasão dérmica profunda, envolvimento ósseo, hemorragia, infecção extensa e osteomielite crônica,7,8 situação que se verificou no caso descrito.

As outras modalidades terapêuticas, como a crioterapia, a radioterapia e a quimioterapia, não demonstraram eficácia e são reservadas para uso paliativo a doentes sem indicação operatória. Em relação à cirurgia conservadora, a questão está relacionada à manutenção de uma função de órgão em níveis aceitáveis e ao tratamento eficaz da neoplasia e da infecção. Essas cirurgias implicam, geralmente, procedimentos complexos e morosos, com resultados funcionais muitas vezes decepcionantes e, por vezes, com recorrência da neoplasia.2,4

Na literatura médica, o prognóstico da úlcera de Marjolin é estimado em 65 a 75 por cento para uma sobrevida em três anos, sendo melhor para carcinomas bem diferenciados.2 A presença de metástase a distância implica, evidentemente, um pior prognóstico, com uma sobrevida em três anos de 35 a 50 por cento.2

Recebido em 25.11.2009.

Approved by the Advisory Board and accepted for publication on 07.05.10.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

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  • Endereço para correspondência:
    Dr Ermelindo Tavares
    Rua Alexandre Herculano, Nº 26, 2º direito
    2005-188 Santarém, Portugal
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    Trabalho realizado no Hospital de Santarém, Distrito de Santarém, Portugal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      25 Nov 2009
    • Aceito
      07 Maio 2010
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