Acessibilidade / Reportar erro

Lúpus eritematoso crônico discoide nas linhas de Blaschko

Resumos

O lúpus eritematoso crônico discoide linear é manifestação rara da doença lúpica cutânea, em que lesões eritêmato-atrófico-discrômicas dispõem-se nas linhas de Blaschko. Descrevemos o caso de um menino de 15 anos, com dois anos de história de lesões discoides eritêmato-atróficas, hipo e hiperpigmentadas, dispostas nas linhas de Blaschko do membro superior direito. O exame histopatológico revelou atrofia da epiderme, hiperqueratose, rolhas córneas, espessamento da zona da membrana basal, infiltrado inflamatório crônico perianexial e perivascular superficial e profundo, depósito de mucina na derme, confirmando o diagnóstico. Há, no total, 14 casos descritos dessa variante que se inicia frequentemente na infância e que não apresenta predomínio quanto ao sexo. As lesões ocorrem preferencialmente na face. Não há relatos de associação com doença sistêmica

Lupus eritematoso cutâneo; Lupus eritematoso discóide; Mosaicismo


Linear chronic discoid lupus erythematosus is a rare manifestation of cutaneous lupus in which erythematous, atrophic, dyschromic lesions are located along the lines of Blaschko. This report describes the case of a 15-year old boy with a 2-year history of discoid, erythematous, hyper and hypopigmented lesions with central atrophy, situated along the lines of Blaschko on his right arm. Histopathology showed epidermal atrophy, hyperkeratosis, follicular plugging, thickening of the basement membrane zone, and superficial and deep chronic perivascular and periadnexal inflammatory infiltrate, with dermal mucin deposit, thus confirming diagnosis. A total of 14 cases have been described of this variant, the onset of which is often in childhood. There is no difference in incidence between genders. Lesions most commonly develop on the face. There have been no reports of any association with systemic disease

Lupus erythematosus, cutaneous; Lupus erythematosus, discoid; Mosaicism


CASO CLÍNICO

Lúpus eritematoso crônico discoide nas linhas de Blaschko* * Trabalho realizado na Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC - Campinas) - Campinas (SP), Brasil.

Patricia Erica Christofoletti DaldonI; Renan LageII

IDoutorado em Clínica-médica - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Docente da disciplina de Dermatologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC - Campinas) - Campinas (SP), Brasil

IIAcadêmico do sexto ano de Medicina da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC - Campinas) - Campinas (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Patrícia Érica Christofoletti Daldon Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas/Centro de Ciências da Vida Avenida John Boyd Dunlop, s/n, Jardim Ipaussurama 13059-900 Campinas (SP) - Brasil Tel: 19 3343-8496 E-mail: patdaldon@hotmail.com

RESUMO

O lúpus eritematoso crônico discoide linear é manifestação rara da doença lúpica cutânea, em que lesões eritêmato-atrófico-discrômicas dispõem-se nas linhas de Blaschko. Descrevemos o caso de um menino de 15 anos, com dois anos de história de lesões discoides eritêmato-atróficas, hipo e hiperpigmentadas, dispostas nas linhas de Blaschko do membro superior direito. O exame histopatológico revelou atrofia da epiderme, hiperqueratose, rolhas córneas, espessamento da zona da membrana basal, infiltrado inflamatório crônico perianexial e perivascular superficial e profundo, depósito de mucina na derme, confirmando o diagnóstico. Há, no total, 14 casos descritos dessa variante que se inicia frequentemente na infância e que não apresenta predomínio quanto ao sexo. As lesões ocorrem preferencialmente na face. Não há relatos de associação com doença sistêmica.

Palavras-chave: Lupus eritematoso cutâneo; Lupus eritematoso discóide; Mosaicismo

INTRODUÇÃO

O lúpus eritematoso (LE) é doença autoimune inflamatória com inúmeras apresentações clínicas, que variam da doença localizada, restrita à pele, ao acometimento sistêmico. Classifica-se a doença lúpica em três divisões maiores: o lúpus eritematoso sistêmico (LES), o lúpus eritematoso subagudo (LESA) e o lúpus eritematoso crônico cutâneo (LECC). Este último é subdividido em outras afecções, entre elas, o lúpus eritematoso crônico discoide (LECD) que se caracteriza por lesões discoides, eritêmato-atróficas, hiperqueratóticas, hipocrômicas, com halo hiperpigmentado.1 As lesões típicas de LECD podem, raramente, dispor-se nas linhas de Blaschko, constituindo o lúpus eritematoso crônico discoide linear (LECDL).2 Apresenta-se o caso de um menino de 15 anos com apresentação típica de LECDL.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 15 anos, relata, há 2 anos, lesões eritematosas na mão direita, que se estenderam linearmente pelo braço e escápula direita. Negava doenças prévias e história familiar de doenças autoimunes. O paciente negava fotossensibilidade, porém, observou-se em duas consultas exacerbação das lesões após exposição solar sem fotoproteção (pescaria).

Ao exame físico, observavam-se lesões discoides, atróficas, hipo e hiperpigmentadas, com halo eritematoso, acompanhadas de hiperqueratose em algumas lesões. As lesões seguiam as linhas de Blaschko, acometendo a região dorsal do primeiro quirodáctilo direito, estendendo-se até a escápula direita e região paravertebral ipsilateral (Figuras 1, 2 e 3). O paciente apresentava também dermografismo.




Com a hipótese clínica de "blasckite lúpica" ou LECDL, realizou-se exame histopatológico em que se observaram retificação da epiderme com hiperqueratose, com formação de rolhas córneas, degeneração hidrópica das células da camada basal, espessamento da zona da membrana basal, telangiectasias, infiltrado inflamatório linfocítico perivascular superficial e profundo e perianexial, com depósito de mucina na derme reticular (Figura 4). Confirmou-se, assim, a LECDL.


Os seguintes exames laboratoriais foram solicitados: FAN - título de 1/80, homogêneo, sem correlação clínica com maior atividade das lesões. Anti-Sm, anti-Ro e anti-La, não reagentes. Hemograma, velocidade de hemossedimentação, dosagem de complemento, glicemia de jejum e creatinina sem alterações.

Após avaliação oftalmológica, introduziu-se difosfato de cloroquina 250 mg/dia, com melhora do quadro.

DISCUSSÃO

Em 1978, Umbert e Winkelmann relataram o primeiro caso linear de LECD, que apresentava características concomitantes de esclerodermia e, por tal motivo, designaram como síndrome cutânea mista, associando lúpus cutâneo e esclerodermia.2 Dois casos semelhantes de sobreposição das duas patologias em disposição linear foram descritos posteriormente.3

O acometimento linear do LE cutâneo é raro, podendo apresentar-se sob forma de LECD, LE profundo, LE túmido, LESA.2 Um caso de LE bolhoso linear em uma paciente com LES foi descrito.4 O nosso caso está inserido no contexto do LECD linear.

Há, no total, 14 casos descritos de LECDL, incluindo o caso aqui reportado, sendo a face o local mais acometido (9 de 14 pacientes). O acometimento do membro superior foi descrito apenas uma única vez, no caso referido de Umbert e Winkelmann, com lesões no primeiro quirodáctilo e no antebraço.5,6 No nosso caso, as lesões acometiam o membro superior direito e prolongavam-se nas linhas de Blaschko do tronco. Na maior parte dos casos, um único sítio anatômico foi acometido (12 de 14 casos). Como exposto anteriormente, no nosso caso, dois sítios foram acometidos. Baixos títulos de anticorpo antinuclear foram encontrados em três pacientes, incluindo o nosso. O título observado nos três casos foi de 1/80.5,6 Em seis casos, o exame de imunofluorescência direta foi realizado, resultando em depósitos de C3 e imunoglobulinas (IgM em 5 casos, IgG em 2 casos) ao longo da membrana basal.5 A duração da história clínica prévia ao diagnóstico variou de 2 meses a 5 anos, com média em 1,5 ano. Em oito casos, a faixa etária acometida no início da doença foi abaixo dos quinze anos de idade. Houve 8 pacientes do sexo masculino para 6 pacientes do sexo feminino.5,6 O nosso paciente era do sexo masculino, apresentava história clínica de dois anos, com início das lesões aos treze anos de idade.

O diagnóstico é clínico-patológico; o exame histopatológico revela características típicas de LE como atrofia da epiderme, hiperqueratose, rolhas córneas, espessamento da zona da membrana basal, degeneração hidrópica das células da camada basal, telangiectasias, incontinência pigmentar, infiltrado inflamatório crônico perianexial e perivascular superficial, médio e profundo, depósito de mucina na derme.1 Tais características estavam presentes no nosso caso.

O LECD é raro na infância, menos de 2% do total de pacientes com LECD apresentam o início da doença com idade inferior a 10 anos.7 Em relação ao LECD do adulto, o LECD infantil não apresenta predileção pelo sexo feminino, a fotossensibilidade é pouco incidente, mas há maior taxa de progressão para doença sistêmica.7,8 O início do LECD linear é geralmente na infância, embora haja casos descritos em adultos.5,6,8 O LECD linear da infância, assim como

o LECD não linear, apresenta igual distribuição em relação ao sexo. No entanto, no caso do LECD linear, há baixa progressão para LES.8,9 Há descrição de associação de LECDL na região submandibular esquerda com sialoadenite mioepitelial submandibular ipsilateral, na ausência da síndrome de Sjoegren e LES.10 A fotossensibilidade não é relatada entre os casos de LECDL,8,9 porém, no presente caso, foi observada clinicamente duas vezes, quando o paciente expôs-se ao sol em uma pescaria sem uso de camisa ou fotoprotetor, resultando em reativação das lesões.

Foi proposto por Abe et al. designar os casos lineares de LE como lúpus eritematoso cutâneo linear, já que as lesões teriam caráter linear e não "discoide" no sentido lato.7,11 No entanto, outros subtipos de LE já foram descritos na forma linear, como o LE profundo, o LE subagudo e o LE túmido, e portanto, acreditamos que a designação lúpus eritematoso crônico discoide linear seria mais adequada para enfatizar a subclassificação do LE em que o caso está inserido. No caso apresentado, as lesões eram discoides e lineares, com características morfológicas típicas de LECD, fato que pode ser observado na figura 2, na região do primeiro quirodáctilo.

Várias patologias inflamatórias adquiridas já foram descritas na distribuição das linhas de Blaschko como o líquen estriado, o líquen plano, a esclerodermia e a psoríase;12,13 acredita-se que sejam causadas por mosaicismo genético.2

A explicação sugerida é a ocorrência de mutação pós-zigótica nos queratinócitos, originando células anormais que se clonam e migram para uma única direção durante a embriogênese.5,6,12 As células provenientes desses mosaicismos expressariam neoantígenos capazes de elicitar resposta imune local.3 O gatilho para o surgimento da doença pode ser trauma, irritação primária e agentes exógenos como luz ultravioleta, drogas, pesticidas, metais pesados e outros elementos.2,14

A apoptose de queratinócitos tem sido apontada como evento-chave para o início das lesões lúpicas cutâneas, através de várias vias apoptóticas como p53, TNFa, Fas/FasL.5,15 Especula-se que os queratinócitos aberrantes poderiam não expressar proteínas essenciais para a regulação da apoptose, deixando de prevenir a apoptose induzida pelo sol, por exemplo. Outro mecanismo sugerido é que esses queratinócitos poderiam apresentar MHC anômalo, ou ainda liberarem citoquinas anormais.5

Recebido em 13.12.2009.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 13.05.2010.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

  • 1. Daldon PEC. Lúpus eritematoso hipertrófico: estudo clínico-patológico de 14 pacientes. [Tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2003.
  • 2. Rockmann H, Feller G, Schadendorf D, Goerdt S. Subacute cutaneous lupus erythematosus on the lines of blaschko. Eur J Dermatol. 2006;16:302-6.
  • 3. Julià M, Mascaró JM Jr, Guilabert A, Navarra E, Ferrando J, Herrero C. Sclerodermiform linear lupus erythematosus: a distinct entity or coexistence of two autoimmune diseases? J Am Acad Dermatol. 2008;58:665-7.
  • 4. Lee MW, Choi JH, Sung KJ, Moon KC, Koh JK. Linear cutaneous lupus erythematosus in the lines of blaschko. Pediatr Dermatol. 2001;18:396-9.
  • 5. Seitz CS, Brocker EB, Trautmann A. Linear variant of chronic cutaneous lupus erythematosus: a clue for the pathogenesis of chronic cutaneous lupus erythematosus? Lupus. 2008;17:1136
  • 6. Gaitanis G, NomikOS K, Chaniotakis I, Stergiopoulou C, Zioga A, Bassukas I. Linear cutaneous lupus erythematosus: a subset of childhood cutaneous lupus erythematosus. Lupus. 2009;18:759-61.
  • 7. Abe M, Ishikawa O, Myiachi Y. Linear cutaneous lupus erythematosus following the lines of blaschko. Br J Dermatol. 1998;139:307-10.
  • 8. Nagai Y, Ishikawa O, Hattori T, Ogawa T. Linear lupus erythematosus profundus on the scalp following the lines of blaschko. Eur J Dermatol. 2003;13:294-6.
  • 9. Requena C, Torrelo A, De Prada I, Zambrano A. Linear childhood cutaneous lupus erthematosus following blaschko lines. J Eur Acad Dermatol Venereol. 2002;16:618-20.
  • 10. Davies MG, Newman P. Linear cutaneous lupus erythematosus in association with ipsilateral submandibular myoepithelial sialadenitis. Clin Exp Dermatol. 2001;26:56-8.
  • 11. Abe M, Ohnishi K, Ishikawa O. Guess what? Linear cutaneous lupus erythematous (LCLE): relationship with Blaschko's lines. Eur J Dermatol. 2000;10:229-31.
  • 12. Green JJ, Baker DJ. Linear childhood discoid lupus erythematosus following the lines of blaschko: a case report with review of the linear manifestations of lupus erythematosus. Pediatr Dermatol. 1999;16:128-33.
  • 13. Romiti R, Maragno L, Arnone M, Takahashi MDF. Psoríase na infância e adolescência. An Bras Dermatol. 2009;84:9-22.
  • 14. Shapiro M, Sosis AC, Junkins-Hopkins JM, Werth VP. Lupus erythematosus induced by medications, ultraviolet radiation, and other exogenous agents: a review, with special focus on the development of subacute cutaneous lupus erythematosus in a genetically predisposed individual. Int J Dermatol. 2004:43:87-94.
  • 15. Martin DA, Elkon KB. Apoptosis. In: wallace dj, hayn bh, editors. Dubois' lupus erythematosus. Philadelphia: Lippincott Willians & Willians. 2007. P. 118-32.
  • Endereço para correspondência:
    Patrícia Érica Christofoletti Daldon
    Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas/Centro de Ciências da Vida
    Avenida John Boyd Dunlop, s/n, Jardim Ipaussurama
    13059-900 Campinas (SP) - Brasil
    Tel: 19 3343-8496
    E-mail:
  • *
    Trabalho realizado na Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC - Campinas) - Campinas (SP), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      13 Dez 2009
    • Aceito
      13 Maio 2010
    Sociedade Brasileira de Dermatologia Av. Rio Branco, 39 18. and., 20090-003 Rio de Janeiro RJ, Tel./Fax: +55 21 2253-6747 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revista@sbd.org.br