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Estudo de suspensões de zircônia e magnésia em etanol

Study of zirconia and magnesia suspensions in ethanol

Resumos

A utilização de suspensões como etapa intermediária no processamento da mistura ZrO2-MgO surge como uma alternativa para a obtenção de homogeneidade no produto final. Emerge daí uma relação entre o controle da estabilidade destas suspensões e a obtenção de homogeneidade no produto. O comportamento de suspensões de misturas de óxidos é dependente da característica físico-química da superfície de cada componente, bem como da sua quantidade relativa. Neste trabalho foi estudado o comportamento de cada componente da mistura ZrO2-MgO isoladamente, em suspensão aquosa e etílica, e da mistura em si. Em suspensão etílica, o ZrO2 apresentou elevado potencial negativo, enquanto o MgO, potencial positivo. A explicação destes fenômenos foi relatada mediante análises de espectroscopia de infravermelho por reflectância difusa (DRIFT), revelando reação entre o solvente e a superfície dos óxidos em estudo. É proposto um novo mecanismo para o efeito desaglomerante das suspensões etílicas de ZrO2, em função do elevado potencial eletrostático da suspensão. Por fim, o estudo da suspensão da mistura dos dois materiais na proporção de 3% em massa de MgO (~8,6% em mol) mostrou que, tanto o paH quanto o potencial zeta finais são determinados pela superfície deste último óxido, mesmo estando ele em menor quantidade.

Suspensões cerâmicas; zircônia; magnésia; superfícies; DRIFT


The use of suspensions as an intermediate step in the processing of the ZrO2-MgO mixture arises as an alternative to obtain homogeneity on the final product. A relationship between the stability control of this suspensions and the achievement of homogeneity on the product may be established. The behavior of oxide mixture suspensions depends on the physical-chemical characteristic and of the relative content of each component. In this work the behavior of each component of the ZrO2-MgO mixture was studied, either in aqueous or ethylic suspension, and also the behavior of the mixture. Zirconium oxide in ethylic suspension shows a highly negative potential; Magnesium oxide, on the other hand, shows a positive potential. The explanation was found after Diffuse Reflectance Infrared Fourier Transform (DRIFT) spectroscopy measurements, revealing a reaction between the solvent and surface of the oxides. A new mechanism for the desagglomeration effect of the ZrO2 ethylic suspensions, as a function of the highly electrostatic potential of the suspension is proposed. The study of suspensions of a mixture of both oxides for 3 wt% of MgO (~ 8.6 mol%) content shows that the final paH as well as the zeta potential are determined by the surface characteristics of the latter, even being the minor component in the mixture.

Ceramic suspensions; zirconia; magnesia; surfaces; DRIFT


Estudo de suspensões de zircônia e magnésia em etanol

(Study of zirconia and magnesia suspensions in ethanol)

P. J. B. Marcos, R. H. R. Castro, D. Gouvêa

Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais, Escola Politécnica ¾ USP

Av. Prof. Mello Moraes, 2463, Cidade Universitária, S. Paulo, SP, 05508-900.

dgouvea@usp.br

Resumo

A utilização de suspensões como etapa intermediária no processamento da mistura ZrO2-MgO surge como uma alternativa para a obtenção de homogeneidade no produto final. Emerge daí uma relação entre o controle da estabilidade destas suspensões e a obtenção de homogeneidade no produto. O comportamento de suspensões de misturas de óxidos é dependente da característica físico-química da superfície de cada componente, bem como da sua quantidade relativa. Neste trabalho foi estudado o comportamento de cada componente da mistura ZrO2-MgO isoladamente, em suspensão aquosa e etílica, e da mistura em si. Em suspensão etílica, o ZrO2 apresentou elevado potencial negativo, enquanto o MgO, potencial positivo. A explicação destes fenômenos foi relatada mediante análises de espectroscopia de infravermelho por reflectância difusa (DRIFT), revelando reação entre o solvente e a superfície dos óxidos em estudo. É proposto um novo mecanismo para o efeito desaglomerante das suspensões etílicas de ZrO2, em função do elevado potencial eletrostático da suspensão. Por fim, o estudo da suspensão da mistura dos dois materiais na proporção de 3% em massa de MgO (~8,6% em mol) mostrou que, tanto o paH quanto o potencial zeta finais são determinados pela superfície deste último óxido, mesmo estando ele em menor quantidade.

Palavras-chave: Suspensões cerâmicas, zircônia, magnésia, superfícies, DRIFT.

Abstract

The use of suspensions as an intermediate step in the processing of the ZrO2-MgO mixture arises as an alternative to obtain homogeneity on the final product. A relationship between the stability control of this suspensions and the achievement of homogeneity on the product may be established. The behavior of oxide mixture suspensions depends on the physical-chemical characteristic and of the relative content of each component. In this work the behavior of each component of the ZrO2-MgO mixture was studied, either in aqueous or ethylic suspension, and also the behavior of the mixture. Zirconium oxide in ethylic suspension shows a highly negative potential; Magnesium oxide, on the other hand, shows a positive potential. The explanation was found after Diffuse Reflectance Infrared Fourier Transform (DRIFT) spectroscopy measurements, revealing a reaction between the solvent and surface of the oxides. A new mechanism for the desagglomeration effect of the ZrO2 ethylic suspensions, as a function of the highly electrostatic potential of the suspension is proposed. The study of suspensions of a mixture of both oxides for 3 wt% of MgO (~ 8.6 mol%) content shows that the final paH as well as the zeta potential are determined by the surface characteristics of the latter, even being the minor component in the mixture.

Keywords: Ceramic suspensions, zirconia, magnesia, surfaces, DRIFT.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, as inovações na utilização de materiais cerâmicos têm sido realizadas muito mais pelo desenvolvimento dos processos e técnicas de fabricação do que pela descoberta de novos materiais. Os processos de fabricação de materiais cerâmicos são basicamente constituídos pelas etapas de obtenção do pó, conformação, sinterização e acabamento final. Dentre estes, a conformação tem ganhado grande impulso com o aumento da compreensão dos fenômenos físico-químicos relacionados à dispersão das partículas nos meios fluídos e das técnicas de empacotamento de partículas [1].

A conformação dos materiais cerâmicos pode ser realizada por diferentes técnicas, dentre as quais podem ser citadas a colagem de barbotina, a colagem em fita, prensagem uniaxial e isostática, injeção e deposição por eletroforese [2]. Todas estas dependem da mistura do pó com um fluído em alguma etapa do processamento. Na preparação desta suspensão, onde o material adquire a fluidez suficiente para a conformação, há a mistura do(s) pó(s) com os aditivos necessários (tais como dispersantes e ligantes), sua homogeneização e, em alguns casos, a moagem das matérias-primas.

O solvente mais utilizado é a água, na qual se concentra a maior parte dos estudos de dispersões. Contudo, o desenvolvimento dos processos de conformação tem tornado necessária a utilização de outros solventes, principalmente orgânicos, que vêm sanar a necessidade de valores específicos de viscosidade, condutividade elétrica e constante dielétrica, bem como inércia química e baixo ponto de ebulição.

A mistura de partículas finas a um solvente é instável com o tempo e a sedimentação é um processo natural. O retardamento desta sedimentação (processo de estabilização), no entanto, pode ser obtido através da adsorção de íons e/ ou moléculas na superfície das partículas micro ou submicrométricas, que geram forças repulsivas, tanto por ação de cargas elétricas, como por impedimento espacial (estérico), ou ambas [1, 3].

A estabilização de suspensões em água é geralmente obtida através do controle do pH e pela adição de macromoléculas orgânicas ionizadas (polieletrólitos). Em suspensões com solventes de baixa constante dielétrica, onde a dupla camada elétrica formada ao redor das partículas tem sua distribuição comprimida, a estabilização é geralmente obtida pela ação de dispersantes estéricos [4].

Poucos estudos têm sido realizados em suspensões cujo solvente apresenta constante dielétrica intermediária, como os álcoois de baixo peso molecular [5], sendo pequena a ênfase na interação destes solventes com a superfície das partículas dispersas.

Para suspensões aquosas, o pH final é função da ionização de grupos hidroxilas superficiais segundo as reações [1]:

onde S representa a superfície do óxido e e são as constantes de dissociação ácida e básica em água, respectivamente. Quando a superfície do óxido tem um comportamento ácido com relação à água, a suspensão apresenta pH ácido e a superfície deve estar carregada negativamente (Equação (A)- potencial zeta < 0). No caso da superfície apresentar caráter básico com relação à água, a suspensão apresenta um pH final básico e a superfície do óxido deve estar carregada positivamente (Equação (B)- potencial zeta > 0).

Os íons H+ e OH- são determinantes de potencial para os óxidos cerâmicos em suspensão, independente do solvente utilizado. No caso de suspensões em álcoois como o etanol e o metanol, a formação de cargas superficiais pode também ser determinada pela diferença de acidez entre as hidroxilas formadas na superfície do óxido e aquelas do álcool utilizado [6], analogamente às suspensões aquosas. Quando a superfície é ácida com relação ao solvente, as partículas devem apresentar, no equilíbrio, cargas negativas (potencial zeta <0 ) e o pH final deve ser ácido (Equação (C)). Já quando a superfície apresenta caráter básico com relação ao solvente, as partículas devem apresentar cargas elétricas positivas (potencial zeta > 0) e o pH final deve ser básico (Equação (D)).

onde e são as constantes de dissociação ácida e básica em etanol, respectivamente.

As variações na carga superficial e no pH serão tanto mais intensas quanto maiores forem as constantes de equilíbrio, isto é, a diferença nas energias de dissociação. As constantes de equilíbrio mencionadas, entretanto, são dadas pela reação global dos vários grupos superficiais ionizados, e não pela reação individual de cada grupo, já que cada dissociação deve afetar a dissociação de um outro grupo presente na superfície do material de forma semelhante à de uma molécula polifuncional [7].

Assim como a maioria das misturas, a falta de homogeneidade físico-química do sistema ZrO2-MgO pode levar ao desenvolvimento de produtos com esta mesma característica. Estudos sobre homogeneidade do sistema ZrO2-MgO são bastante relatados na literatura, sendo sua fabricação geralmente realizada por métodos químicos, e não pela reação dos óxidos no estado sólido, para evitar problemas de heterogeneidade [8]. Em princípio, a homogeneidade deste sistema pode ser também obtida através da dispersão e estabilização dos óxidos em um solvente.

No caso de suspensões de misturas de diferentes óxidos, a formação de uma suspensão estável depende das características físico-químicas da superfície de cada componente. A contribuição de cada um depende da quantidade relativa, bem como da sua reatividade das superfícies em relação aos demais elementos do sistema. A zircônia e a magnésia apresentam características superficiais bastante diferentes no que diz respeito à sua acidez/basicidade com relação à água. Os pontos isoelétricos (IEP) da zircônia e da magnésia são respectivamente 4 e 12. Uma mistura destes dois óxidos em água terá, portanto, o pH final e as cargas superficiais controladas pelas constantes de dissociação dos grupos superficiais de cada óxido, pelas suas áreas específicas e quantidades relativas.

Estudos de dispersões aquosas de Al2O3 e SnO2, que apresentam IEP respectivamente iguais a 9 e 4, mostram que o dispersante a ser utilizado deve apresentar características compatíveis àquelas da superfície dos diferentes óxidos utilizados [9]. Portanto, parece contraditória a escolha de um aditivo na estabilização de uma suspensão de uma mistura de pós com características superficiais opostas, como o caso da mistura ZrO2-MgO. Tanto a mudança de pH quanto o tipo de aditivo devem, portanto, ser cuidadosamente correlacionados a fim de otimizar a ação de um dispersante e levar à homogeneização e estabilização do sistema. Entretanto, não é garantida, em muitos casos, a existência de tal situação ideal para a ação efetiva de dispersantes e, nestes casos, outras formas de estabilização, tal como reações entre partícula e solvente, devem ser pesquisadas.

Um fator importante no sistema ZrO2-MgO é a possibilidade de solubilização do MgO em pH abaixo de 9 em água. A solubilização do MgO pode ter conseqüências prejudiciais na homogeneidade e estabilidade da dispersão aquosa já que o íon Mg2+ pode reduzir o potencial zeta devido à compressão da dupla camada elétrica [10].

Este trabalho tem por objetivo o estudo de suspensões de ZrO2 e MgO, bem como uma mistura dos pós em etanol, verificando a reatividade do solvente com a superfície dos pós e estabelecer as melhores condições para a formação de uma suspensão estável da mistura desses óxidos neste solvente sem a necessidade da utilização de moléculas dispersantes.

MATERIAIS E MÉTODOS

Materiais utilizados

Os materiais utilizados na preparação das dispersões cerâmicas deste projeto foram o óxido de zircônio, proveniente da Usina Piloto de produção experimental de óxido de zircônio do IPEN (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), que apresenta apenas a fase monoclínica, pureza superior a 99% (dados do fabricante), área específica de 50,9 m2/g, medida por adsorção de nitrogênio (método BET), e tamanho médio de partícula de 26,8 mm, determinado por espalhamento laser. O óxido de magnésio (MgO), apresenta pureza aproximada de 98% (dados do fabricante), proveniente da Sinth, apresenta tamanho médio de partícula de 12,7 mm e área específica de 63 m2/g, determinada por porosimetria ao mercúrio.

Os solventes utilizados na preparação das suspensões cerâmicas foram o álcool etílico absoluto, com grau de pureza 99,5% do fabricante Sinth; e água deionizada (condutividade ~ 4 mS.cm-1).

Determinação de Potencial Zeta ¾ Método Eletroacústico

A separação de cargas existente na interface partícula-líquido origina uma variedade de fenômenos dinâmicos associados aos sistemas coloidais, conhecidos como efeitos eletrocinéticos. Classicamente, existem cerca de quatro efeitos distintos, os quais dependem da maneira pela qual o movimento das partículas é induzido: eletroforese, eletroosmose, potencial de escoamento e potencial de sedimentação. O potencial termodinâmico para os fenômenos eletrocinéticos não é a carga superficial em si, mas a carga líquida na interface entre o líquido que está hidrodinamicamente ligado à superfície da partícula e o volume do fluido solvente.

Além dos quatro fenômenos eletrocinéticos clássicos, existem outros efeitos fundamentais em sistemas dispersos chamados eletroacústicos. Quando um campo elétrico alternado é aplicado a uma suspensão coloidal, as partículas irão se mover em função da polaridade do campo e da carga elétrica efetiva associada à superfície do material. Como há uma diferença de densidade entre as partículas e o líquido, este movimento oscilatório das partículas resulta no desenvolvimento de ondas acústicas propagando-se no líquido. Este efeito foi denominado Amplitude Sônica Eletrocinética ou ESA (Electrokinetic Sonic Amplitude) e, podendo ser medido, oferece informações indiretas do valor das cargas superficiais [11]. A ESA é a amplitude de pressão gerada por um colóide por unidade de intensidade de campo elétrico e possui unidades SI de Pascal por Volt por metro. A ESA é proporcional à mobilidade eletroforética, que é representada em termos de velocidade normalizada pela intensidade do campo elétrico aplicado, sendo dada por [12]:

onde mD é a mobilidade eletroforética das partículas,f é a fração volumétrica, c é a velocidade do som no solvente em questão e Dr é a diferença de densidade entre a partícula e o solvente.

O sistema de medidas eletrocinéticas utilizado neste trabalho foi o ESA-8000 do fabricante Matec Applied Sciences, composto por uma unidade de geração de RF (radiofreqüência), uma célula de medição (que contém as sondas eletroacústica, de pH, de condutividade e de temperatura) com uma jaqueta acrílica externa para o controle de temperatura através de circulação de água, uma bureta digital (para realizar titulações potenciométricas) e uma unidade de interface para computador tipo IBM-PC.

As suspensões de ZrO2 e de MgO foram preparadas na concentração de 2% e 3% em volume de sólidos, respectivamente, para a determinação do sinal ESA (Tabela I).

O volume utilizado de 220 mL é o volume do recipiente de teflon que compõe o sistema de medidas eletrocinéticas (ESA-8000).

Medidas de pH em Etanol

Algumas discussões têm sido relatadas na literatura a respeito das medidas de pH em suspensões contendo etanol [13, 14]. Sarkar e Nicholson [13] propõem uma correção para as medidas de pHexp (valor experimental medido com eletrodo para soluções aquosas) realizadas em etanol, levando em consideração a atividade do íon H+, aH, e o potencial de junção líquida, DEj A relação entre o pH medido e o paH(valor corrigido) é dada por:

Como DEj pode ser considerado constante a uma dada temperatura (25 ºC) existe uma relação linear entre pHexp e paH que é proposta como [13]:

A mesma conversão foi adotada neste trabalho.

DRIFT ¾ Espectroscopia de Infravermelho por Reflectância Difusa

O espectrômetro de infravermelho utilizado para caracterizar os pós de ZrO2 e de MgO, bem como sua mistura, foi o Magna 560 Nicolet, que possui tratamento de dados por transformada de Fourier (FTIR). Foi utilizada uma célula de reflectância difusa (DRIFT) que permite a realização da análise da superfície de amostras na forma de pó sem a necessidade da prévia preparação. O acessório consiste em um conjunto de espelhos planos e um côncavo que recebe as radiações espalhadas da superfície do material quando esta é iluminada com um feixe de luz de raios infravermelhos na região de 4000 a 1000 cm-1.

Foram analisados os pós puros e tratados com álcool etílico. Este último tratamento consta da mistura dos pós com etanol, moagem em moinho de bolas por 4 horas e, por fim, secagem em estufa a 70 oC por 12 horas. Este procedimento garante a introdução de energia suficiente ao sistema de modo a ocorrer possíveis reações entre partículas e solvente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Suspensões de ZrO2

Os resultados de pH, ou paH, e potencial zeta medido através do efeito eletroacústico para suspensões aquosas e etílicas de ZrO2 estão representados na Tabela II.

Tanto o pH como o paH final das suspensões de ZrO2 (2% em volume) revelaram o comportamento ácido da superfície do pó com relação aos solventes utilizados. A principal diferença surge do elevado valor de potencial zeta negativo observado em meio etílico. O potencial zeta esperado para o etanol deveria ser pequeno, visto o reduzido valor da constante dielétrica (er = 24,3 a 25 ºC) se comparada com a da água (er = 78,24 a 25 ºC) [4]. Portanto, o elevado valor do potencial observado evidencia a reatividade da superfície com o etanol.

Em princípio, os comportamentos observados podem ser relacionados com dois aspectos fundamentais: (1) os íons determinantes de potencial para os óxidos são H+ e OH-; (2) a água apresenta-se mais ácida que o etanol (pKa água = 14 e pKa etanol » 16) [15]. Assim, a reatividade e conseqüente formação de cargas superficiais é determinada principalmente pela diferença de acidez da superfície do óxido com relação ao solvente em questão. Para suspensões etílicas de ZrO2, partindo do pressuposto que o íon ativo da molécula de etanol é o H+, a superfície da zircônia deve ser mais ácida que o etanol e a reação superficial pode ser representada pela equação (C). A superfície perde íons H+ para o etanol levando ao desenvolvimento de cargas negativas na superfície do óxido e a um paH ácido. Mecanismo semelhante deve ocorrer em suspensões aquosas, no entanto o reduzido valor de potencial zeta observado neste caso é conseqüência da reação simultânea da superfície com os íons H+ e OH-, presentes no sistema como resultado da dissociação da água. Desta maneira, apesar do pH final apresentar-se ácido, parte dos sítios superficiais devem ser neutralizados pelos grupos OH- e a carga total deve ser menor do que em meio etílico.

Os elevados valores de potencial zeta observados demonstram que uma suspensão de ZrO2 preparada em etanol não necessita de qualquer aditivo com atividade dispersante, já que a própria reação da superfície do óxido com o solvente é suficiente para se obter a repulsão eletrostática necessária para a estabilização da dispersão.

Outro mecanismo de geração de cargas superficiais pode ser desenvolvido observando a adsorção de íons etóxido do solvente na superfície da zircônia. A possibilidade desta adsorção está de acordo com dados da literatura [16] e fica confirmada quando é observado o espectro de infravermelho do pó de zircônia e do pó de zircônia com etanol obtidos com uma célula de refletância difusa (DRIFT) (Fig. 1).


Podem ser observadas as vibrações referentes ao grupo -CH2CH3 nas vibrações a 2979, 2935 e 2892 cm-1e nas vibrações a 1457, 1403 e 1307 cm-1. A formação da ligação entre o zircônio superficial e o oxigênio do grupo etóxido pode ser verificada pela vibração a 1051 cm-1. Ao mesmo tempo em que se observam as novas vibrações com origem no grupo etóxido ligado à superfície, há notável diminuição da vibração a 3695 cm-1 do espectro da zircônia. Este pico está relacionado ao estiramento das ligações dos grupos OH fortemente ligados à superfície da zircônia, que devem ter origem na decomposição da água [6, 17]. O desaparecimento desta vibração, quando da formação da ligação do etóxido com a superfície, sugere uma reação de condensação entre os grupos hidroxila superficiais e as moléculas de etanol, de acordo com a reação:

Contudo, a reação proposta não explica a formação de cargas elétricas superficiais durante a adição da zircônia ao etanol. A hipótese é que a adsorção química do grupo etóxido à superfície da zircônia pode levar a uma mudança significativa na densidade de elétrons nas ligações dos átomos da superfície do material. Deste modo, tal variação na densidade eletrônica pode repercutir na ionização de outros grupos hidroxilas, aumentando sua acidez com relação ao etanol [6]. A ionização dos grupos ¾OH superficiais da zircônia seria então melhor representada pela equação (C).

Na literatura de preparação de ZrO2, há citação da utilização de etanol como meio de lavagem para evitar aglomeração das partículas. O mecanismo proposto para explicar a aglomeração do pó na presença de água é a formação de ligações químicas entre átomos de oxigênio das partículas vizinhas, derivadas da reação de condensação de grupos OH- superficiais quando este é seco [16]. O mesmo fenômeno não deve ocorrer quando o pó é lavado com etanol, pois a formação de grupos etóxidos ligados à superfície impediriam, durante o aquecimento, a formação das ligações entre as partículas evitando sua aglomeração.

A prevenção da aglomeração da zircônia pelo uso de etanol pode ser explicada de maneira diferente observando os resultados apresentados na Tabela II. Independentemente do tipo de reação química que ocorre na superfície da zircônia com o etanol, existe a formação de uma carga elétrica superficial intensa, representada pelo potencial zeta, que deve promover uma forte repulsão eletrostática entre as partículas. Essa repulsão impediria a aglomeração das partículas durante sua secagem. O mesmo tipo de comportamento não pode ser esperado para a zircônia em água, já que os valores de potencial zeta são bastante inferiores aos obtidos em etanol.

Suspensões de magnésia

Os resultados de pH e potencial zeta medido através do efeito eletroacústico para suspensões aquosas e etílicas de magnésia estão representados na Tabela III.

As dispersões apresentaram pH e paH básicos e potenciais zeta positivos. Assim como para as suspensões de zircônia em etanol, foi observado um valor de potencial zeta mais elevado em etanol do que em água. Neste caso, o potencial zeta positivo aponta a possível adsorção de íons H+ na superfície da magnésia, evidenciando o forte caráter básico desta superfície com relação ao etanol e, ao mesmo tempo, levando à formação de uma suspensão básica, o que sugere a reação do etanol com a superfície da magnésia segundo a equação (D). Da mesma forma que para a zircônia, o reduzido valor de potencial zeta em meio aquoso deve ser conseqüência da adsorção de ambos íons determinantes de potencial, ou seja, H+ e OH-.

O espectro DRIFT do MgO mostra uma hidroxila fortemente ligada à superfície caracterizada pelo pico intenso observado a 3699 cm-1 [17]. A forte ligação entre a hidroxila e a superfície do material pode ser responsável pelo caráter básico da superfície. O espectro do MgO após a reação com etanol também é mostrado na Fig. 2 e aponta a formação de etóxido superficial, que, assim como na ZrO2, pode estar modificando as constantes de dissociação de hidroxilas superficiais [6].


Suspensões da mistura ZrO2¾ MgO (3% em massa de MgO)

A mistura de zircônia contendo 3% em massa de MgO (zircônia parcialmente estabilizada) é conhecida sendo largamente utilizada na preparação de sensores de oxigênio capazes de resistir a choques térmicos intensos [18]. No entanto, esta composição apresenta problemas de homogeneização e, em conseqüência, há dificuldades na obtenção de materiais sinterizados homogêneos. Desta forma, estes últimos são geralmente obtidos através de síntese química [8]. A utilização de suspensões da mistura para a obtenção de material homogêneo aparece, entretanto, como uma boa alternativa.

Durante a preparação de suspensões estáveis da mistura de zircônia e magnésia, vários fatores podem interferir na estabilidade e homogeneização, tais como a quantidade relativa de cada componente, o histórico de preparação dos pós (temperatura, tempo e atmosfera de calcinação e a rota de síntese adotada), a área específica dos materiais e ainda possíveis contaminantes adsorvidos nas superfícies.

Os dois materiais utilizados neste trabalho apresentam pontos isoelétricos (IEP) bastante diferentes, sendo um deles ácido (paH= 3,4) e outro básico (paH= 13,4). Foi preparada uma dispersão de ZrO2-3% MgO numa concentração de sólidos de 1% em volume. Os resultados de paHe de potencial zeta, assim como a comparação com os seus componentes isolados, é exibida na Tabela IV.

Percebe-se que, embora o MgO seja o componente minoritário da mistura, suas características físico-químicas prevaleceram sobre as da ZrO2. Deve-se notar que os dois materiais apresentam áreas específicas muito próximas. A pequena quantidade de MgO foi suficiente para determinar a carga elétrica superficial e o valor básico de paH obtido na mistura. Estudando o mecanismo proposto para a geração das cargas elétricas superficiais a partir da reação da superfície do material com o solvente, vê-se que a magnitude de tal grandeza para o MgO é suficiente para neutralizar a carga do ZrO2, mesmo estando em relativa pequena quantidade.

Algumas características notáveis e comuns aos espectros obtidos para os pós puros foram observadas no espectro de infravermelho da mistura ZrO2-MgO obtido através da técnica de reflectância difusa [17]. Pode ser observada a 3700 cm-1 a presença da mesma hidroxila, que se supõe estar fortemente ligada à superfície do MgO. O resultado certifica a contribuição significativa do MgO nas características fisico-químicas da mistura, ainda que se apresente em uma proporção pequena com relação à ZrO2.

O potencial zeta final e o paHmostram que, nas condições finais da mistura, a carga superficial do ZrO2 deve ser negativa e a do MgO positiva. Este fato leva a uma grande homogeneidade química, já que as partículas de ZrO2 devem atrair as de MgO e ao mesmo tempo repelir as semelhantes. O mesmo deve ocorrer com as partículas de MgO com relação à ZrO2. Sabe-se que a formação de solução sólida de zircônia-magnésia depende da homogeneidade química do sistema. Como conseqüência da boa homogeneidade obtida na suspensão e do baixo estado de aglomeração das partículas primárias, resultados preliminares de sinterização da mistura dos pós têm mostrado que a estabilização parcial da fase cúbica é obtida diretamente durante a sinterização, sem a necessidade de uma etapa prévia de reação entre os pós.

CONCLUSÕES

A preparação de materiais compostos a partir de uma mistura de diferentes pós cerâmicos pode ser conseguida com maior eficiência se as propriedades das superfícies dos materiais individuais forem consideradas no momento da preparação de uma suspensão. A zircônia apresenta uma carga superficial negativa e um paH ácido quando em contato com etanol. A carga elétrica pode ser responsável pela facilidade na obtenção de pós pouco aglomerados quando em meio etílico, devido à repulsão eletrostática entre as partículas do pó. A adsorção química do etanol foi verificada através dos espectros de infravermelho por refletância difusa (DRIFT).

A magnésia, por sua vez, apresenta uma carga positiva em etanol e um paH básico. A mistura dos dois materiais na proporção de 3% em massa de MgO, utilizada para a preparação de sensores de oxigênio em aço líquido, mostra que, tanto o paH quanto o potencial zeta são determinados pela superfície da magnésia, ainda que esta se apresente numa proporção muito menor que a zircônia. Nas condições finais da mistura, é possível a obtenção de uma suspensão estável com um valor de potencial zeta elevado, mesmo sem a utilização de aditivos. A diferença de carga entre as partículas de MgO (positivas) e ZrO2 (negativas) deve garantir a homogeneidade química da mistura e a obtenção de corpos cerâmicos sinterizados sem a necessidade da calcinação prévia para a obtenção da fase de zircônia parcialmente estabilizada.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à FAPESP pelo financiamento (processos 97/06152-2 e 99/03375-6). Ricardo H. R. de Castro agradece ao CNPq pela bolsa PIBIC.

REFERÊNCIAS

(Rec. 07/08/01, Ac. 12/10/01)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2002
  • Data do Fascículo
    Dez 2001

Histórico

  • Aceito
    12 Out 2001
  • Recebido
    07 Ago 2001
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