Acessibilidade / Reportar erro

Microepidemia familiar por Trichophyton tonsurans

Resumos

Trichophyton tonsurans é um fungo dermatófito antropofílico de alta transmissibilidade que invade tecidos queratinizados. Relatamos um caso de microepidemia familiar causada por esse dermatófito no qual, apesar das ótimas condições de higiene, o fungo se manteve viável por vários anos, disseminando-se para todos os membros da família. A hipótese de que estivesse sendo mantido na residência da família foi confirmada após análise de amostras do domicílio, em que foram isoladas e identificadas culturas puras do fungo. Após o diagnóstico, a residência foi desinfetada e todos os membros da família receberam tratamento oral concomitantemente.

Família; Terapêutica; Tinha; Trichophyton


Trichophyton tonsurans is a highly transmissible anthropophilic dermatophyte fungus, which invades keratinized tissues. This study reports a case of family microepidemic caused by this dermato phyte. Despite their excellent hygiene conditions, it remained active for several years, spreading to all family members. The hypothesis that the fungus was being kept alive in the family home was confirmed after samples collected from it were analyzed. Pure cultures of the fungus were isolated and identified. After diagnosis, the house was disinfected with concomitant oral treatment for all family members.

Family; Therapeutics; Tinea; Trichophyton


CASO CLÍNICO

Microepidemia familiar por Trichophyton tonsurans* * Trabalho realizado no Laboratório de Micologia Médica do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Análises Clínicas da Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Maringá (PR), Brasil.

Tânia Pereira SalciI; Maria Aparecida SalciII; Sonia Silva MarconIII; Paulo Hércules Biagi SalineiroIV; Terezinha Inez Estivalet SvidzinskiV

IMestranda em biociências aplicadas à farmácia - Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Maringá (PR), Brasil

IIMestre; docente do Departamento de Enfermagem - Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Maringá (PR), Brasil

IIIDoutora; docente do Departamento de Enfermagem - Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Maringá (PR), Brasil

IVEspecialista; bioquímico do Hospital Universitário de Maringá - Universidade Estadual de Maringá (HUM-UEM) - Maringá (PR), Brasil

VDoutora; docente do programa de pós-graduação em biociências aplicadas à farmácia - Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Maringá (PR), Brasil

Correspondência Endereço para Correspondência: Tânia Pereira Salci Av. Colombo, 5.790, bloco J90, sala 11 Jardim Universitário 87020-900 Maringá, PR E-mail: taniasalci@yahoo.com.br

RESUMO

Trichophyton tonsurans é um fungo dermatófito antropofílico de alta transmissibilidade que invade tecidos queratinizados. Relatamos um caso de microepidemia familiar causada por esse dermatófito no qual, apesar das ótimas condições de higiene, o fungo se manteve viável por vários anos, disseminando-se para todos os membros da família. A hipótese de que estivesse sendo mantido na residência da família foi confirmada após análise de amostras do domicílio, em que foram isoladas e identificadas culturas puras do fungo. Após o diagnóstico, a residência foi desinfetada e todos os membros da família receberam tratamento oral concomitantemente.

Palavras-chave: Família; Terapêutica; Tinha; Trichophyton

INTRODUÇÃO

Dermatófitos são fungos que causam micoses cutâneas principalmente em pele, cabelos e unhas, invadindo esses tecidos e usando a queratina como substrato. São classificados em três gêneros: Trichophyton, Microsporum e Epidermophyton. São caracterizados como de origem antropofílica, zoofílica ou geofílica, quando provenientes do homem, animal ou solo respectivamente. O gênero Trichophyton é composto por várias espécies, sendo a principal T. rubrum; contudo, o considerável aumento de isolamento de T. tonsurans vem tornando-se um fenômeno mundial, fazendo dele um importante objeto de estudo.1,2 Essa espécie pode causar dermatofitoses associadas à pele e à unha, mas é principalmente isolada de infecções do couro cabeludo, sobretudo em crianças em idade escolar.1,2,3

A integridade da epiderme comporta-se como barreira natural. No entanto, a eficiência da dispersão fúngica está estreitamente relacionada à alta produção de elementos de disseminação, sendo que a umidade local é pré-requisito para a inoculação e sobrevivência do dermatófito na pele. Além disso, hábitos de higiene e fatores imunológicos também influenciam na instalação, perpetuação e disseminação de uma dermatofitose.

Por não se tratar de uma doença de notificação obrigatória, estudos científicos epidemiológicos contribuem para melhor entender sua distribuição mundial. Dessa forma observamos que a ocorrência de T. tonsurans é mais frequentemente relatada em países como os EUA, Reino Unido, Haiti e Japão.4,5,6,7 No Brasil, observamos predominância no isolamento desse fungo nas regiões Norte e Nordeste, porém é também isolado como agente de tinha do couro cabeludo em diferentes regiões do país: Sudeste e Sul.1,2,3,8,9

No presente relato apresentamos um caso de microepidemia familiar por T. tonsurans envolvendo todos os membros de uma família em que, apesar das ótimas condições de higiene, o fungo se manteve viável por vários anos.

RELATO DO CASO

Lactente com quatro meses de idade foi levado ao dermatologista por apresentar lesões em couro cabeludo. As lesões eram do tipo placas de tonsuras circulares, múltiplas, bem delimitadas e pruriginosas. Os cabelos haviam-se rompido a poucos milímetros do couro cabeludo (Figura 1A).


Na consulta, chamaram a atenção do especialista pequenas lesões hipercrômicas observadas na pele da mãe em várias partes do corpo, especialmente nos braços, local que ficava em contato com a cabeça da criança durante a amamentação (Figura 1B). A mãe informou que as lesões existiam havia 17 anos, eram intermitentes e foram tratadas empiricamente por várias vezes como "alergia".

Ambos foram encaminhados ao Lepac (Laboratório de Ensino e Pesquisa de Análises Clínicas) da Universidade Estadual de Maringá para coleta de amostras biológicas (raspado de escamas das lesões de pele da mãe e fragmentos dos pelos tonsurados do bebê), a fim de investigar a presença de fungos. Foram realizados o exame micológico direto e a cultura (Figura 2) na presença e na ausência de inibidores. Em todas as amostras foram isolados fungos filamentosos com caracteres morfológicos de T. tonsurans.


A investigação na família foi sugerida, sendo então realizada coleta de amostras do irmão com sete anos de idade e do pai, pois ambos apresentavam lesões na superfície corporal: couro cabeludo e membros superiores, respectivamente (Figuras 3A e 3B). Os resultados foram idênticos aos encontrados nas amostras biológicas da mãe e do bebê.


A hipótese mais plausível foi que o dermatófito estivesse sendo mantido na própria residência da família. Assim, na sequência foram coletadas amostras de vários locais do domicílio para confirmação. Discos de algodão compactado de 60 mm de diâmetro, esterilizados em autoclave a 121 ºC por 15 minutos, foram pressionados por 30 segundos com uma pinça esterilizada nos locais a serem amostrados. A seguir cada disco de algodão foi colocado sobre a superfície de uma placa de Petri contendo meio de cultura Sabouraud-dextrose-ágar acrescido de 0,2 mg/l de cloranfenicol. Ao todo foram coletadas 57 amostras do ambiente, incluindo telefone, maçanetas, sofás, brinquedos, tapetes, cortinas, carrinho de passeio do bebê, cabeceira da cama, pentes e rodapés de todos os cômodos da residência.

Foram isoladas e identificadas 13 culturas puras com fungos do mesmo gênero e espécie das amostras oriundas dos pacientes. Do ambiente, os fungos foram isolados dos seguintes sítios: tapetes, cortinas, carrinho de passeio do bebê, cabeceira da cama, rodapés de diversos cômodos e pentes.

Os pacientes foram tratados, sendo que o lactente recebeu griseofulvina 11 mg/kg/dia durante seis semanas. Aos demais foi prescrito itraconazol 100 mg/dia pelo período de 12 semanas. A eficácia da medicação foi avaliada pela melhora clínica das lesões e também pela confirmação laboratorial de que o micro-organismo não foi mais detectado em cultura.

Para garantir que o fungo fosse totalmente erradicado, roupas de uso pessoal, de cama e de banho foram desinfetadas em água sanitária, e calçados foram lavados e borrifados com formol comercial (lysoformio®). Os móveis de madeira foram lavados com água sanitária e a seguir com querosene. O piso da casa toda foi lavado dessa mesma forma e a seguir foi enxaguado com água limpa contendo cerca de 5% de lysoformio®. Depois desse tratamento, a casa foi fechada por uma semana, sendo então realizada nova limpeza com água e sabão. A família foi acompanhada por um ano e nesse período nenhum dos integrantes apresentou recidiva da patologia.

DISCUSSÃO

Os fatos nos levam a inferir que esse fungo antropofílico tenha-se mantido no tecido córneo da mulher adulta, manifestando-se de forma intermitente sem nunca ter sido corretamente diagnosticado. Acreditamos que a partir dessa fonte houve disseminação do patógeno para os demais membros da família, caracterizando uma microepidemia familiar.

Em adolescentes e adultos, T. tonsurans costuma manter-se assintomaticamente, dificultando o controle da infecção.3 Já em crianças e lactentes, a infecção é característica e clinicamente importante, especialmente devido à imaturidade hormonal.

Tendo em vista sua transmissibilidade, T. tonsurans tem sido responsável por infecções epidêmicas em praticantes de judô em diversas cidades do Japão. Foi também isolado de epidemia em uma escola infantil de Paris, em um orfanato no Brasil e de uma epidemia envolvendo pacientes e trabalhadores de um hospital.7,8,10,11

Além desses, no Reino Unido foi relatado um caso de uma família de veterinários e duas crianças que foram simultaneamente infectados por T. tonsurans.12

A dermatofitose pode ser favorecida pela pobreza, má nutrição e precários hábitos de higiene.1 Ao contrário disso, a família em questão é de classe social média, com alto grau de escolaridade e muito bem esclarecida sobre questões de saúde e higiene. A mãe era quem fazia os serviços domésticos, sendo extremamente cautelosa e cuidadosa em relação à limpeza e desinfecção. Entretanto, destacamos que o fungo foi isolado em sítios porosos, onde é possível a retenção de matéria orgânica, o que garantiu a sua preservação. Notar que no telefone, nas maçanetas e nos brinquedos, superfícies suspeitas de veicular micro-organismos devido ao uso compartilhado, não foi encontrado o fungo, evidenciando as boas condições de higiene. Nessas superfícies lisas a remoção é mais fácil que nas porosas.

De fato, T. tonsurans sobrevive com facilidade fora do hospedeiro, por isso foi possível isolá-lo de diferentes locais da residência da família avaliada. Segundo Pontes, foi o único fungo antropofílico isolado em amostras de solo de locais públicos, juntamente com fungos geofílicos ou zoofílicos. Esse achado foi atribuído à presença de muitas pessoas nos locais avaliados, onde resíduos de material orgânico, como escamas de pele e pelos, favorecem seu crescimento e manutenção.13

Dessa forma, a transmissão do patógeno dentro do grupo familiar pode ter ocorrido de forma indireta (fômites espalhados na residência) ou direta (portadores assintomáticos), como ocorre em epidemias familiares e em contextos sociais restritos.

Seguindo nossa experiência, os pacientes adultos e o menino de sete anos foram tratados com itraconazol oral, dada sua efetividade e segurança.14 Já no lactente o tratamento foi feito com griseofulvina. De acordo com Gupta, essa droga é a primeira escolha para crianças, desde que haja adequação da dosagem e monitoração do tratamento.15 A remissão da doença em todos os membros da família foi acompanhada por um ano após o tratamento, comprovando a importância da desinfecção do ambiente, paralela ao tratamento, para exterminação das fontes de reinfecção.

Destaca-se também a necessidade do diagnóstico por meio de exames laboratoriais adequados, tendo em vista que a cultura é fundamental para a definição do diagnóstico diferencial e também do estado de portador assintomático. Esse conhecimento define a adoção de medidas adequadas para o combate do fungo, evitando a sua perpetuação e disseminação.

Recebido em 17.06.2010.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 08.08.10.

Conflito Interesses: Nenhum

Suporte Financeiro: Fundação Araucária

  • 1. Chimelli PAV, Sofiatti AA, Nunes RS, Martins JEC. Dermatophyte agents in the city of São Paulo from 1992 to 2002. Rev Inst Med Trop São Paulo. 2003;45:259-63.
  • 2. Brilhante RSN, Paixão GC, Salvino LK, Diógenes MJN, Bandeira SP, Rocha MFG, et al. Epidemiologia e ecologia das dermatofitoses na cidade de Fortaleza: o Trichophyton tonsurans como importante patógeno emergente da Tinea capitis. Rev Soc Bras Med Trop. 2000;33:417-25.
  • 3. Bergerson CL, Fernandes NC. Tinea capitis: study of asymptomatic carriers and sick adolescents, adults and elderly who live with children with the disease. Rev Inst Med Trop São Paulo. 2001;43:87-91.
  • 4. Coloe JR, Diab M, Moennich J, Diab D, Pawaskar M, Balkrishnan R, et al. Tinea capitis among children in the Columbus area, Ohio, USA. Mycoses. 2010;53:158-62.
  • 5. Fuller LC. Changing face of Tinea capitis in Europe. Curr Opin Infect Dis. 2009;22:115-8.
  • 6. Raccurt CP, Dorsainvil D, Boncy M, Boncy J, Auguste G. The emergence of Trichophyton tonsurans in Port-au-Prince, Haiti. Med. Mycol. 2009;47:197-200.
  • 7. Shinoda H, Nishimoto, Mochizuki T. Screening examination of Trichophyton tonsurans among Judo practitioners at the All Japan Inter High School Championships, Saga 2007. Nippon Ishinkin Gakkai Zasshi. 2008;49:305-9.
  • 8. Towersey L, Hay RJ, Monteiro MH, Lago MB, Martins ECS, Estrella RR. Outbreak of Tinea capitis by Trichophyton tonsurans and Microsporum canis in Niteroi, RJ, Brazil. Rev Inst Med Trop São Paulo. 1992;34:233-8.
  • 9. Oliveira CP, Guilhermetti E, Kioshima ES, Pedra MR, Svidzinski TIE. Tinea capitis em Maringá, Paraná: um estudo de 11 anos. An Bras Dermatol. 2002;77:321-8.
  • 10. Viguié-Vallanet C, Serre M, Masliah L, Tourte-Schaefer C. Epidemic of Trichophyton tonsurans tinea capitis in a nursery school in the Southern suburbs of Paris. Ann Dermatol Venereol. 2005;132:432-8.
  • 11. Lewis SM, Lewis BG. Nosocomial transmission of Trichophyton tonsurans tinea corporis in a rehabilitation hospital. Infect Control Hosp Epidemiol. 1997;18:322-5.
  • 12. Ravenscroft J, Goodfieldand MJD, Evans EGV. Trichophyton tonsurans Tinea Capitis and Tinea Corporis: Treatment and follow-up of four affected family members. Pediatr Dermatol. 2001;17:407-9.
  • 13. Pontes ZBS, Oliveira AC. Dermatophytes from urban soils in João Pessoa, Paraíba, Brazil. Rev Argent Microbiol. 2008;40:161-3.
  • 14. Gupta AK, Hofstader SL, Adam P, Summerbell RC. Tinea capitis: an overview with emphasis on management. Pediatr Dermatol. 1999;16:171-89.
  • 15. Gupta AK, Cooper EA, Bowen JE. Meta-analysis: griseofulvin efficacy in the treatment of tinea capitis. J Drugs Dermatol. 2008;7:369-72.
  • Endereço para Correspondência:
    Tânia Pereira Salci
    Av. Colombo, 5.790, bloco J90, sala 11 Jardim Universitário
    87020-900 Maringá, PR
    E-mail:
  • *
    Trabalho realizado no Laboratório de Micologia Médica do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Análises Clínicas da Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Maringá (PR), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Recebido
      17 Jun 2010
    • Aceito
      08 Ago 2010
    Sociedade Brasileira de Dermatologia Av. Rio Branco, 39 18. and., 20090-003 Rio de Janeiro RJ, Tel./Fax: +55 21 2253-6747 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revista@sbd.org.br