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Lúpus eritematoso sistêmico bolhoso: diagnóstico diferencial com dermatite herpetiforme

Resumos

O lúpus eritematoso sistêmico bolhoso é um subtipo raro do lúpus eritematoso sistêmico, que ocorre ainda de forma mais incomum nos pacientes pediátricos. Relatamos o caso de uma adolescente de 12 anos, apresentando lesões vésico-bolhosas em face, pescoço, tronco, mucosas oral e genital, anemia, leucocitúria estéril, FAN: 1/1280 padrão nuclear pontilhado grosso, Anti-Sm e Anti-RNP positivos. O estudo anatomopatológico sugere dermatite herpetiforme e a imunofluorescência direta revela IgG, IgA e fibrina ao longo da zona de membrana basal. Apresentamos um caso típico de lúpus eritematoso sistêmico bolhoso e enfatizamos a importância do diagnóstico diferencial com a dermatite herpetiforme

Auto-Imunidade; Colágeno tipo VII, Dermatite herpetiforme; Dermatopatias; Vesiculobolhosas; Lúpus eritematoso sistêmico


Bullous systemic lupus erythematosus is a rare subset of systemic lupus erythematosus that is even rarer in pediatric patients. We report a case of a 12-year-old girl who presented with a vesiculobullous eruption on her face, neck, trunk and genital and oral mucosa, as well as anemia, sterile pyuria, ANA (1:1280, speckled pattern) and positive anti-Sm and anti-RNP. Pathological examination suggested dermatitis herpetiformis, and direct immunofluorescence revealed IgG, IgA and fibrin in the epithelial basement membrane zone. We present a typical case of bullous systemic lupus erythematosus and emphasize the importance of clinical and histopathological differential diagnosis with dermatitis herpetiformis

Autoimmunity; Dermatitis herpetiformis; Lupus erythematosus, Systemic; Skin Diseases; Type VII collagen; Vesiculobullous


CASO CLÍNICO

Lúpus eritematoso sistêmico bolhoso : diagnóstico diferencial com dermatite herpetiforme* * Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC - UFG) - Goiânia (GO), Brasil.

Wanessa Simão BarbosaI; Camila Martins RodarteI; Jackeline Gomes GuerraII; Vanessa Gomes MacielIII; Luiz Fernando Fróes Fleury JúniorIV; Maurício Barcelos CostaV

IMédica especialista em Dermatologia pela SBD - Ex-residente de Dermatologia do HC/UFG - Goiânia (GO), Brasil

IIDoutora em Dermatologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Professora-adjunta do Departamento de Medicina Tropical e Dermatologia do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública - Universidade Federal de Goiás (IPTSP - UFG) - Chefe do Serviço de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC - UFG) - Goiânia (GO), Brasil

IIIProfessora-voluntária do Departamento de Medicina Tropical e Dermatologia do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública - Universidade Federal de Goiás (IPTSP - UFG) - Goiânia (GO), Brasil

IVMestre em Dermatologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) - Professor-assistente do Departamento de Medicina Tropical e Dermatologia do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública - Universidade Federal de Goiás (IPTSP - UFG) - Goiânia (GO), Brasil

VMestre e doutorando em Patologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) - Chefe do Departamento de Patologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC - UFG) - Goiânia (GO), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Wanessa Simão Barbosa Primeira Avenida, s/n - Setor Leste Universitário 74605 020 Goiânia GO) Brasil E-mail: wanessasimao@yahoo.com.br

RESUMO

O lúpus eritematoso sistêmico bolhoso é um subtipo raro do lúpus eritematoso sistêmico, que ocorre ainda de forma mais incomum nos pacientes pediátricos. Relatamos o caso de uma adolescente de 12 anos, apresentando lesões vésico-bolhosas em face, pescoço, tronco, mucosas oral e genital, anemia, leucocitúria estéril, FAN: 1/1280 padrão nuclear pontilhado grosso, Anti-Sm e Anti-RNP positivos. O estudo anatomopatológico sugere dermatite herpetiforme e a imunofluorescência direta revela IgG, IgA e fibrina ao longo da zona de membrana basal. Apresentamos um caso típico de lúpus eritematoso sistêmico bolhoso e enfatizamos a importância do diagnóstico diferencial com a dermatite herpetiforme.

Palavras-chave: Auto-Imunidade; Colágeno tipo VII, Dermatite herpetiforme; Dermatopatias ; Vesiculobolhosas; Lúpus eritematoso sistêmico

INTRODUÇÃO

O lúpus eritematoso sistêmico bolhoso (LESB) é subtipo raro do lúpus eritematoso sistêmico (LES), de ocorrência bastante incomum na infância e adolescência.1, 2 Os estudos mostram que 76% dos pacientes com LES são acometidos por lesões cutâneas no curso da doença e, desses, menos de 5% apresentam lesões bolhosas.3 Em 23% dos pacientes com LES, a manifestação inicial se dá pelas lesões cutâneas.1

O quadro clínico de LESB é caracterizado por erupção cutânea vésico-bolhosa disseminada, restrita ou não a áreas fotoexpostas. As bolhas podem ser grandes e tensas, semelhantes ao penfigoide bolhoso, ou pequenas e agrupadas, semelhantes à dermatite herpetiforme. As lesões acometem, preferencialmente, o tronco e a região supraclavicular, podendo comprometer mucosas, sobretudo boca e faringe. Pequenas bolhas na borda do vermelhão do lábio são vistas em 30% dos casos. Podem evoluir com hiperpigmentação residual e, ocasionalmente, evoluem com formação de cicatrizes ou milium. O prurido pode ou não estar presente. 4

No exame histopatológico, observam-se bolha subepidérmica com microabscessos de neutrófilos nas papilas dérmicas, infiltrado inflamatório linfomononuclear perivascular e, em alguns casos, ocorre vasculite leucocitoclástica. As alterações histológicas clássicas do LE, como atrofia da epiderme e degeneração hidrópica da camada basal, estão ausentes no LESB. Na imunofluorescência direta, ocorre depósito linear ou granular de IgG, IgA e C3 na zona de membrana basal.4

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 12 anos, admitida referindo que há 2 meses iniciou com lesões vésicobolhosas tensas, isoladas e agrupadas, em face, pescoço, tronco, mucosas oral e genital sobre placas eritêmato-edematosas circinadas (Figuras 1 a 3). Paciente apresentava ainda astenia, febre ocasional e queda do estado geral, além de adenomegalias axilares e cervicais volumosas de 5 meses de evolução. Os exames laboratoriais mostraram anemia (Hb: 8,7), leucocitúria estéril (66.000), VHS: 98mm, FAN: 1/1280 padrão nuclear pontilhado grosso, Anti-Sm reagente, Anti-RNP reagente, C3 e C4 normais. Foi realizada biópsia da lesão de pele cujo anatomopatológico mostrou bolha subepidérmica com microabcessos neutrofílicos de papilas dérmicas sugestivo de dermatite herpetiforme (Figura 4). A imunofluorescência direta evidenciou depósito de IgG, IgA e fibrina ao longo da zona de membrana basal. O exame histopatológico da biópsia de linfonodo cervical revelou hiperplasia linfoide reacional. Foi feita também pesquisa de intolerância ao glúten que resultou em antigliadina IgA e IgG, antiendomísio e antitransglutaminase tecidual negativos.



Após conclusão diagnóstica, foi iniciado tratamento para LESB com dapsona 50 mg/dia associado à prednisona 20mg/dia (peso: 32,5Kg) e paciente obteve melhora completa das lesões após 1 mês, sendo então iniciada redução da dose de prednisona de forma gradual e lenta e mantida dapsona 50 mg/dia.

DISCUSSÃO

O LESB é uma doença rara com incidência de menos de 0,2 casos por milhão/ano, representando somente 2-3% das dermatoses bolhosas subepidérmicas autoimunes. O LESB é uma desordem bolhosa adquirida, causada por anticorpos contra o colágeno tipo VII. 5

As erupções bolhosas são manifestações cutâneas raras no LES.6,7 Sabe-se que as lesões bolhosas estão intimamente ligadas ao LES, porém, a atividade da doença bolhosa pode ou não coincidir com a atividade da doença sistêmica.5, 8 A maior parte dos casos apresenta remissão sem complicações em período inferior a um ano. 9,10

O LESB é forma bolhosa rara de LES com combinação distinta de características clínicas e imunopatológicas. 6

Camisa, Sharma11 propuseram os seguintes critérios para o diagnóstico de LESB:

(1) diagnóstico de LES baseado nos critérios estabelecidos pela Associação Americana de Reumatologia;

(2) presença das vesículas ou bolhas em áreas expostas ao sol, porém, não limitadas a esses locais;

(3) histologia compatível com o diagnóstico de dermatite herpetiforme;

(4) imunofluorescência indireta para anticorpos circulantes antimembrana basal negativa;

(5) imunofluorescência direta positiva para IgG, IgM ou ambos, e positiva também para IgA na zona da membrana basal.

Lesões bolhosas em um paciente com LES leva a dois importantes diagnósticos: LESB e LES com bolhas.10

O LES com bolhas caracteriza-se por lesões policíclicas com bolhas nas bordas, confinadas a áreas expostas ao sol, podendo ocorrer formação de cicatrizes. 10 No exame histopatológico, podem ser observadas intensa degeneração hidrópica da camada basal, edema da derme superior e, algumas vezes, necrose epidérmica. A formação de bolhas surge do dano severo à camada basal, levando à separação da membrana basal dos queratinócitos. Não ocorre formação de anticorpos contra o colágeno tipo VII. 10 Podem ocorrer depósitos de IgG e IgM na zona de membrana basal. A radiação ultravioleta, altos títulos de anticorpos anti-Ro, deposição de imunocomplexos e imunidade celular anormal são tidos como responsáveis pelo dano à camada basal.10

Os principais diagnósticos diferenciais do LESB são: epidermólise bolhosa adquirida (EBA), dermatite herpetiforme (DH), penfigoide bolhoso (PB) e dermatose bolhosa por IgA linear.

É importante lembrar que tanto a EBA quanto o LESB apresentam anticorpos contra o colágeno tipo VII presente na sublâmina densa da zona de membrana basal, além de apresentarem características genéticas semelhantes, pois têm associação com HLA-DR2. 9 Contudo, diferem na evolução da doença já que o LESB, com frequência, resolve-se dentro de um ano, enquanto a EBA tem um curso mais prolongado, além de não preencher critérios para LES. 10

A DH pode apresentar a mesma clínica e histopatologia do LESB, porém, pode ser diferenciada desta pela presença de autoanticorpos marcadores da doença glúten-sensível: antigliadina, antiendomísio e antitransglutaminase tecidual. 7 Além disso, na imunofluorescência direta ocorre depósito de IgA nas forma granular, fibrilar ou pontilhada, concentrada nas papilas dérmicas e ao longo da zona de membrana basal.

No LESB pode ocorrer depósito de IgA em 65% dos casos, contrastando com 13% nos casos de LES sem lesões bolhosas.7 Camisa11 relacionou o depósito de IgA com a atividade da doença e Miller e colaboradores, com o aumento da incidência de lesão renal.7 O LESB apresenta, além de IgA, também IgG e IgM na zona de membrana basal, o que pode diferenciá-lo facilmente da DH, que apresenta somente depósito de IgA.

O tratamento do LESB mais eficaz é feito com a dapsona, sendo a resposta, em geral, rápida, mesmo em baixas doses (25-50mg/dia).5,10 A dapsona age negativamente no sistema hidrogênio-mieloperoxidase dos polimorfonucleares que leva à inibição da produção de intermediários pró-inflamatórios do oxigênio, produzidos pela ativação de neutrófilos.12 Além disso, a dapsona previne a produção da prostanglandina E2 mediada pela ciclo-oxigenase.1

Os pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase podem apresentar hemólise severa com o uso da dapsona e, por isso, devem ser pesquisados para essa deficiência antes do tratamento com a droga. Muitos pacientes apresentam uma queda dos níveis de hemoglobina em 1-2g/dL depois do início do tratamento, que podem ser parcialmente melhorados com o uso concomitante de 400UI de vitamina E, uma vez por dia.13 Outros efeitos colaterais incluem metemeglobinemia, neuropatia motora, dermatite exfoliativa, hepatite, cefaleia, distúrbios gastrointestinais e, raramente, agranulocitose. A dapsona pode induzir síndrome de hipersensibilidade com achados semelhantes à infecção pela mononucleose. A síndrome, geralmente, começa em 4 a 6 semanas após o tratamento inicial. Os sintomas associados à síndrome são: prurido, febre, mal-estar, hepatite, elevação da velocidade de hemossedimentação, linfadenopatia e linfocitose.12

A colchicina é uma opção terapêutica para doenças bolhosas mediadas por neutrófilos. A colchicina interfere na quimiotaxia dos neutrófilos e na liberação de enzimas lisossômicas pelos polimorfonucleares. Os efeitos colaterais mais comuns são: diarreia transitória e desconforto abdominal. Outros mais raros são: neuropatia e depressão da medula óssea.14

As lesões bolhosas do LE não respondem ao tratamento somente com corticosteroides sistêmicos. Devem ser associadas terapias adjuvantes em casos não responsivos ou intolerantes à dapsona, sendo relatados o uso de azatioprina, antimaláricos, micofenolato mofetil e ciclofosfamida. 5,10 Em um relato de caso, Malcangi et al15 obtiveram boa resposta no controle do LESB com o uso de metotrexate em dose baixa (10mg/semana).

O caso relatado ilustra quadro típico de lúpus eritematoso sistêmico bolhoso e chama a atenção para a importância no diagnóstico diferencial clínico e histopatológico com a dermatite herpetiforme.

Recebido em 25.10.2010.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 04.12.2010.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

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  • Endereço para correspondência:
    Wanessa Simão Barbosa Primeira
    Avenida, s/n - Setor Leste Universitário
    74605 020 Goiânia GO) Brasil
    E-mail:
  • *
    Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC - UFG) - Goiânia (GO), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Aceito
      04 Dez 2010
    • Recebido
      25 Out 2010
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