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Ocorrência simultânea de necrobiose lipoídica ulcerada e granuloma anular em um paciente: relato de caso

Resumos

Ocorrência simultânea de granuloma anular e necrobiose lipoídica é rara. Sete casos dessa associação foram encontrados na literatura, sendo somente um de necrobiose lipoídica ulcerada. Relata-se caso de concomitância de granuloma anular e necrobiose lipoídica ulcerada, não associada a diabetes mellitus, em paciente masculino de 39 anos, com confirmação histopatológica.

Diabetes mellitus; Granuloma anular; Necrobiose lipoídica; Úlcera cutânea


Simultaneous occurrence of granuloma annulare and necrobiosis lipoidica is quite rare. There are seven reported cases in the literature, but only one presenting ulcerated necrobiosis lipoidica. We report a 39-year-old male with histopathologically confirmed granuloma annulare and ulcerated necrobiosis lipoidica, without diabetes mellitus.

Diabetes mellitus; Granuloma annulare; Necrobiosis lipoidica; Skin ulcer


CASO CLÍNICO

Ocorrência simultânea de necrobiose lipoídica ulcerada e granuloma anular em um paciente - relato de caso* * Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba - Faculdade Evangélica do Paraná (Huec-Fepar) - Curitiba (PR), Brasil.

Fernanda Homem de Mello de SouzaI; Camila Ferrari RibeiroII; Marcela Abou Chami PereiraIII; Lismary MesquitaIV; Lincoln FabrícioV

IMédica especialista em dermatologia - Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba - Faculdade Evangélica do Paraná (Huec-Fepar) - Curitiba (PR), Brasil

IIEspecializanda em dermatologia do Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba - Faculdade Evangélica do Paraná (Huec-Fepar) - Curitiba (PR), Brasil

IIIMédica especialista em dermatologia do Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba - Faculdade Evangélica do Paraná (Huec-Fepar) - Curitiba (PR), Brasil

IVMédica patologista do Serviço de Dermatologia do Hospital de Caridade da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba - Curitiba (PR), Brasil

VMédico especialista em dermatologia; chefe do Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba - Faculdade Evangélica do Paraná (Huec-Fepar) - Curitiba (PR), Brasil

Correspondência Endereço para Correspondência: Fernanda Homem de Mello de Souza R. Gal. Polli Coelho, 355, Tarumã 82800-180 Curitiba, PR E-mail: nandahms@gmail.com

RESUMO

Ocorrência simultânea de granuloma anular e necrobiose lipoídica é rara. Sete casos dessa associação foram encontrados na literatura, sendo somente um de necrobiose lipoídica ulcerada. Relata-se caso de concomitância de granuloma anular e necrobiose lipoídica ulcerada, não associada a diabetes mellitus, em paciente masculino de 39 anos, com confirmação histopatológica.

Palavras-chave: Diabetes mellitus; Granuloma anular; Necrobiose lipoídica; Úlcera cutânea

INTRODUÇÃO

Granuloma anular (GA) e necrobiose lipoídica (NL) são condições patológicas de etiologia não esclarecida. Apresentam achados histopatológicos similares, e em alguns casos assemelham-se clinicamente. NL tem associação com diabetes mellitus (DM) e sua forma ulcerada pode ocorrer em até 35% dos pacientes. Há poucos casos na literatura de associação dessas duas doenças, sendo ainda mais rara a concomitância de GA e NL ulcerada.1-7 Relata-se caso dessa concomitância não associada a DM.

RELATO DO CASO

Homem de 39 anos relatava surgimento, havia oito anos, de lesões cutâneas assintomáticas no abdome e membros. Havia três anos, referia surgimento de lesões nas pernas com úlceras dolorosas sobrepostas, que o obrigavam a caminhar com muletas e a ingerir tramadol diariamente. Negava DM, realizava tratamento de hipotireoidismo com levotiroxina 100 mcg e usava vitamina E 400 mg/dia. Ao exame, observaramse placas anulares violáceas nos membros superiores, coxas e abdome, de bordas infiltradas e definidas (Figuras 1 e 2). Nos tornozelos, havia placas castanhoamareladas, confluentes, de centro atrófico com telangiectasias e ulcerações sobrepostas nas regiões maleolares (Figuras 3 e 4). O perfil glicêmico era normal, e o ecodoppler vascular de membros inferiores não evidenciou insuficiência venosa. O paciente realizara, em outro hospital, biópsia de lesão de membro superior, que demonstrou granuloma em paliçada, compatível com GA (Figura 5). Havia sido, também, submetido à corticoterapia sistêmica em outro serviço, mas, segundo o paciente, efeitos adversos levaram à suspensão desse tratamento. Foi realizada biópsia de lesão ulcerada na perna, revelando, na derme profunda e tecido gorduroso subcutâneo, granulomas mal definidos, em paliçada, com áreas de necrobiose, compatíveis com NL ulcerada (Figura 6). Esses achados clínicos e histopatológicos possibilitaram o diagnóstico de GA em concomitância com NL. O paciente foi submetido a antibioticoterapia oral e depois a pentoxifilina oral 400 mg 12/12 horas e a associação gentamicina-betametasona tópica, com melhora parcial das úlceras.







DISCUSSÃO

GA é doença granulomatosa benigna de etiologia desconhecida, caracterizada por grupos de pápulas ou placas anulares que predominam no dorso de mãos e pés. Incide mais em mulheres, com razão F:M de 2,3:1.8 A associação de GA e DM já foi muitas vezes investigada, mas permanece controversa, assim como sua relação com tireoidite autoimune. NL, por sua vez, é considerada doença rara e degenerativa do tecido conectivo que se apresenta com inflamação cutânea granulomatosa em paliçada. Ocorre principalmente em adultos jovens, três vezes mais em mulheres.9 Sessenta e cinco por cento dos pacientes com NL apresentam DM; entretanto, NL ocorre em somente 0,3% da população com DM.10,11

Inúmeras teorias foram propostas para a patogênese das lesões de GA. Vasculite por imunocomplexos com deposição de imunoglobulinas, complemento e fibrinogênio nos vasos sanguíneos foi sugerida. Reação de hipersensibilidade linfócito-mediada do tipo IV causando alterações degenerativas, liberação monocitária de enzimas lisossomais causando degeneração necrobiótica e processo imune mediado por células também foram propostos.8 Além disso, distúrbios metabólicos e lesão primária de colágeno e/ou elastina mediada por mecanismo imunológico também foram aventados. Alguns autores sugerem que a NL seja uma vasculite por imunocomplexos. Outros fatores implicados na patogênese da NL são produção anormal de colágeno, microangiopatia diabética ou migração neutrofílica alterada. Recentemente os achados de expressão de Glut-1 (transportador de glicose eritrocitária humano) em áreas de colágeno esclerótico sugerem que anormalidades no transporte de glicose por fibroblastos podem contribuir para os achados histopatológicos.9

O diagnóstico de ambas as doenças baseia-se em dados clínicos e histopatológicos. As lesões de GA são geralmente assintomáticas, mas pode haver prurido. Lesões primárias típicas apresentam-se como pápulas eritematosas, solitárias ou coalescentes, com frequência em configuração anular. Lesões secundárias podem tornar-se amarronzadas. Essas lesões podem regredir espontaneamente, mas 40% recorrem. Há diferentes formas de GA: localizada, generalizada, perfurante e subcutânea. Recentemente foi relatada forma macular. O prognóstico do GA é similar nas formas generalizada e localizada, mas resolução é menos provável em pacientes com a forma generalizada.8 Já as lesões da NL apresentam-se como pápulas ou placas eritematosas que crescem centrifugamente e tornam-se marrom-amareladas, com atrofia e telangiectasias no centro e bordas eritematosas elevadas. Podem ser únicas ou múltiplas e frequentemente coalescem. Na maioria dos casos as lesões são bilaterais e ocorrem nos membros inferiores. A área pré-tibial é a mais acometida, mas podem ocorrer lesões no couro cabeludo, face, tronco, pênis ou ainda difusas. As lesões tendem a ser crônicas, com progressão variável, podendo haver longos períodos de quiescência ou resolução. Em 25-35% dos casos ocorre ulceração, e carcinoma espinocelular já foi relatado sobre lesões de longa data.9,10 Deve-se diferenciar NL de xantogranuloma necrobiótico (XN), patologia rara e crônica, com lesões clínica e anatomopatologicamente similares às da NL, havendo acometimento frequente periorbital e de sítios extracutâneos e, além disso, forte associação com doenças linfoproliferativas.12

Histopatologicamente, o GA mostra focos de inflamação crônica linfo-histiocitária, ocasionalmente com células multinucleadas, acometendo mais comumente a derme superficial e média, com arranjo intersticial ou com formação de granulomas em paliçada envolvendo áreas de degeneração do colágeno e com deposição de mucina. As lesões da NL são, em certo grau, similares às do GA. A epiderme é normal, atrófica ou ausente, se houver ulceração. A infiltração granulomatosa envolve toda a derme e com frequência se estende ao tecido subcutâneo, causando paniculite septal. Ocorrem granulomas em paliçada, com histiócitos ao redor de áreas de colágeno degenerado em septos.9,10 Nessas áreas, lipídeos, cristais de colesterol e mucina podem estar presentes. A necrobiose é mais extensa e menos definida em comparação ao GA. A característica mais marcante para o diagnóstico de NL como causa do processo inflamatório envolvendo o subcutâneo é a coexistência de lesões similares na derme, com bandas horizontais de células inflamatórias, intercaladas com áreas de colágeno degenerado e fibrose, envolvendo toda a espessura da derme. A presença de infiltrado inflamatório composto predominantemente de neutrófilos no septo é característica de estágios precoces de NL. Formação linfoide folicular é observada no septo espessado de lesões antigas. Quando as lesões tornam-se atróficas, o infiltrado inflamatório diminui e pequenos granulomas permanecem com células gigantes multinucleadas em meio a colágeno fibrótico e degenerado.9 Também deve-se considerar como diagnóstico diferencial o XN, no qual células gigantes características são encontradas, com formas anguladas, amplo citoplasma eosinofílico e núcleos agrupados e hipercromáticos e a presença mais frequente de nódulos linfoides. Já a NL apresenta bandas mais largas de deposição lipídica e cristais de colesterol com maior frequência.12

A distinção histopatológica de GA e NL pode ser difícil. O GA apresenta localização típica na derme superficial e média, enquanto a NL acomete toda a derme e tecido subcutâneo. O padrão do granuloma do GA é focal e em paliçada, enquanto a NL apresenta-se mais difusa, com faixas horizontais e degeneração de colágeno mais pronunciada. No GA há presença de mucina, enquanto na NL veem-se depósitos de lipídeo extracelular.2 Devido às similaridades histológicas entre GA e NL, essas condições podem representar dois pontos de um espectro contínuo do mesmo processo.7

Várias modalidades de tratamento têm sido empregadas no tratamento de GA, incluindo corticosteroides tópicos e intralesionais; dapsona; injeções de ouro e bismuto; agentes antimaláricos; isoniazida; colchicina; clofazimina; testosterona intramuscular; tratamento com radiação; ácidos fumáricos; mustarda nitrogenada tópica; imiquimod; retinoides tópicos; luz ultravioleta; pulsed dye laser e tratamentos cirúrgicos, incluindo enxertia, dermoabrasão, crioterapia e eletrodissecção, entre outros, todos com graus variados de sucesso.8,13

Uma vez que as lesões de NL, além de esteticamente inoportunas, podem ser dolorosas e infectar secundariamente, há necessidade de tratamento. Várias opções terapêuticas foram descritas, todas de sucesso limitado: corticosteroides - tópicos, intralesionais e sistêmicos -, retinoides tópicos, tacrolimus tópico, drogas antiplaquetárias como aspirina ou ticlopidina, agentes que diminuem a viscosidade sanguínea como pentoxifilina, micofenolato mofetil, ácidos fumáricos, ciclosporina, cloroquina, talidomida, Puva, terapia fotodinâmica e drogas anti-TNF.9,10,11,14,15

Somente sete casos foram relatados na literatura de concomitância de GA e NL num mesmo paciente, sendo somente um caso de NL ulcerada.1-7 Apesar de serem doenças com similaridades anatomopatológicas, as biópsias foram capazes de diferenciá-las no caso aqui descrito. Devido à raridade da associação, pouco se sabe sobre terapêutica específica. Uma vez que a patologia que trazia maior morbidade ao paciente era a NL e considerando-se o perfil pouco aderente do paciente, optou-se por pentoxifilina oral e corticoterapia tópica, por serem opções de menor necessidade de monitoramento, tendo havido redução das úlceras e da dor ao longo de meses. O paciente voltou a deambular sem muletas e suspendeu o uso de opioides, mantendo o uso de analgésicos simples.

Recebido em 08.03.2010.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 28.08.2010.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

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  • Endereço para Correspondência:
    Fernanda Homem de Mello de Souza
    R. Gal. Polli Coelho, 355, Tarumã
    82800-180 Curitiba, PR
    E-mail:
  • *
    Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba - Faculdade Evangélica do Paraná (Huec-Fepar) - Curitiba (PR), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Recebido
      08 Mar 2010
    • Aceito
      28 Ago 2010
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