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Decomposição da fase majoritária do cimento Portland - Parte I: Alita Pura

Resumos

As propriedades mecânicas do cimento Portland estão intrinsecamente relacionadas à composição química do clínquer, em especial à concentração de silicato tricálcico 3CaO.SiO2, ou C3S. No processo produtivo industrial, o clínquer deve ser resfriado rapidamente, para evitar a decomposição do silicato tricálcico em silicato dicálcico e cal. Esse trabalho estuda a cinética de decomposição térmica do C3S puro. A decomposição do C3S puro em resfriamento contínuo apresentou uma velocidade mais elevada do que a tradicionalmente aceita na literatura.

Cimento; alita pura; decomposição


The mechanical properties of Portland cement are closely related to the chemical composition of the clinker, and particularly to the concentration of tricalcium silicate, 3CaO.SiO2, or C3S. In the industrial production process, the clinker must be rapidly quenched, to avoid its decomposition into dicalcium silicate and lime. This work studies the kinetics of thermal decomposition of pure C3S. The continuous cooling transformation of pure C3S showed a decomposition rate higher than the values traditionally accepted in the literature.

Cement; pure alite; decomposition


METALURGIA & MATERIAIS

Decomposição da fase majoritária do cimento Portland - Parte I: Alita Pura

Jorge Alberto Soares TenórioI; Fernando Gabriel da Silva AraújoII; Sérgio Sônego Raymundo PereiraIII; Andréa Vidal FerreiraIV; Denise Crocce Romano EspinosaV; Alexandre BarrosVI

IDr., Prof. Associado, EPUSP, REDEMAT

IIDr., Prof. Adjunto, Dep. de Física, REDEMAT/UFOP, E-mail: fgabriel@iceb.ufop.br

IIIBach. Química, Dep. Eng. Met. e de Materiais, EPUSP

IVM.Sc.,CDTN/CNEN, doutoranda REDEMAT/UFOP

VDr., Dep. Eng. Met. E de Materiais, EPUSP

VIDr., Dep. Eng. Met. e de Materiais, EPUSP

RESUMO

As propriedades mecânicas do cimento Portland estão intrinsecamente relacionadas à composição química do clínquer, em especial à concentração de silicato tricálcico 3CaO.SiO2, ouC3S. No processo produtivo industrial, o clínquer deve ser resfriado rapidamente, para evitar a decomposição do silicato tricálcico em silicato dicálcico e cal. Esse trabalho estuda a cinética de decomposição térmica do C3S puro. A decomposição do C3S puro em resfriamento contínuo apresentou uma velocidade mais elevada do que a tradicionalmente aceita na literatura.

Palavras-chave: Cimento, alita pura, decomposição.

ABSTRACT

The mechanical properties of Portland cement are closely related to the chemical composition of the clinker, and particularly to the concentration of tricalcium silicate, 3CaO.SiO2, or C3S. In the industrial production process, the clinker must be rapidly quenched, to avoid its decomposition into dicalcium silicate and lime. This work studies the kinetics of thermal decomposition of pure C3S. The continuous cooling transformation of pure C3S showed a decomposition rate higher than the values traditionally accepted in the literature.

Keywords: Cement, pure alite, decomposition.

1. Introdução

As propriedades do cimento Portland estão diretamente relacionadas às concentrações de suas fases constituintes, principalmente a alita, a belita, a fase ferrítica e o aluminato.[1,2] Estas fases são resultado da queima de uma mistura contendo rocha calcária e argila, com altos teores de CaCO3, SiO2, Fe2O3 e Al2O3. Este processo de queima atinge temperaturas entre 1450°C e 1500°C e o produto final é o clínquer de cimento Portland. É o clínquer que, misturado e pulverizado com gesso, produz o cimento Portland.

A alita, de composição 3CaO.SiO2 e abreviada por C3S, deve ser o constituinte majoritário do clínquer após o processamento, pois é sua reação de hidratação que confere a resistência mecânica ao cimento curado. A belita, de composição 2CaO.SiO2 e abreviada por C2S, está presente como o primeiro complexo de cal e sílica formado no aquecimento e, sendo mais estável que o C3S, volta a se formar no resfriamento.[1,2] O aluminato está presente principalmente na forma de 3CaO.Al2O3, abreviado por C3A, enquanto a ferrita aparece como constituinte principalmente na forma 4CaO.Al2O3.Fe2O 3, abreviada por C4AF[3,4]. O C3A e o C4AF formam uma fase líquida a alta temperatura, que envolve os grãos de C3S e C2S.

Ao ser aquecida, a matéria-prima passa pelos processos de evaporação da água livre, liberação da água combinada com a argila, dissociação do carbonato de cálcio com liberação de cal livre, CaO e, finalmente, a clinquerização, que ocorre entre 1300ºC e 1450ºC e consiste na fusão do aluminato e da ferrita, na formação de cristais de C2S e sua conversão em C3S na presença do material fundido. Altun[5] estudou o efeito da taxa de aquecimento na clinquerização e concluiu que altas taxas de aquecimento permitem temperaturas de queima mais baixas. No processo de resfriamento do clínquer ocorre a solidificação do líquido contendo C3A e C4AF e a reação de decomposição de parte do C3S em C2S e CaO. Hong et al.[6] observaram os efeitos de uma alta velocidade de resfriamento sobre as propriedades mineralógicas de um clínquer industrial, mas não há trabalhos detalhados com estudos sobre os efeitos da velocidade de resfriamento sobre as propriedades do clínquer.

O C2S é o primeiro complexo de cal e sílica formado, de maneira que, em misturas estequiométricas, toda a sílica combinada está presente na forma de 2CaO.SiO2 a 1200ºC. A formação do C3S se inicia a temperaturas da ordem de 1400ºC, seguindo lenta até 1500ºC. A presença de alumina e óxido de ferro na mistura para a produção do clínquer acelera a formação do C3S[2]. Isto é conseqüência do aparecimento da fase líquida, com a fusão das fases C3A e C4AF, a aproximadamente 1300°C. A presença da fase líquida acelera a difusão de íons em direção ao C2S, favorecendo a formação do C3S. Recentemente, Antón et al.[7] estudaram os a sinterização na presença de fase líquida de compósitos de matriz cerâmica à base de cimento Portland, porém não há estudos divulgados dos efeitos individuais de cada constituinte sobre a clinquerização.

A maior estabilidade do C3S ocorre em temperaturas acima de 1400°C, de maneira que, a temperaturas mais baixas, essa fase tende a se decompor em CaO e C2S. A fase C3S fica presente à temperatura ambiente como metaestável e sua alta reatividade é fundamental para o comportamento de hidratação do cimento. O resfriamento do clínquer, para a obtenção de um alto teor de C3S ao final, deve ser rápido, de modo a evitar sua decomposição em cal livre e belita.

Dada a natureza do processo de fabricação do clínquer, além dos compostos de cálcio, silício, ferro e alumínio, outros compostos, inclusive compostos metálicos, estão presentes na matéria- prima e influenciam tanto a formação quanto à estabilidade do C3S.

Para a determinação exata dos efeitos de metais na estabilidade do C3S e do C2S, é necessário que, primeiro, se conheça o comportamento dessas fases em seu estado puro. O presente trabalho se inicia com a produção de alita pura, na composição 3CaO.SiO2, e estuda o comportamento de sua decomposição em belita e cal livre durante o resfriamento em várias velocidades diferentes. Curvas da concentração de alita remanescente ao longo de cada ciclo de resfriamento foram produzidas. Essas curvas revelam novos dados do comportamento do C3S e permitirão avaliar os resultados de outros experimentos semelhantes, porém na presença de outros metais.

2. Procedimento

A produção de C3S puro é dificultada pela sua alta reatividade e pela ausência da fase líquida, produzida pelos aluminatos e ferritas no processo de fabricação do clínquer. Alita pura e estável à temperatura ambiente foi produzida pelo método descrito por Odler e Dörr[8]. Uma mistura com 83,326% de CaCO3 e 16,674% de sílica gel, triturada e homogeneizada, foi submetida a 2 ciclos térmicos sucessivos, na forma de briquetes, com sinterização a 1550°C por 24h, seguida de têmpera em álcool etílico e nova pulverização. A síntese de C3S puro foi confirmada por difratometria de raios-X e por análise térmica diferencial.

Foram produzidos 35 briquetes a partir do pó do C3S sintetizado. Esses briquetes possuíam aproximadamente 3mm de altura por 15mm de diâmetro e foram aquecidos a 1540ºC durante 20min sendo em seguida resfriados. As taxas de resfriamento utilizadas foram de 10, 8, 6, 4, 2, 1 e 0,5ºC/min. Para cada taxa de resfriamento, foram realizadas têmperas das amostras em álcool a 1200, 1150, 1010, 940 e 870ºC, para a posterior determinação da fração de alita decomposta.

Análises químicas foram realizadas para a determinação da fração de cal livre em cada uma das 35 amostras. O método utilizado para medir a quantidade de CaO livre presente na amostra foi a titulação com HCl (0,1N) em etileno glicol neutralizado[9]. Como toda a cal livre é necessariamente proveniente da decomposição do C3S em C2S e CaO, a determinação da quantidade deste composto em cada condição de temperatura e velocidade de resfriamento é uma medida da transformação da alita em resfriamento contínuo. Com esses dados, foram construídas curvas CCT para a decomposição térmica da alita pura.

3. Resultados e discussão

A Figura 1 mostra o percentual em massa da amostra de cal livre, resultante da decomposição de amostras de alita pura, C3S, no resfriamento a partir de 1540°C, para as velocidades de resfriamento de 10, 8, 6, 4, 2, 1 e 0,5°C/min, nas temperaturas de 1200, 1150, 1010, 940 e 870ºC.

Figura 1
- Percentual, em peso, da amostra de cal livre, resultante da decomposição de amostras de alita pura, C3S, no resfriamento a partir de 1540°C, em função da velocidade de resfriamento.

A porcentagem em massa de C3S decomposto foi calculada a partir da relação C3S => CaO + C2S. Como o peso molecular do C3S é de 228 g/mol, o do CaO é de 56 g/mol e o do C2S é de 172 g/mol, verifica-se que o CaO, que pode ser liberado da decomposição da alita, representa 24,6% da massa total. Desta forma, cada 1% em peso de CaO liberado, corresponde a 4,065% em peso de C3S decomposto.

A Figura 2 mostra o percentual em massa de alita decomposta durante o resfriamento de uma amostra pura, de composição 3CaO.SiO2, a partir de 1540°C, em função da velocidade de resfriamento. As Figuras 1 e 2 revelam que praticamente toda a alita está decomposta já a 870°C, para uma velocidade de resfriamento de 0,5°C/min, enquanto, à mesma temperatura, menos de 20% em peso da alita se decompõem, para uma velocidade de resfriamento de 10°C/min. Abaixo de 870°C, embora a dissociação da alita possa continuar, a sua cinética é retardada, posto que há pouca energia térmica disponível.

Figura 2
- Percentual em peso de alita decomposta durante o resfriamento de amostras puras, de composição 3CaO.SiO2, a partir de 1540°C, em função da velocidade de resfriamento.

As curvas de percentual em peso de alita decomposta mostram tempos de início de decomposição muito menores que o tradicionalmente descrito na literatura[1]. Mohan e Glasser[7], em curvas TTT, apresentam 10% de decomposição de C3S após 4 horas de tratamento a 1000°C, enquanto as curvas obtidas neste trabalho, com velocidade de resfriamento de 10°C/min, apresentam amostras com os mesmos 10% de decomposição em um tempo de apenas 54 minutos, que é o tempo gasto para a amostra ser resfriada de 1540°C a 1000°C naquela velocidade. Velocidades mais lentas de resfriamento implicam percentuais de decomposição ainda maiores, chegando a 60% de decomposição a 1000°C, para o resfriamento de a 2°C/min, correspondentes a aproximadamente 4 horas de reação.

Uma hipótese para esse comportamento é que curvas TTT são determinadas através de tratamentos isotérmicos, onde as amostras são, a partir da temperatura ambiente, aquecidas até a temperatura de tratamento isotérmico. Isso resulta em pequena energia do sistema para a ativação da nucleação dos primeiros grãos de CaO e C2S na superfície dos cristais de C3S. A Figura 3 mostra uma micrografia de uma amostra de clínquer, com C2S nucleando na superfície dos cristais de C3S.

Figura 3 - Fotomicrografia de amostra de clínquer, resfriada com velocidade de 6ºC/minuto, mostrando os cristais azulados de alita, com núcleos de belita, na cor marrom. 600X.

Já nas curvas de resfriamento contínuo, as amostras vêm de temperaturas muito superiores às de tratamento isotérmico, de modo que as altas energias do sistema favorecem a cinética de nucleação. Assim, no processo industrial, quando o clínquer é resfriado a partir de altas temperaturas, deve-se esperar uma estabilidade da alita menor que a aceita até o momento.

4. Conclusões

Praticamente toda a alita está decomposta já a 870°C, para uma velocidade de resfriamento de 0,5°C/min, enquanto, à mesma temperatura, menos de 20% em peso da alita se decompõem, para uma velocidade de resfriamento de 10°C/min.

O diagrama de resfriamento contínuo do C3S puro apresenta uma velocidade de decomposição mais elevada do que a tradicionalmente aceita na literatura.

O C3S, no processo industrial, no qual ele é resfriado continuamente após a clinquerização, é mais instável do que o registrado na literatura. Em resfriamento contínuo, são observados 60% de decomposição da alita a 1000°C em 4 horas, ou seja, com uma velocidade de resfriamento de 2°C/min, contra apenas 10% a 1000°C após 4h, conforme curvas TTT presentes na literatura.

5. Referências bibliográficas

Artigo recebido em 18/05/2003 e aprovado em 30/07/2003.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2003

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2003
  • Aceito
    30 Jul 2003
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