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Dor, quinto sinal vital

Pain, the fifth vital sign

PAUSA ENTRE CONSULTAS BETWEEN APPOINTMENTS

Dor, quinto sinal vital(* * Conferência de abertura da XVII Jornada Brasileira de Reumatologia, realizada em Porto de Galinhas, PE, entre 3 e 6 de setembro de 2003. )

Pain, the fifth vital sign

Fernando Neubarth

Médico especialista em Clínica Médica e Reumatologia e preceptor de residência médica. Membro titular da Sociedade Brasileira de Reumatologia, presidente da Sociedade de Reumatologia do Rio Grande do Sul, biênios 2000/02 e 2002/04 e editor do Boletim da Sociedade Brasileira de Reumatologia, desde 1994. Escritor, prêmios Açorianos e Henrique Bertaso de Literatura (1994) e Prêmio Nacional para Médicos Escritores (2000)

Antes de iniciar, gostaria de agradecer o convite para esta conferência. Saúdo a todos, mas aproveito também para manifestar, agora publicamente, a imensa honra de ter recebido o título de Sócio Honorário da Liga Norte-Nordeste. Sou talvez o nortista-nordestino que vive mais próximo do frio do pólo Sul, mas o calor da amizade de vocês tem me acompanhado. Muito obrigado!

Bem,

Prezados amigos:

Estamos em Porto de Galinhas e o tema da conferência de abertura e desta Jornada é "Dor, Quinto Sinal Vital".

Porto de Galinhas é sabidamente um paraíso. Dor, conforme os dicionários e a maior ou menor experiência de cada um de nós, é uma sensação desagradável, variável em intensidade e em extensão de localização, produzida pelo estímulo de terminações nervosas especiais. Dor também pode ser uma mágoa, um pesar, uma aflição. Um paraíso é sempre um lugar aprazível, prazeiroso, o Céu, o Éden, um jardim de delícias, onde, pelo que reza a Bíblia, Deus colocou Adão e Eva.

Por esse caminho, vocês concordarão comigo, há coisas que não combinam.

Dor, quinto sinal vital. Já tínhamos quatro: a pressão arterial, o pulso, a respiração e a temperatura; busca-se agora a avaliação da dor de nossos pacientes. Os outros sinais são facilmente mensuráveis e desde há muito fazem parte de uma conduta já automatizada e universal. De uma hora para outra surge um novo conceito, a medida da dor. A Declaração de Lisboa, de 1995, da Associação Médica Mundial sobre os Direitos dos Pacientes, fala no Direito à Dignidade. O Direito a não ter Dor. A avaliação da dor tem sido preconizada e até regulamentada como o quinto sinal vital, tendo sido proposta pela American Pain Society. Virou lei nos Estados Unidos, faz parte dos Direitos dos Pacientes serem assistidos na dor. Uma abordagem aparentemente absurda, dada à imensa subjetividade que representa. O questionário de McGill, Escalas Visuais, Escala de Dor Neuropática, Diários de Pacientes, diversos instrumentos têm sido propostos e aplicados para aproximar-se de uma medida mais fiel à realidade. Monitora-se a dor, respectivamente, por sua qualidade, intensidade, padrão e localização. Desenham-se protocolos, treina-se pessoal, em equipes multidisciplinares, normatiza-se para unificar a linguagem. É necessário também promover a educação e, além do alívio do sofrimento, há a vantajosa diminuição de custos; gastos com o tratamento da dor poderiam ser destinados à promoção da saúde.

Mas será possível? Antes de responder é preciso tentar compreender o que é dor, todos os seus nomes, todas as suas representações, seu simbolismo. Ora, como poderia alguém ter essa idéia de medir a dor? Pode alguém querer avaliar, com alguma precisão,ou sequer aproximação a dor do outro? Teria ouvido alguém dizer: – "Isso só pode ser coisa de enfermeira!"?

Medicina e Enfermagem, suas práticas, tratamentos e cuidados sempre andaram juntos e se confundem em muitas situações. A moderna enfermagem começou há um século e meio, com o trabalho de uma jovem inglesa, na Guerra da Criméia.

O Hospital Militar de Scutari era um inferno com mais de 20 mil feridos, compartilhando seis quilômetros de camas imundas, sujeira e dor. Doenças, fome, amputações, ferimentos. Um verdadeiro caldo de cultura para infecções. Segundo os relatos, num determinado momento havia mais de mil homens sofrendo de disenteria e apenas 20 urinóis.

Contra tudo e todos, aquela mulher chegou lá, aos trinta e quatro anos de idade, trocando uma vida pacata e fútil, na Inglaterra vitoriana, iniciando uma guerra ainda maior. Ela revolucionou a Medicina, provocando a ira de alguns médicos, indignados com aquela verdadeira afronta, o questionamento de dogmas.

Florence Nightingale lamentaria sempre todas aquelas perdas. Em seis meses, 73% de oito regimentos britânicos sucumbiram. Das 40 enfermeiras que recrutou para acompanhá-la, só 12 sobreviveriam. Mas vale ler o relato de um soldado no Hospital Militar: "Que conforto era vê-la passar serenamente. Ela podia falar com um, inclinar a cabeça e sorrir para muitos outros; mas não podia fazer isso com todos. Nós éramos algumas centenas; mas podíamos beijar sua sombra, como se fosse ela, e então, reconfortados, deitar nossas cabeças sobre os travesseiros."

Florence Nightingale ficou conhecida como a dama da lâmpada e trouxe muita luz, a verdadeira luz, aquela que alivia sofrimentos. Ela viveria ainda muito, até os 90 anos em 1910, lutando sempre, criando normas, modificando condutas, mesmo tendo ficado impossibilitada de pôr-se em pé nos seus últimos 50 anos.

"Curar algumas vezes, aliviar outras, cuidar sempre" – uma lição secular do Dr. Edward Trudeau, que não devemos esquecer.

Aliviar a dor... Li numa propaganda de uma clínica especializada em Porto Alegre: "Natural é não sentir dor." Será? Não.

Sabe-se que a dor é necessária; mais, é vital. Sem dor o homem não sobrevive, não cresce, desconhece o perigo do fogo, a aspereza dos solos, o veneno dos espinhos, a maldade do outro. Mas não há por que perseguir aquela idéia de flagelo, de que a dor é boa; necessária talvez, até certo ponto.

Se eu fosse William Shakespeare, diria: – "A dor enerva a alma, deixa-a temerosa, degenera-a; a dor é o veneno da beleza."

Paraíso e dor não combinam.

E, voltando à Bíblia, Deus fez adormecer Adão para da sua costela criar Eva. Anestesia, analgesia, foi Ele quem nos ensinou. Levado por Eva, o homem provou o fruto do conhecimento, do Bem e do Mal. Algo que parecia ser da competência única do Criador. Deus expulsou-os do paraíso e não deixou por menos, advertindo Eva: – Darás à luz com dor.

Dor. Dor não combina com paraíso.

Porto de Galinhas também é um paraíso. Um porto paradisíaco. Mas, e as galinhas? – Galinhas d'Angola, nos ensina a história. Naquela mesma época, em que Florence Nightingale iluminava um cuidado novo, ajudada pela luz de um lampião turco, Porto de Galinhas tinha um intenso movimento. Nosso país, em muito paradisíaco, foi o último a abolir a escravidão. Valendo-se de um falso poder, que se atribuiria a um deus mau, do Éden africano eram arrancados filhos do peito das mães, mães eram privadas de seus filhos, casais separados, amores acabados, roubados, furtados, violentados, famílias e aldeias destroçadas. A dor chegava a esse paraíso, uma dor que a hipocrisia tentava dar tintas de uma veladura e a cada novo navio, corria a notícia: chegou ao porto um novo carregamento de "galinhas d'angola". Homens escravizando homens. Pobres animais que somos, todos. Alguém poderia tentar mensurar a dor daquelas separações, daquelas violações, sofrimentos? À maneira dos gregos, se fosse deles essa tragédia, um coro agora se ergueria para cantar algumas passagens dessa nossa história que traz em si a dor da mais pura vergonha. Nesse caso, para melhor marcar a farsa, que fosse um coro de galinhas d'angola, um coro de desesperança e fadiga: – Às vezes me cansa, fraco, fraco, fraco.

É preciso aliviar a dor, mas propor mensurá-la, como? Como medir a dor, a cólica por espasmos, os gritos em decibéis, a amargura em baldes, o sofrimento, a mágoa, a desilusão, a paixão interrompida, a perda, a morte, a falta, a ausência?

A dor que se sabe, que se sofre, a dor que se conta, a dor que se pinta e reproduz. Poderia trazer aqui a imagem d'O grito de Münch, as telas de Frida Kahlo.

E a Pietà. Há dor maior, mais antinatural que a dor de perder um filho?

Há muito que se busca entender a dor, para poder aliviá-la...

– "O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que finge até que é dor, a dor que deveras sente"... – ensina-nos Fernando Pessoa. – "E os que lêem o que escreve, na dor lida sentem bem, não as duas que ele teve, mas só a que eles não têm."

Ou, como disse Camões: – "A dor que a minh'alma sente. Não na saiba toda a gente."

Pensei em usar tantas imagens, cheguei a ensaiá-las para um audiovisual. Mas confio nas vossas imagens.

E valho-me aqui, mais uma vez, de uma geringonça. Não sei se já viram uma destas. Não é nem o pêndulo de Foucault nem a lâmpada de Aladim. É apenas mais uma lanterna. Uma lanterna mágica.

A magia desta lanterna está na sua capacidade de buscar, de encontrar boas histórias. É uma lanterna de procedência alemã. Foi fabricada por um tal de Hermann Riemann, na cidade de Chemnitz. Chemnitz foi até pouco tempo Karl-Marx Stadt, voltando ao antigo nome depois que ventos de liberdade derrubaram o muro, aquele muro doloroso.

Não é por acaso que a lanterna se chama "Phänomen".

Pertenceu a um imigrante que veio para o Brasil em 1851, também naqueles tempos de nossas outras histórias, na legião dos Brummer, mercenários alemães contratados para combater o ditador Rosas. O nome desse homem: Heinrich Carsten Jürgensen.

Além da lanterna propriamente dita, era homem de algumas luzes.

Anos depois, foi legada a Balduíno Robinson, que também soube usá-la para iluminar caminhos e buscar histórias.

Alguém poderia perguntar-se: – Mas aonde ele quer chegar com esta conversa?

Acontece que o avô de meu avô, o Jürgensen, e também o meu avô, o Robinson, foram médicos.

E essa é uma lanterna de carbureto. Há dentro do recipiente uma espiral, onde a combinação de dois sólidos simples formam um gás, volátil, inflamável.

Na frente, uma pequena válvula inglesa onde se dá a chama.

Em cima, uma espécie de chaminé deixa escapar a fumaça. E há até um comando de intensidade da luz, numa escala de 0 a 6.

Para completar o charme, nas laterais, um rubi e uma esmeralda de imitação projetam uma luz vermelha e outra verde, que pode ser reconhecida à distância.

A lanterna era presa junto à sela do cavalo, como um farol, e auxiliou, em diferentes épocas, meu tataravô e meu avô a encontrar picadas e enfrentar matos cerrados, em chamadas noturnas, pela região de Taquara, Igrejinha, Três Coroas, no interior do Rio Grande do Sul.

Eram médicos e iam visitar pacientes. Encontravam histórias. Faziam diagnósticos, sabiam que muitas vezes não era possível mudar o final, mas tentavam, de alguma forma, transformar o enredo.

Usavam cataplasmas, ventosas, doses homeopáticas de diferentes soluções e quando nada resultava, tiravam do alforje doses maciças e generosas de esperança.

Meu avô aprendeu Medicina com o meu tataravô. Eu não cheguei a conhecer o meu avô. Era médico, prático licenciado, homem de bem pelo que contam e pelo que conheço dos livros que possuía. Lia muito. E quem lê muito não pode ser mal-intencionado; quem escreve, talvez...

Na ditadura do Estado Novo, os práticos foram proibidos de trabalhar. E o velho Balduíno apagou sua lanterna. Morreu sem perdoar Getúlio.

Lembrei-me dessa história por causa de uma outra história. Na casa do meu avô, onde ainda vivem meus velhos tios, havia um piano, pertencera à minha tia mais velha, a tia Alzira, que faleceu no ano passado aos 92 anos. Ela era de 1910, nasceu no mês seguinte ao da morte de Florence Nightingale, e como ela também ajudou a cuidar de doentes, os de casa e os pacientes do meu avô. Minha mãe, a caçula daquela família aparece numa foto de 1927, ainda na prenhez da barriga de minha avó. Foi uma foto feita às pressas, o avô, a avó, os setes irmãos de minha mãe. A foto foi encomendada porque meu tio Olímpio sofria de febre reumática e estava fadado a morrer. Olímpio morreu poucos meses depois, aos 14 anos de idade. Na época, não havia tratamento.

Minha tia nunca mais tocou o piano, o avô Balduíno mandou que o retirassem da casa. O tal piano ficara no paiol praticamente ao relento e só lhe sobrava o formato, o que restou da ação do tempo e dos cupins. Algumas teclas, cordas arrebentadas, a madeira podre. Uma dor capaz de ser medida, uma dor que apesar de toda a vida daquela casa, esteve bem presente, acompanhando as horas, os dias, os anos, as décadas.

Rubem Alves inicia um de seus livros, a respeito da figura do médico, dizendo que: – "Instrumentos musicais existem não por causa deles mesmos mas pela música que eles podem produzir". E compara o corpo a um delicado instrumento musical. Diz ele: – "Em outros tempos, os médicos e as enfermeiras sabiam disso. Cuidavam dos remédios e das intervenções físicas – bons para o corpo – mas tratavam de acender a chama misteriosa da alegria. Mas essa chama não se acende com poções químicas. Ela se acende magicamente. Precisa da voz, da escuta, do olhar, do toque, do sorriso."

Eu lembro a vocês: - Há muito se sabe que placebos também podem aliviar parte da dor, mas que depende mais de como é dado, de quando é dado, e, principalmente, de por quem é dado.

E, muitas vezes, é, sim, possível medir a dor. Aquele piano era uma das dores do meu avô e da minha família.

Num tempo de deslumbre tecnológico, num tempo no qual parece não se permitir a tristeza, que se tenta aplacar qualquer frustração com rótulos e antidepressivos, medir a dor é um novo desafio, não há a menor dúvida. E pode ser uma mudança, na discussão do sofrimento uma vitória do Humanismo, uma luz de esperança na Arte da Medicina e na trajetória do ser humano.

Eu disse que essa é uma lanterna mágica. Ela continua a iluminar caminhos. Hoje, aqui, fez com que eu pudesse preencher um espaço de um acontecimento sério como este apenas contando histórias.

Contar, ouvir, ouvir contar, ouvir e contar histórias, existirá melhor maneira de avaliar e aliviar a dor?

Da Arábia vem o ensinamento: Sherazade encantou o sultão e enganou a morte contando histórias por mil e uma noites.

Nesta noite, parafraseando um pernambucano, o nosso Manuel Bandeira: – "Quando não é possível tentar o pneumotórax, a única coisa a fazer é tocar um tango argentino." Aqui, e agora, o melhor é convidá-los a brindar à vida e, quem sabe, brincar o frevo.

Muito obrigado pela atenção de todos.

Responsável: Saul Schaf

  • *
    Conferência de abertura da XVII Jornada Brasileira de Reumatologia, realizada em Porto de Galinhas, PE, entre 3 e 6 de setembro de 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Fev 2004
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