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Esporotricose na gestação: relato de cinco casos numa epidemia zoonótica no Rio de Janeiro, Brasil

Resumos

Os autores apresentam cinco casos de esporotricose em gestantes numa epidemia zoonótica no Rio de Janeiro. São discutidos principalmente os aspectos clínicos e as dificuldades na escolha terapêutica desse grupo específico de pacientes.

Anfotericina B; Esporotricose; Gestantes; Resultado de tratamento; Terapêutica


Five cases of sporotrichosis occurring in pregnant women in a zoonotic epidemic in Rio de Janeiro, Brazil, are described. The main clinical features, as well as the challenging therapeutic choices for this specific group of patients, are discussed.

Amphotericin B; Pregnant women; Sporotrichosis; Therapeutics; Treatment outcome


CASO CLÍNICO

Esporotricose na gestação: relato de cinco casos numa epidemia zoonótica no Rio de Janeiro, Brasil* * Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto - Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Hupe-Uerj) e no Laboratório de Micologia Celular e Proteômica do Departamento de Biologia Celular e Genética do Instituto de Biologia Roberto Alcântara Gomes (Ibrag-Uerj) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Rosane Orofino CostaI; Andrea Reis Bernardes-EngemannII; Luna Azulay-AbulafiaIII; Fabiana BenvenutoIV; Maria de Lourdes Palermo NevesV; Leila Maria Lopes-BezerraVI

IDoutora; professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIDoutora; professora visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIIDoutora; professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IVBióloga da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

VMestranda da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

VIDoutora; professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Correspondência Endereço para Correspondência: Rosane Orofino Av. 28 de Setembro, 87, 2º andar - Vila Isabel 20551-030 Rio de Janeiro, RJ E-mail: micologia@uerj.br

RESUMO

Os autores apresentam cinco casos de esporotricose em gestantes numa epidemia zoonótica no Rio de Janeiro. São discutidos principalmente os aspectos clínicos e as dificuldades na escolha terapêutica desse grupo específico de pacientes.

Palavras-chave: Anfotericina B; Esporotricose; Gestantes; Resultado de tratamento; Terapêutica

INTRODUÇÃO

A esporotricose sempre foi considerada uma doença ocupacional e de perfil fortemente rural; contudo, desde 1997 a cidade do Rio de Janeiro vivencia uma epidemia de transmissão zoonótica por felinos, considerada rara em outras partes do mundo e antes com uma frequência de cerca de um caso/ano. Marques e cols.1 publicaram, em 1998, dois casos de transmissão felina observados em um casal habitante de área rural do interior de São Paulo. Tem-se observado uma diversidade de apresentações clínicas, inclusive com formas extracutâneas, que não eram comuns até antes do início dessa epidemia em 1997. Alguns grupos de risco evoluem com manifestações clínicas graves e muitas vezes fatais, como pacientes idosos, com aids ou com outras comorbidades. As mulheres, por serem as que geralmente cuidam dos animais, são as mais susceptíveis à infecção. Relatamos a ocorrência de cinco casos clínicos dessa micose em gestantes, abordando seus aspectos clínicos e sorológicos e a dificuldade na escolha terapêutica.

RELATO DOS CASOS

Durante o período de 1997 a 2009, foram diagnosticados no Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro, 171 casos de esporotricose, sendo cinco em gestantes. Destas, quatro relataram contato com animal doente (gato) e uma, com gato aparentemente sadio. Uma paciente era veterinária e contraiu a doença ao tratar o animal profissionalmente. Iniciou tratamento com terbinafina e descobriu a gestação em vigência do uso de terbinafina oral. A gestação foi a termo e o parto, normal. A idade gestacional variou de três a 24 semanas e a média de idade dessas pacientes foi de 29,2 anos, havendo predomínio da forma linfocutânea em 80% (Figura 1). Em nenhuma delas havia sinal de doença sistêmica, exceto por poliartrite diagnosticada como artrite reativa. O diagnóstico de todos os casos foi confirmado pelo isolamento do Sporothrix schenckii da lesão cutânea. Realizamos, também, sorologia segundo metodologia descrita por Bernardes-Engemann e col., que consiste na detecção de IgG para o antígeno SsCBF, isolado da parede do S. schenckii.2 Os títulos mais altos foram encontrados na paciente cuja manifestação clínica era mais extensa. Nas outras, os títulos eram baixos. Houve um caso de título falso-negativo. Três pacientes foram tratadas com antifúngico sistêmico e duas apenas com tratamento conservador, a termoterapia. Todas as pacientes levaram a gestação a termo e, à exceção de uma que não recebeu tratamento sistêmico, seus filhos nasceram sadios. A morte dessa criança não teve relação com a esporotricose. Não houve necessidade de continuar o tratamento após o parto em nenhuma paciente, isto é, todas ficaram curadas (Figuras 2 e 3). Os aspectos mais importantes dos casos clínicos encontram-se resumidos no quadro 1.





DISCUSSÃO

O quadro clínico das gestantes com esporotricose humana transmitida pelo gato não difere do da esporotricose clássica, predominando as formas linfocutâneas. Na série de casos de Barros e cols., dos 178 pacientes com esporotricose atendidos entre 1998 e 2001, apenas uma paciente estava grávida (0,56%) e foi tratada com termoterapia, havendo resolução total das lesões na série apresentada.3 Na nossa casuística, houve um aumento do número de gestantes acometidas, embora o período estudado por nós tenha sido um pouco maior. De 171 pacientes diagnosticados entre 1997 e 2009, cinco eram gestantes (2,92%). Ainda assim pode ser considerada doença infecciosa incomum na gravidez. Plauché, em 1986, descreveu uma gestante tratada com iodeto de potássio; apesar das contraindicações, a criança nasceu a termo e saudável.4 Roming e cols. em 1972 e, posteriormente, Vanderveen e cols. em 1982 descreveram a termoterapia como uma opção terapêutica da esporotricose na gravidez.5,6 Mais recentemente, num relato de nove casos de esporotricose publicado por Agarwal e cols. em 2008, uma paciente era gestante (11,11%) e foi tratada com calor local, obtendo cura das lesões.7 A terapia com calor local se baseia na termotolerância dos fungos e foi primeiramente descrita para tratamento da cromomicose por Tagami e cols., em 1979.8 Atualmente, pode ser indicada como opção terapêutica eficaz nas micoses subcutâneas em indivíduo hígido com lesões localizadas. A escolha do tratamento deve basear-se na apresentação clínica, no status imunológico da gestante e na possibilidade de riscos materno-fetais, tanto pelo medicamento quanto pela infecção.9 Na gravidez, o ideal é não medicar, principalmente se a doença não vai afetar a saúde maternofetal. Por isso, é importante reunir os especialistas interessados - obstetra, dermatologista, infectologista - para que haja ampla discussão e consenso sobre a necessidade de instituir algum tratamento, em especial se ele for de uso sistêmico. Essa foi a nossa conduta. A terapia com azólicos nas gestantes deve ser evitada devido a seu potencial teratogênico e embriotóxico, sendo todos considerados categoria C. O uso da solução saturada de iodeto de potássio é contraindicado, pois está associado a hipotireoidismo neonatal, tireomegalia, obstrução respiratória fetal e parto prolongado, estando entre as drogas da categoria D. Não há relatos do uso da terbinafina na gestação, sendo considerada categoria B, o que significa que não há estudos sobre sua segurança nesse grupo de pacientes e, portanto, seus efeitos sobre o feto são desconhecidos.10 A paciente do nosso estudo que foi tratada com terbinafina engravidou no decurso do tratamento da esporotricose, de maneira não intencional. A anfotericina B é a droga mais efetiva no tratamento da esporotricose sistêmica. Não há relatos sobre efeitos deletérios ao feto, sendo recomendada no tratamento da esporotricose grave durante a gestação, embora a frequência de seus efeitos adversos, tais como hiperpirexia, náuseas, vômito, anemia e toxicidade renal, limite sua escolha no tratamento da doença localizada. Na série de casos aqui relatados não houve prejuízo materno-fetal com nenhuma abordagem terapêutica. A morte de uma criança não parece ter relação com a infecção, pois a lesão estava involuindo espontaneamente e a gestante não recebeu medicação sistêmica, apenas calor local. Nesse caso, o tratamento medicamentoso poderia ter sido implicado como causa da morte fetal. Não está claro até o momento se há qualquer interferência da infecção fúngica sobre o feto, além de se desconhecer uma possível transferência placentária. Não é possível prever, numa gestante, as consequências da infecção extracutânea mais grave e seu tratamento, principalmente como as que temos visto nos imunossuprimidos durante a epidemia. Atualmente, apenas duas formas de tratamento podem ser recomendadas às gestantes: calor local ou anfotericina B.11 Se a lesão for pequena e localizada e a gestante não apresentar outras intercorrências, o ideal é que seja adotado tratamento conservador com calor local até a época do parto, quando, então, a evolução clínica poderá ser reavaliada. Os testes sorológicos realizados por nosso grupo têm mostrado boa correlação clínico-evolutiva e são úteis sobretudo nos casos de dificuldade diagnóstica, como triagem, ou para acompanhamento de casos incomuns, já que podem ser realizados no soro ou em outros líquidos orgânicos, como, por exemplo, o líquido sinovial.2,12 Têm mostrado títulos altos nos casos de doença disseminada. O relato desses casos tem como objetivo expor as dificuldades na conduta terapêutica em situações especiais de uma doença emergente e chamar a atenção para um novo grupo de risco dessa epidemia.

REFERÊNCIAS

1. Marques SA, Camargo RMP, Haddad Junior V, Marques MEA, Rocha NS, Franco SRVS. Esporotricose humana: transmitida por felino. An Bras Dermatol. 1998;73:559-64.

2. Bernardes-Engemann AR, Costa RC, Miguens BR, Penha CV, Neves E, Pereira BA, et al. Development of an enzyme-linked immunosorbent assay for the serodiagnosis of several clinical forms of sporotrichosis. Med Mycol. 2005;43:487-93.

3. Barros MB, Schubach Ade O, do Valle AC, Gutierrez Galhardo MC, Conceição-Silva F, Schubach TM, et al. Cat-transmitted sporotrichosis epidemic in Rio de Janeiro, Brazil: description of a series of cases. Clin Infect Dis. 2004;38:529-35.

4. Plauché WC. Sporotrichosis in pregnancy. Am J Obstet Gynecol. 1968;100:1150-1.

5. Romig DA, Voth DH, Liu C. Facial sporotrichosis during pregnancy. A therapeutic dilemma. Arch Intern Med. 1972;130:910-2.

6. Vanderveen EE, Messenger AL, Voorhees JJ. Sporotrichosis in pregnancy. Cutis. 1982;30:761-3.

7. Agarwal S, Gopal K, Umesh, Kumar B. Sporotrichosis in Uttarakhand (India): a report of nine cases. Int J Dermatol. 2008;47:367-71.

8.Tagami H, Ohi M, Aoshima T, Moriguchi M, Suzuki N, Yamada M. Topical heat therapy for cutaneous chromomycosis. Arch Dermatol. 1979;115:740-1.

9. King CT, Rogers PD, Cleary JD, Chapman SW. Antifungal therapy during pregnancy. Clin Infect Dis. 1998;27:1151-60.

10. Bennett JE. Antifungal Agents. In: Brunton, LL, Lazo JS, Parker KL, editors. Goodman and Gilman′s The Pharmacological Basis of Therapeutics. 11th ed. New York: McGraw-Hill; 2006. p.1240.

11. Kauffman CA, Bustamante B, Chapman SW, Pappas PG; Infectious Diseases Society of America. Clinical practice guidelines for the management of sporotrichosis: 2007 update by the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2007;45:1255-65.

12. Costa RO, de Mesquita KC, Damasco PS, Bernardes-Engemann AR, Dias CM, Silva IC, et al. Infectious arthritis as the single manifestation of sporotrichosis: serology from serum sample and synovial fluid as an aid to diagnosis. Rev Iberoam Micol. 2008;25:54-6.

Recebido em 03.03.2010.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 21.06.2010.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Ministério da Saúde/Faperj

  • 1. Marques SA, Camargo RMP, Haddad Junior V, Marques MEA, Rocha NS, Franco SRVS. Esporotricose humana: transmitida por felino. An Bras Dermatol. 1998;73:559-64.
  • 2. Bernardes-Engemann AR, Costa RC, Miguens BR, Penha CV, Neves E, Pereira BA, et al. Development of an enzyme-linked immunosorbent assay for the serodiagnosis of several clinical forms of sporotrichosis. Med Mycol. 2005;43:487-93.
  • 3. Barros MB, Schubach Ade O, do Valle AC, Gutierrez Galhardo MC, Conceição-Silva F, Schubach TM, et al. Cat-transmitted sporotrichosis epidemic in Rio de Janeiro, Brazil: description of a series of cases. Clin Infect Dis. 2004;38:529-35.
  • 4. Plauché WC. Sporotrichosis in pregnancy. Am J Obstet Gynecol. 1968;100:1150-1.
  • 5. Romig DA, Voth DH, Liu C. Facial sporotrichosis during pregnancy. A therapeutic dilemma. Arch Intern Med. 1972;130:910-2.
  • 6. Vanderveen EE, Messenger AL, Voorhees JJ. Sporotrichosis in pregnancy. Cutis. 1982;30:761-3.
  • 7. Agarwal S, Gopal K, Umesh, Kumar B. Sporotrichosis in Uttarakhand (India): a report of nine cases. Int J Dermatol. 2008;47:367-71.
  • 8.Tagami H, Ohi M, Aoshima T, Moriguchi M, Suzuki N, Yamada M. Topical heat therapy for cutaneous chromomycosis. Arch Dermatol. 1979;115:740-1.
  • 9. King CT, Rogers PD, Cleary JD, Chapman SW. Antifungal therapy during pregnancy. Clin Infect Dis. 1998;27:1151-60.
  • 11. Kauffman CA, Bustamante B, Chapman SW, Pappas PG; Infectious Diseases Society of America. Clinical practice guidelines for the management of sporotrichosis: 2007 update by the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2007;45:1255-65.
  • 12. Costa RO, de Mesquita KC, Damasco PS, Bernardes-Engemann AR, Dias CM, Silva IC, et al. Infectious arthritis as the single manifestation of sporotrichosis: serology from serum sample and synovial fluid as an aid to diagnosis. Rev Iberoam Micol. 2008;25:54-6.
  • Endereço para Correspondência:
    Rosane Orofino
    Av. 28 de Setembro, 87, 2º andar - Vila Isabel
    20551-030 Rio de Janeiro, RJ
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    Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto - Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Hupe-Uerj) e no Laboratório de Micologia Celular e Proteômica do Departamento de Biologia Celular e Genética do Instituto de Biologia Roberto Alcântara Gomes (Ibrag-Uerj) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Recebido
      03 Mar 2010
    • Aceito
      21 Jun 2010
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