Acessibilidade / Reportar erro

Nevo da epidermólise bolhosa: aspectos clínicos, dermatoscópicos e histológicos em um caso de portador da forma distrófica recessiva

Resumos

As lesões melanocíticas adquiridas podem apresentar aspecto clínico não-usual em pacientes portadores de epidermólise bolhosa hereditária. Essas lesões são conhecidas como "nevos EB" e, muitas vezes, constituem um desafio diagnóstico ao dermatologista por apresentarem características clínicas, dermatoscópicas e histopatológicas semelhantes às encontradas no melanoma. Não são exclusivas de nenhuma forma de epidermólise bolhosa e têm sua frequência aumentada na infância. Relata-se o caso de um doente do sexo masculino, de 6 meses de idade, portador da forma distrófica recessiva da doença, com lesão pigmentada de rápido crescimento na coxa esquerda. Optou-se por seguimento clínico da lesão, considerando que os aspectos clínicos, dermatoscópicos e histológicos eram compatíveis com a descrição de outros casos de nevo EB previamente descritos

Epidermólise bolhosa distrófica; Nevo; Melanoma


Acquired melanocytic lesions may present unusual clinical features in all forms of hereditary epidermolysis bullosa. These lesions are known as "EB nevi", and often pose a diagnostic challenge for dermatologists given their resemblance - clinically, dermoscopically and histologically - to melanoma. The lesions have been reported in all types of hereditary EB, most of them in childhood. We report the case of a 6-month-old boy suffering from recessive dystrophic epidermolysis bullosa (RDEB) that presented as a large pigmented lesion on his left thigh. We decided to monitor the lesion closely since we considered that the clinical and pathological aspects of the lesion were compatible with the description of other previously reported cases of EB nevi

Epidermolysis bullosa dystrophica; Nevi and melanomas; Melanoma


DERMATOPATOLOGIA

Nevo da epidermólise bolhosa: aspectos clínicos, dermatoscópicos e histológicos em um caso de portador da forma distrófica recessiva* * Trabalho realizado no Departamento de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo - Ambulatório de Dermatologia Pediátrica.

Juliana Nakano de MeloI; Priscila Yoshie TeruyaII; Maria Cecília Rivitti MachadoIII; Neusa Sakai ValenteIV; Mirian Nacagami SottoV; Zilda Najjar Prado de OliveiraVI

IDoutoranda do Departamento de Dermatologia - Médica-assistente do Departamento de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP) - São Paulo (SP), Brasil

IIEspecialização pelo Departamento de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP) - São Paulo (SP), Brasil

IIIMestre pela Universidade de São Paulo - Médica-supervisora do Departamento de Dermatologia do Hospital das Clínicas - Médica-assistente do Ambulatório de Dermatologia Pediátrica - São Paulo (SP), Brasil

IVDoutora pela Universidade de São Paulo - Médica-pesquisadora do LIM - Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo (SP), Brasil

VLivre-docente pela Universidade de São Paulo - Professora-associada do Departamento de Dermatologia - Médica patologista - São Paulo (SP), Brasil

VIDoutora pela Universidade de São Paulo - Diretora técnica do Serviço de Saúde do Hospital das Clínicas - Chefe do Ambulatório de Dermatologia Pediátrica - São Paulo (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Juliana Nakano de Melo Rua Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - Sala 3.069, Pinheiros 05403-000 São Paulo (SP) - Brasil julinakano@yahoo.com.br

RESUMO

As lesões melanocíticas adquiridas podem apresentar aspecto clínico não-usual em pacientes portadores de epidermólise bolhosa hereditária. Essas lesões são conhecidas como "nevos EB" e, muitas vezes, constituem um desafio diagnóstico ao dermatologista por apresentarem características clínicas, dermatoscópicas e histopatológicas semelhantes às encontradas no melanoma. Não são exclusivas de nenhuma forma de epidermólise bolhosa e têm sua frequência aumentada na infância. Relata-se o caso de um doente do sexo masculino, de 6 meses de idade, portador da forma distrófica recessiva da doença, com lesão pigmentada de rápido crescimento na coxa esquerda. Optou-se por seguimento clínico da lesão, considerando que os aspectos clínicos, dermatoscópicos e histológicos eram compatíveis com a descrição de outros casos de nevo EB previamente descritos.

Palavras-chave: Epidermólise bolhosa distrófica; Nevo; Melanoma

INTRODUÇÃO

As epidermólises bolhosas hereditárias compreendem um grupo de doenças caracterizadas por fragilidade cutânea, podendo também acometer mucosas e outros órgãos do corpo. São transmitidas geneticamente, apresentando graus variáveis de severidade. Pequenos traumatismos podem levar à formação de bolhas e exulcerações. As EB distróficas são causadas por mutações no gene que codifica o colágeno VII e o modo de transmissão pode ser autossômico dominante ou recessivo. São divididas em 3 grandes subtipos: 1) EB distrófica dominante, 2) EB distrófica recessiva tipo Hallopeau-Siemens, 3) EB distrófica recessiva não-Hallopeau Siemens.

Em 2001, Bauer et al propuseram o termo 'nevo EB' para as lesões melanocíticas que se apresentavam em pacientes portadores de epidermólise bolhosa.1 Estas lesões são encontradas em todos os tipos de EB e sua importância clínica se dá pelo fato de compartilharem características clínicas, dermatoscópicas e histopatológicas, muitas vezes semelhantes às do melanoma cutâneo. No entanto, nesse estudo prospectivo de seguimento por 20 anos de 86 casos de epidermólise bolhosa, não foi evidenciado surgimento de nenhum caso de melanoma.

RELATO DE CASO

Doente do sexo masculino, de 6 meses de idade, branco, portador de epidermólise bolhosa distrófica recessiva. O diagnóstico de EB foi realizado por meio da história familiar, características clínicas e do imuno-mapeamento, utilizando-se anticorpos monoclonais contra o antígeno do penfigoide bolhoso, laminina, colágeno IV e colágeno VII.

Desde o nascimento, apresentava bolhas por todo o corpo, com acometimento também da mucosa oral. Aos 4 meses de vida, a mãe notou surgimento de lesão pigmentada no joelho esquerdo, de rápido crescimento. A lesão era assimétrica, de bordas irregulares, com coloração que variava entre vários tons de marrom a negro, medindo 14 x 7 cm (Figuras 1A e 1B).



Aos 5 meses de idade, a lesão havia crescido, estendendo-se até a panturrilha esquerda, medindo 14 x 11 cm. Ao exame clínico, notava-se assimetria do nevo, com bordas irregulares em padrão semelhante aos pseudópodes visualizados ao exame dermatoscópico (Figura 2A), além da presença de vários tons de marrom a negro.



À dermatoscopia, foi evidenciada lesão pigmentada melanocítica, com presença de estrias radiais, véu cinza-azulado, glóbulos negros e marrons e imagens semelhantes a pseudópodes (Figura 2B). Tais achados são encontrados, em frequência variável, em lesões cutâneas de melanoma maligno.

Foram realizadas biópsias de diferentes pontos da lesão em distintas ocasiões. Os exames histopatológicos mostraram presença de clivagem subepidérmica e melanócitos atípicos, tanto isolados quanto dispostos em ninhos ao longo da junção dermo-epidérmica, ocasionalmente dispostos também na epiderme. Na derme, não foram vistos melanócitos, apenas melanófagos. Devido à intensa pigmentação de algumas amostras, as lâminas foram submetidas a um preparado de peróxido de hidrogênio, de forma que passaram a ser evidentes melanócitos atípicos (Figuras 3 e 4).



Devido ao tamanho extenso do nevo, à recusa de tratamento cirúrgico pelos pais do paciente e baseados em descrições na literatura do comportamento biológico de outros nevos EB, optamos pelo seguimento clínico e histopatológico estrito da lesão pigmentada. Em um ano de seguimento, pudemos notar a diminuição importante da extensão da lesão. Após 4 anos de acompanhamento, outras modificações da lesão não ocorreram e a criança permanece em bom estado geral.

DISCUSSÃO

O nevo EB foi descrito primeiramente por Bauer et al? em 2001, como nevos melanocíticos adquiridos em pacientes portadores de todas as formas de epidermólise bolhosa hereditária. Não há predileção por sexo, mas a incidência de nevo EB é maior nas crianças acometidas com idade média de 7 e 11 anos, para portadores da forma distrófica recessiva e simples, respectivamente.2,3 As lesões parecem ter maior ocorrência nos locais de pele que sofrem mais traumatismos, com formação frequente de bolhas, cicatrizes e milia.

Estas lesões têm surgimento abrupto e tendem a crescer rapidamente, causando muitas vezes confusão diagnóstica com os melanomas cutâneos. São também, geralmente, lesões irregulares, de coloração variegada e, ocasionalmente, apresentam lesões satélites secundárias ao nevo EB primário. Os aspectos dermatoscópicos e histopatológicos apresentam alguns critérios semelhantes aos do melanoma, mas hoje já está bem estabelecido que tais critérios, quando presentes no nevo EB, são uma exceção para o diagnóstico de malignidade.4

Postula-se que a formação crônica de bolhas na epidermólise bolhosa provoque um processo inflamatório e/ou fibrose que alteraria os melanócitos. Ainda não se conhecem ao certo os mecanismos que levam a essa ativação anormal dos melanócitos. Nesse contexto, algumas teorias foram aventadas: 1) Com a formação da bolha na EB, a interrupção dos melanócitos nos sítios de clivagem funcionaria como um fenômeno de Köebner, levando então à estimulação da produção de melanócitos de forma atípica, 2) A formação da bolha na EB poderia causar a disseminação dos melanócitos já presentes na pele que, pela ação de citocinas inflamatórias liberadas no processo de reparação, proliferariam, levando ao surgimento do nevo EB.5,6

O nevo EB poderia ser explicado como uma colisão entre uma doença inflamatória e uma lesão pigmentada, que resulta em uma expressão atípica de nevo. Assim como o nevo EB, outras situações podem gerar nevos aparentemente atípicos, como no líquen escleroso e atrófico, coexistindo com nevos melanocíticos.7 Há também um paralelismo com casos de eritema polimorfo ou Síndrome de Stevens-Johnson, em que nevos de início abrupto surgem após a melhora do quadro cutâneo inflamatório inicial.8

Alguns autores preconizam o seguimento semestral de nevos EB, com realizações de biópsias das áreas mais pigmentadas quando os critérios dermatoscópicos forem bastante significantes.9 Não é preconizada a exérese profilática do nevo, visto que são pacientes com fragilidade cutânea e dificuldades para cicatrização da pele.

Está bem estabelecido que doenças inflamatórias crônicas que evoluem com cicatrizes, como as epidermólises bolhosas, têm risco aumentado de surgimento de carcinoma epidermoide.10 Alguns relatos sugerem que há risco maior para o desenvolvimento de melanoma na epidermólise bolhosa distrófica recessiva, porém, não existem casos bem documentados na literatura, ao contrário da associação com carcinoma epidermoide.11

Dermatologistas e patologistas devem conhecer o fenônemo do nevo EB, a fim de evitarem-se medidas terapêuticas desnecessárias e que acarretem aumento da morbidade para o paciente. Quando o diagnóstico de melanoma for considerado em um portador de epidermólise bolhosa, sempre se deve excluir a possibilidade de tratar-se de um nevo EB.

Lesões pigmentadas classificadas como nevos EB devem ter seguimento clínico, dermatoscópico e histopatológico, levando-se em conta que, muitas vezes, trata-se de nevos extensos que impossibilitam tratamento cirúrgico. Deve-se também considerar o comportamento benigno da lesão, com regressão espontânea em muitos casos, como ocorreu com o paciente descrito.

Recebido em 25.03.2010.

Aprovado pelo Conselho Editorial e aceito para publicação em 14.07.2010.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

  • 1. Bauer JW, Schaeppi H, Kaserer C, Hantich B, Hintner H. Large melanocytic nevi in hereditary epidermolysis bullosa. J Am Acad Dermatol. 2001;44:577-584.
  • 2. Hoss DM, McNutt NS, Carter DM, Rothaus KO, Kenet BJ, Lin AN. Atypical melanocytic lesions in epidermolysis bullosa. J Cutan Pathol. 1994;21:164-9.
  • 3. Stavrianeas NG, Katoulis AC, Moussatou V, Bozi E, Petropoulou H, Limas C, et al. Eruptive large melanocytic nevus in a patient with hereditary epidermolysis bullosa simplex. Dermatology. 2003;207:402-4.
  • 4. Cash SH, Dever TT, Hyde P, Lee JB. Epidermolysis bullosa nevus: an exception to the clinical and dermoscopic criteria for melanoma. Arch Dermatol. 2007;143:1164-7.
  • 5. Soltani K, Pepper MC, Simjee S, Apatoff BR. Large acquired nevocytic nevus induced by the Koebner phenomenon. J Cutan Pathol. 1984;11:296-9.
  • 6. Lanschuetzer CM, Emberger M, Hametner R, Klausegger A, Pohla-Gubo G, Hintner H, et al. Pathogenic mechanisms in epidermolysis bullosa naevi. Acta Derm Venereol. 2003;83:332-7.
  • 7. Carlson JA, Mu XC, Slominski A, Weismann K, Crowson AN, Malfetano J, et al. Melanocytic proliferations associated with lichen sclerosus. Arch Dermatol. 2002;138:77-87.
  • 8. Shoji T, Cockerell CJ, Koff AB, Bhawan J. Eruptive melanocytic nevi after Stevens- Johnson syndrome. J Am Acad Dermatol. 1997;37(2 Pt 2):337-9.
  • 9. Lanschuetzer CM, Laimer M, Nischler E, Hintner H. Epidermolysis bullosa nevi. Dermatol Clin. 2010;28:179-83. Review.
  • 10. Fine JD, Johnson LB, Tien H, Suchindran C, Bauer EA, Carter DM, et al. Skin cancer and inherited epidermolysis bullosa (EB): analysis of the National EB Registry cohort by disease type and subtype [abstract 12]. J Invest Dermatol. 1994;103:846.
  • 11. Chorny JA, Shroyer KR, Golitz LE. Malignant melanoma and a squamous cell carcinoma in recessive dystrophic epidermolysis bullosa. Arch Dermatol. 1993;129:1212.
  • Endereço para correspondência:
    Juliana Nakano de Melo
    Rua Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - Sala 3.069, Pinheiros
    05403-000 São Paulo (SP) - Brasil
  • *
    Trabalho realizado no Departamento de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo - Ambulatório de Dermatologia Pediátrica.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Aceito
      14 Jul 2010
    • Recebido
      25 Mar 2005
    Sociedade Brasileira de Dermatologia Av. Rio Branco, 39 18. and., 20090-003 Rio de Janeiro RJ, Tel./Fax: +55 21 2253-6747 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revista@sbd.org.br