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Queratose liquenoide crônica: relato de caso

Resumos

A queratose liquenoide crônica ou doença de Nekam é uma dermatose mucocutânea rara da queratinização, com curso crônico e progressivo, que acomete geralmente indivíduos entre 20 e 40 anos. Existem, aproximadamente, 70 casos descritos na literatura. Devido à raridade desta dermatose e à ausência de tratamento efetivo, é uma doença de difícil manejo. No caso em questão, apresentamos um paciente de 42 anos com pápulas violáceas, hiperqueratósicas, algumas confluentes, com aspecto linear, rendilhado e em placas, localizadas no tronco e membros há cinco anos. Lesões aftoides na cavidade oral e úlceras rasas na genitália também faziam parte do quadro. O anatomopatológico foi bastante sugestivo de queratose liquenoide crônica. Introduziu-se tratamento com acitretina e dapsona, havendo melhora parcial do quadro

Ceratose; Dermatopatias; Erupções liquenóides


Keratosis lichenoides chronica or Nekam's disease is a rare mucocutaneous dermatosis characterized by keratinization. It is chronic and progressive usually affecting individuals aged 20-40 years. Around 70 cases have been reported in the literature. Due to the rarity of this condition and the lack of effective treatment, it is a difficult disease to manage. In the case described below we present a 42-yearold patient with violaceous and hyperkeratotic papules in linear, reticular or plaque form, located on the trunk and limbs for five years. Aphthous lesions in the oral cavity and shallow ulcers on the genitalia also formed part of the clinical manifestation. Pathologic examination was suggestive of keratosis lichenoides chronica. Acitretin and dapsone was introduced and the lesions partially improved

Keratosis; Lichenoid eruptions; Skin diseases


CASO CLÍNICO

Queratose liquenoide crônica - relato de caso* * Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos - Universidade Federal da Bahia (HUPES - UFBA) - Salvador (BA), Brasil.

Livia Cibele Gomes MartinsI; Marina HorneI; Dário Nunes Moreira JúniorII; Ivonise FolladorIII; Vitória Regina Pedreira de AlmeidaIV

IMédicas - Médicas-residentes do Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos - Universidade Federal da Bahia (HUPES - UFBA) - Salvador (BA), Brasil

IIMédico - Médico-residente do Serviço de Patologia do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos - Universidade Federal da Bahia (HUPES - UFBA) - Salvador (BA), Brasil

IIIDoutora em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) - Médica-assistente do Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos - Universidade Federal da Bahia (HUPES - UFBA) - Salvador (BA), Brasil

IVMestre em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) - Chefe do Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos - Universidade Federal da Bahia (HUPES - UFBA) - Salvador (BA), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Livia Cibele Gomes Martins Ambulatório Magalhães Neto Rua Padre Feijó, 240 - 3º andar, Canela 40110-170 Salvador (BA) - Brasil E-mail: liviacibele@hotmail.com

RESUMO

A queratose liquenoide crônica ou doença de Nekam é uma dermatose mucocutânea rara da queratinização, com curso crônico e progressivo, que acomete geralmente indivíduos entre 20 e 40 anos. Existem, aproximadamente, 70 casos descritos na literatura. Devido à raridade desta dermatose e à ausência de tratamento efetivo, é uma doença de difícil manejo. No caso em questão, apresentamos um paciente de 42 anos com pápulas violáceas, hiperqueratósicas, algumas confluentes, com aspecto linear, rendilhado e em placas, localizadas no tronco e membros há cinco anos. Lesões aftoides na cavidade oral e úlceras rasas na genitália também faziam parte do quadro. O anatomopatológico foi bastante sugestivo de queratose liquenoide crônica. Introduziu-se tratamento com acitretina e dapsona, havendo melhora parcial do quadro.

Palavras-chave: Ceratose; Dermatopatias; Erupções liquenóides

INTRODUÇÃO

A queratose liquenoide crônica ou doença de Nekam é uma dermatose mucocutânea rara da queratinização, de etiologia desconhecida, com curso crônico e progressivo, que acomete geralmente indivíduos entre 20 e 50 anos. Não são relatadas diferenças de prevalência entre gêneros e raças.1

Até o momento, existem mais de 60 casos descritos na literatura.2 Entretanto, há controvérsias quanto à classificação desta dermatose como uma entidade nosológica distinta. Alguns autores a consideram manifestação de alguma doença inflamatória conhecida, como líquen plano, lúpus eritematoso e líquen simples crônico.2 Foi primeiramente descrita em 1895, por Kaposi, que nomeou a doença de líquen plano morbiliforme e líquen rubro acuminado.3 Em 1938, Nekam observou hiperqueratose de acrossiríngios no caso publicado por Kaposi, o que o fez denominar a doença de poroqueratose estriada liquenoide, apesar da ausência de lamela cornoide.2 O termo queratose liquenoide crônica foi introduzido em 1972, por Margolis et al., sendo amplamente utlilizado desde então.1 O presente relato descreve um caso extenso da referida doença, de difícil diagnóstico, com envolvimento da mucosa oral e genitália e algumas características atípicas.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 42 anos, churrasqueiro, casado, natural de Água Fria - BA e procedente de Salvador. Na admissão, referia surgimento de lesões semelhantes a "brotoejas" no tronco, há 5 anos, não pruriginosas, que involuíram parcialmente após tratamento tópico que não soube especificar. Três anos após, o quadro tornou-se mais exuberante, quando fez uso de dapsona por apenas 4 meses, com discreta melhora. Relatava já ter utilizado topicamente a associação de ácido salicílico e dipropionato de betametasona, bem como calcipotriol e emolientes, sem resposta. Referia ainda surgimento de lesões aftoides orais e ulcerações genitais 2 anos após o início do quadro, com períodos de remissão e recidiva desde então. Negava comorbidades e casos semelhantes na família, bem como etilismo e tabagismo. Ao exame dermatológico, o paciente apresentava pápulas violáceas, hiperqueratósicas, confluentes em algumas áreas, adquirindo aspecto linear, rendilhado e em placas, localizadas predominantemente no tronco, membros superiores e região posterior dos membros inferiores (Figuras 1 e 2). Evidenciavam-se lesões aftoides em cavidade oral e úlceras rasas no pênis e escroto, com base eritematosa (Figuras 3 e 4). Exames laboratoriais, incluindo hemograma, funções hepática e renal, marcadores reumatológicos e urinálise, encontravam-se normais. Foi submetido ao primeiro exame anatomopatológico em 03/2007, sendo sugestivo de dermatite psoriasiforme com foliculite associada. Em 11/2008, realizou-se nova biópsia, cuja conclusão foi foliculite. Nesse momento, foi iniciado o uso da dapsona 100mg/dia, com regressão das ulcerações genitais e discreta melhora das lesões cutâneas. Em 02/2009, as duas biópsias foram revisadas, sendo mantida a conclusão de foliculite aguda abscedada para ambas. Em 11/09, novo anatomopatológico evidenciou na epiderme acentuada paraceratose e acantose, com áreas de alteração vacuolar da basal e rolhas córneas (Figura 5). Na derme superficial, notava-se denso infiltrado linfo-histioplasmocitário.






Observava-se ainda pápula dermoepidérmica bem delimitada, com paraceratose e moderada hiperplasia epidérmica, com múltiplos corpos apoptóticos e alteração vacuolar da basal. Conclusão: queratose liquenoide crônica. Na ocasião, optou-se pela introdução de acitretina 25mg/dia, com melhora importante das lesões cutâneas. Porém, as lesões mucosas recidivaram após suspensão da dapsona, sendo esta reintroduzida e mantida em conjunto com a acitretina. Recentemente, associou-se o UVB-NB para otimização terapêutica.

DISCUSSÃO

Existem aproximadamente 70 casos descritos na literatura de dermatose liquenoide crônica.1 Ocorre mais comumente em adolescentes e adultos jovens, com uma discreta predominância em homens (1,35:1).3 Clinicamente, a doença caracteriza-se por pápulas e placas violáceas hiperqueratósicas, geralmente arranjadas de forma simétrica, num padrão linear ou reticular, envolvendo tronco e extremidades.1 Em 75% dos casos, há erupção facial, dermatite seborreica-símile ou rosácea-símile, o que facilita o diagnóstico.1,4 Distrofia ungueal pode ser evidenciada em 30% desses pacientes e queratodermia palmoplantar em cerca de 40%.3,5 As alterações ungueais mais frequentes são coloração amarelada, espessamento e hiperqueratose do leito ungueal.3,6 Esta dermatose pode ainda associar-se a manifestações orais em 50% dos casos, apresentandose como úlceras e lesões aftosas recorrentes.6 Em relação ao acometimento genital, é possível encontrar pápulas queratósicas no escroto e pênis, balanite crônica e fimose. O envolvimento ocular também pode ocorrer, sendo mais comuns a blefarite, a conjuntivite, a uveíte e a iridociclite.6

Há relatos de associação com glomerulonefrite e desordens linfoproliferativas. Pode ocorrer, ainda, em raríssimos casos, rouquidão, devido à infiltração da epiglote.7

Os achados histopatológicos da queratose liquenoide crônica são variáveis. Os mais característicos referem-se à presença de dermatite liquenoide (infiltrado linfocitário em faixa), associada a numerosa necrose de queratinócitos, paraceratose focal, neutrófilos remanescentes na camada córnea, acantose irregular, bem como rolhas córneas.1,2 O infiltrado liquenoide, muitas vezes, encontra-se periinfundibular ou ao redor de acrossiríngeo (Numa referência anterior, esta palavra está escrita com "i", ou seja, acrossiríngIo. Favor verificar com o autor qual das duas versões ele prefere manter, já que não encontrei a palavra em dicionário comum). Pode haver alteração vacuolar da basal ao longo da junção dermoepidérmica. A camada granulosa pode estar aumentada ou diminuída, a primeira associada a zonas de acantose e a segunda, a áreas de hiperqueratose. Atrofia ou erosão do epitélio podem estar presentes junto aos queratinócitos necróticos.8 A queratose liquenoide crônica tem caráter crônico e progressivo. O seu tratamento representa um grande desafio, pois é uma doença muito resistente aos tratamentos disponíveis. Os tratamentos tópicos são geralmente inefetivos, bem como os esteroides sistêmicos, sulfonas, metotrexato, agentes antimaláricos, radioterapia e ciclosporina.5,6,9 Acitretina, isotretinoína, etretinato, psoralênico e UVA (PUVA), Re-PUVA e cacipotriol tópico vêm sendo utilizados com diferentes resultados.6 Há poucos relatos de bons resultados com re-PUVA, acitretina mais UVB-Nb e, inclusive, com o uso de efalizumabe, porém, mais estudos precisam ser realizados.5, 6, 9 O paciente em questão é um caso raro, de difícil diagnóstico devido à ausência de substrato anatomopatológico compatível com a doença nas primeiras biópsias realizadas, bem como à ausência de acometimento facial, manifestação presente na maioria dos casos. Porém, as demais características clínicas e, posteriormente, histopatológicas, bem como a exclusão dos diagnósticos diferenciais possíveis (líquen plano, pitiríase rubra pilar, micose fungoide foliculotrópica e erupção liquenoide), torna o diagnóstico de QLC imperioso.2,8 É relevante citar, ainda, que o paciente apresentado desenvolveu ulcerações genitais, forma atípica de manifestação genital, ainda não descrita na literatura.

Apesar de ser uma dermatose rara, é importante conhecer a QLC por esta ser diagnóstico diferencial do líquen plano, doença muito prevalente. Alguns autores a consideram, até mesmo, uma apresentação rara do líquen plano que se manifestaria na sua evolução, da mesma forma que a síndrome de Graham-Little-Lassuer.10 As características clínicas e histopatológicas são semelhantes nas duas doenças e o padrão linear da QLC pode ser confundido com o fenômeno de Koebner do líquen plano.3,5 Porém, a simetria, a ausência de prurido intenso e a resistência ao tratamento devem chamar a atenção para o diagnóstico da queratose liquenoide crônica.

Recebido em 21.11.2010.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 27.12.2010.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

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  • Endereço para correspondência:
    Livia Cibele Gomes Martins
    Ambulatório Magalhães Neto
    Rua Padre Feijó, 240 - 3º andar, Canela
    40110-170 Salvador (BA) - Brasil
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    Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos - Universidade Federal da Bahia (HUPES - UFBA) - Salvador (BA), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      21 Nov 2010
    • Aceito
      27 Dez 2010
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