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A importância das provas epicutâneas de contacto no diagnóstico diferencial de reações a medicamentos

Resumos

O eritema exsudativo multiforme é uma erupção aguda, autolimitada, frequentemente associada a infecções (geralmente virais), doenças sistêmicas e fármacos. Apresenta-se o caso de uma mulher de 39 anos, com o diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico, que recorreu à Urgência com quadro de eritema exsudativo multiforme, com início 10 dias após tomar amoxicilina e ácido clavulânico por amigdalite e, quase simultaneamente, receber a vacina antipneumocócica. Colocou-se também a hipótese de síndrome de Rowell. Efetuaram-se testes epicutâneos de contacto com bateria básica (portuguesa) e princípios ativos dos fármacos suspeitos (Chemotechnique®). Encontrou-se hipersensibilidade à amoxicilina 10% vas (++), à ampicilina 10% vas (++) e à penicilina G potássica 10% vas (+), atribuindo-se à amoxicilina a causa mais provável do eritema exsudativo multiforme

Amoxicilina; Eritema multiforme; Lúpus eritematoso sistêmico; Testes do emplastro


Exudative erythema multiforme is an acute self-limited skin disease often associated with infections (usually viral), and also with systemic diseases and drugs. We report the case of a 39-year-old woman diagnosed with systemic lupus erythematosus, who presented at the emergency clinic with exudative erythema multiforme which started 10 days after taking amoxicillin and clavulanic acid for tonsillitis together (almost simultaneously) with the pneumococcal vaccine. Rowell's syndrome was also considered to be a possibility. Skin patch tests were carried with the standard battery of patches (GPEDC) and the active ingredients of the suspected drugs (Chemotechnique ®), with readings at D2 and D3. The tests were positive for amoxicillin 10% pet (++), ampicillin 10% pet (+ +) and penicillin G potassium 10% pet (+). We accepted the diagnosis of erythema multiforme due to amoxicillin, confirmed by patch testing

Amoxicillin; Erythema multiforme; Lupus erythematosus; Systemic; Patch tests


CASO CLÍNICO

A importância das provas epicutâneas de contacto no diagnóstico diferencial de reações a medicamentos* * Trabalho realizado na Clínica Universitária de Dermatologia - Hospital de Santa Maria (HSM) - Lisboa, Portugal.

Ana Rita TravassosI; David PachecoI; Joana AntunesI; Raquel SilvaII; Luís Soares AlmeidaIII; Paulo FilipeIII

IM.D.- Interno (a) de Dermatovenereologia da Clínica Universitária de Dermatologia - Hospital de Santa Maria (HSM) - Lisboa, Portugal

IIM.D. - Dermatologista da Clínica Universitária de Dermatologia - Hospital de Santa Maria (HSM) - Lisboa, Portugal

IIIPhD - Dermatologista da Clínica Universitária de Dermatologia - Hospital de Santa Maria (HSM) - Lisboa, Portugal

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ana Rita Travassos Clínica Universitária de Dermatologia - Hospital de Santa Maria Avenida Professor Egas Moniz 1649 028 Lisboa, Portugal Tel./Fax: 00351-9-6234-1475 00351-2-1795-4447 E-mail: ritatravassos@gmail.com

RESUMO

O eritema exsudativo multiforme é uma erupção aguda, autolimitada, frequentemente associada a infecções (geralmente virais), doenças sistêmicas e fármacos. Apresenta-se o caso de uma mulher de 39 anos, com o diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico, que recorreu à Urgência com quadro de eritema exsudativo multiforme, com início 10 dias após tomar amoxicilina e ácido clavulânico por amigdalite e, quase simultaneamente, receber a vacina antipneumocócica. Colocou-se também a hipótese de síndrome de Rowell. Efetuaram-se testes epicutâneos de contacto com bateria básica (portuguesa) e princípios ativos dos fármacos suspeitos (Chemotechnique®). Encontrou-se hipersensibilidade à amoxicilina 10% vas (++), à ampicilina 10% vas (++) e à penicilina G potássica 10% vas (+), atribuindo-se à amoxicilina a causa mais provável do eritema exsudativo multiforme.

Palavras-chave: Amoxicilina; Eritema multiforme; Lúpus eritematoso sistêmico; Testes do emplastro

INTRODUÇÃO

O eritema exsudativo multiforme (EEM) é uma síndrome mucocutânea aguda, autolimitada, geralmente associada a infecções agudas (nomeadamente ao vírus do herpes simplex (HSV) e ao Mycoplasma pneumoniae) e, com menor frequência, a doenças sistêmicas (doença inflamatória intestinal, lúpus eritematoso sistêmico (LES)/ síndrome de Rowell, doença de Behçet) e fármacos (anti-inflamatórios não esteroides (AINE), sulfonamidas, anticonvulsivantes, alopurinol).1,2,3 Na literatura, a incidência de EEM associado à amoxicilina é relativamente rara.3

RELATO DO CASO

Descreve-se o caso de uma mulher de 39 anos de idade, raça caucasiana, com antecedentes conhecidos de LES há nove anos, que recorreu ao Serviço de Urgência por aparecimento de pápulas eritematosas, com disposição concêntrica, anel violáceo e centro pálido, "lesões em alvo", com distribuição simétrica e predomínio nas extremidades, clinicamente sugestivo de EEM (Figura 1). A doente negava febre, artralgias ou outros sintomas sistêmicos.


Medicada habitualmente com meticorten® (prednisona 5mg/ dia) e plaquinol® (hidroxicloroquina) para LES, tinha sido iniciada antibioterapia (com amoxicilina e ácido clavulânico) por amigdalite, 10 dias antes do episódio que motivou ida à Urgência, e, simultaneamente, foi-lhe administrada a vacina antipneumocócica (Pneumo 23®).

No presente contexto clínico, foram colocadas como hipóteses de diagnóstico: EEM associado à infecção viral prévia, à ingestão de fármacos (amoxicilina e ácido clavulânico ou vacina antipneumocócica) ou ainda ao LES (síndrome de Rowell).

No entanto, a anamnese sugeriu uma relação temporal provável com a administração de amoxicilina e ácido clavulânico e vacina antipneumocócica, que teria de ser esclarecida. A doente foi internada no Serviço de Dermatologia e medicada com prednisolona (30mg/dia) com rápida melhoria clínica.

O exame histológico das biópsias cutâneas revelou dermatose intersticial neutrofílica, com lupus band test positivo, mas pouco expressivo. O estudo analítico revelou: presença de anticorpos (Ac) antivírus Ebstein-Barr (EBV) - IgG e IgM positivos; anticorpo antinuclear (ANA) positivo (até diluição1/640), padrão nuclear homogêneo; anticorpo anti-DNA de cadeia dupla (Ac anti-ds DNA) e Ac anti-Ro positivos.

Após redução da dose de prednisolona até 5mg/dia, dose previamente instituída para controle do LES, a doente foi referenciada para provas epicutâneas de contacto. Realizaram-se oito semanas depois, com a bateria básica adotada pelo GPEDC e os princípios ativos dos fármacos suspeitos em vaselina (Chemotechnique®). Nas leituras das 48 e 72 horas, encontrou-se hipersensibilidade à amoxicilina 10% vas (++), à ampicilina 10% vas (++) e à penicilina G potássica 10% vas (+) (Figura 2).


DISCUSSÃO

O EEM, a síndrome de Stevens-Johnson (SSJ) e a necrólise epidérmica tóxica (NET), na perspectiva nosográfica clássica, eram consideradas dermatoses afins, tendo em comum o caráter reacional e a natureza etiológica (infecções, fármacos e doenças sistêmicas).4,5 Atualmente, há uma concordância de conceitos, segundo os quais se separa o espectro do EEM do espectro SSJ/NET.1

Apesar de as infecções (especialmente por HSV) serem consideradas a principal causa de EEM, em oposição ao SSJ e NET, cuja etiologia é majoritariamente de responsabilidade de fármacos, sua associação a reações medicamentosas é descrita na literatura (nomeadamente para sulfonamidas, hidantoína, AINE e alopurinol).1,4,3,5

As reações alérgicas medicamentosas são classicamente classificadas, de acordo com Coombs e Gell, em: reações de hipersensibilidade imediata (tipo I), reações citotóxicas (tipo II) e mediadas por complexos imunes (tipo III) e reações de hipersensibilidade retardada (tipo IV, mediadas por células T).6,7 De acordo com conhecimentos mais recentes acerca da função das células T, as reações tipo IV foram subclassificadas de IVa-IVd, sendo as reações tipo IVc associadas a: reações cutâneas máculo-papulares, neutrofílicas e bolhosas (com predomínio de SSJ e NET), nas quais o papel das células T citotóxicas é preponderante, por meio de uma resposta citotóxica mediada por células T CD8+, com destruição dos queratinócitos.7

Em alguns casos, ambos os agentes (fármacos e infecção) podem ser identificados como potenciais precipitantes do EEM.3 As infecções virais foram já associadas à elevação do risco de reações alérgicas e, apesar de o mecanismo exato não ser ainda totalmente conhecido, é sugerida uma quebra da tolerância ou um reforço da reação imune a fármacos após infecção viral. Os dois mecanismos propostos são: a alteração da expressão antigênica do fármaco ou dos seus metabólitos, provavelmente associada a alterações na expressão das enzimas que metabolizam os respectivos fármacos, ou alteração no sistema de regulação imune.3

Em relação à hipótese diagnóstica de síndrome de Rowell no presente caso, além de existir uma forte associação etiológica com a ingestão de fármacos (amoxicilina), não são preenchidos os critérios atualmente aceitos, definidos por Zeitouni et al.8,9,10 Atualmente a síndrome de Rowell é definida pela presença de três critérios major: 1) reconhecimento de LES, lúpus discoide ou lúpus subagudo; 2) lesões de eritema multiforme, com ou sem envolvimento das mucosas, e 3) ANA positivo, com padrão pontilhado e, pelo menos, um critério minor: 1) perniose; 2) Ac anti-Ro ou anti-La positivo; 3) Fator reumatoide positivo.8,9,10

Admitimos que a causa mais provável para o quadro de EEM tenha sido a amoxicilina. As provas epicutâneas de contacto comprovaram hipersensibilidade à ampicilina 10% vas (++) e à amoxicilina 10% vas (++) e menos intensa à penicilina G potássica 10% vas (+), motivo pelo qual recomendou-se evitar qualquer antibiótico deste grupo químico.

Saliente-se também a presença de alguns dos possíveis fatores desencadeantes de um quadro de EEM - infecção viral (a EBV); fármacos (a ingestão de amoxicilina) e doença sistêmica (LES). Finalmente, destacamos a importância dos testes epicutâneos de contacto na imputação clínica da amoxicilina e na caracterização das reações cruzadas, que nos permitiram facultar à doente uma lista mais correta de fármacos a evitar.

Recebido em 11.02.2011.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 24.03.2011.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

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  • Endereço para correspondência:
    Ana Rita Travassos
    Clínica Universitária de Dermatologia - Hospital de Santa Maria
    Avenida Professor Egas Moniz
    1649 028 Lisboa, Portugal
    Tel./Fax: 00351-9-6234-1475 00351-2-1795-4447
    E-mail:
  • *
    Trabalho realizado na Clínica Universitária de Dermatologia - Hospital de Santa Maria (HSM) - Lisboa, Portugal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      11 Fev 2011
    • Aceito
      24 Mar 2011
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