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Imunossupressão com ciclofosfamida e fludarabina, com suporte de células tronco hematopoéticas autólogas CD-34+, para tratamento de esclerose sistêmica severa

Immunosuppression with cyclophosphamide and fudarabine, with support of autologous CD-34+ stem cells, in the treatment of severe scleroderma

Resumos

Evidências recentes mostram a possibilidade de se retardar a evolução da esclerose sistêmica (ES), mesmo em suas formas mais graves, com ablação de células T, no momento reconhecidas como as principais envolvidas no processo fisiopatogênico. Altas doses de quimioterapia com suporte de células tronco hematopoéticas (CTH) - às vezes denominado pela literatura de "transplante da medula óssea" - tem-se mostrado um meio efetivo de controlar algumas doenças auto-imunes, entre elas a esclerose sistêmica. Neste trabalho é relatado o caso de paciente com forma difusa de esclerose sistêmica, em que se efetuou imunossupressão com ciclofosfamida 0,5 g/m² e fludarabina e suporte de células CD34+ autólogas sem depleção específica de linfócitos T. O paciente foi avaliado de forma periódica durante 12 meses através de testes cutâneos, exames de imagem, exames laboratoriais e questionário sobre qualidade de vida. A evolução imediata mostrou melhora importante dos quadros cutâneo e gastrointestinal, com melhora da diarréia e síndrome de má-absorção, que no entanto não se manteve após seis meses de evolução. O paciente apresentou reação transfusional passageira, infecção por herpes zoster e bronco-pneumonia durante o período de observação, evoluindo para óbito 12 meses após o procedimento. Este ocorreu por complicações no trato intestinal e broncopneumonia por aspiração. Imunossupressão induzida por drogas, e não o transplante autólogo de células CD-34+, pode ter sido o mecanismo responsável pela melhora nos primeiros meses de observação.

esclerose sistêmica; doenças auto-imunes; imunossupressão; transplante autólogo; células CD-34+


Immune ablation of T lymphocytes, key players in the physiopathogenic processes leading to autoimmune diseases, may arrest scleroderma progression even in some severely ill patients. High-dose chemotherapy followed by autologous stem cell reinfusion - sometimes named peripheral blood stem cell transplantation - has been an effective therapy for some autoimmune diseases, including scleroderma. In this paper the authors present a patient with the diffuse form of scleroderma who received immunosuppression with cyclophosphamide 0.5 g/m² and fludarabine followed by infusion of autologous CD-34+ cells without T lymphocyte purging. This patient was followed up with cutaneous score measures, imaging and laboratory tests, as well as a well-being questionnaire. After transplantation there were major positive responses on skin and gastrointestinal tract, with cessation of diarrhea and malabsorption syndrome. These clinical improvements did not last past 6 months. We observed transitory stem cell transfusion reaction and localized herpes zoster. The patient died 12 months after the procedure due to aspirative pneumonia and gastrointestinal complications. The immunosuppressive regimen, and not the autologous stem cell transplantation, could have been responsible for the observed transitory patient improvement.

systemic scleroderma; autoimmune diseases; immunosuppression; autologous stem cell transplantation; CD-34+ cells


RELATO DE CASO CASE REPORT

Imunossupressão com ciclofosfamida e fludarabina, com suporte de células tronco hematopoéticas autólogas CD-34+, para tratamento de esclerose sistêmica severa(* * Serviços de reumatologia, oncologia e hematologia do Hospital São Lucas da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS. Trabalho realizado com o apoio do Fundo de Auxílio à Pesquisa e Ensino em Reumatologia da Sociedade Brasileira de Reumatologia. )

Immunosuppression with cyclophosphamide and fudarabine, with support of autologous CD-34+ stem cells, in the treatment of severe scleroderma

Carlos Alberto von MühlenI; Éverton Luís HinterholzII; Bernardo GaricocheaIII; Pedro WeingrillIV; Carlos BarriosV; Mário Sérgio FernandesVI; Rosângela DahmerII; Mauro W. KeisermanVII; Henrique Luiz StaubVIII

IProfessor titular de reumatologia e imunologia da Faculdade de Medicina da PUCRS

IIMédico(a) residente do serviço de reumatologia do Hospital São Lucas da PUCRS

IIIProfessor adjunto de hematologia da Faculdade de Medicina da PUCRS, chefe do serviço de oncologia do Hospital São Lucas da PUCRS

IVMédico preceptor de reumatologista do Hospital São José e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Joinville, SC

VProfessor assistente de oncologia da Faculdade de Medicina da PUCRS

VIProfessor assistente de hematologia da Faculdade de Medicina da PUCRS

VIIChefe do serviço de reumatologia do Hospital São Lucas da PUCRS

VIIIProfessor assistente de reumatologia da Faculdade de Medicina da PUCRS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Carlos Alberto von Mühlen R. Cel.Camisão 132, ap. 201 Porto Alegre, RS, CEP 90540-050 E-mail: cavm@rocketmail.com

RESUMO

Evidências recentes mostram a possibilidade de se retardar a evolução da esclerose sistêmica (ES), mesmo em suas formas mais graves, com ablação de células T, no momento reconhecidas como as principais envolvidas no processo fisiopatogênico. Altas doses de quimioterapia com suporte de células tronco hematopoéticas (CTH) - às vezes denominado pela literatura de "transplante da medula óssea" - tem-se mostrado um meio efetivo de controlar algumas doenças auto-imunes, entre elas a esclerose sistêmica. Neste trabalho é relatado o caso de paciente com forma difusa de esclerose sistêmica, em que se efetuou imunossupressão com ciclofosfamida 0,5 g/m2 e fludarabina e suporte de células CD34+ autólogas sem depleção específica de linfócitos T. O paciente foi avaliado de forma periódica durante 12 meses através de testes cutâneos, exames de imagem, exames laboratoriais e questionário sobre qualidade de vida. A evolução imediata mostrou melhora importante dos quadros cutâneo e gastrointestinal, com melhora da diarréia e síndrome de má-absorção, que no entanto não se manteve após seis meses de evolução. O paciente apresentou reação transfusional passageira, infecção por herpes zoster e bronco-pneumonia durante o período de observação, evoluindo para óbito 12 meses após o procedimento. Este ocorreu por complicações no trato intestinal e broncopneumonia por aspiração. Imunossupressão induzida por drogas, e não o transplante autólogo de células CD-34+, pode ter sido o mecanismo responsável pela melhora nos primeiros meses de observação.

Palavras-chave: esclerose sistêmica, doenças auto-imunes, imunossupressão, transplante autólogo, células CD-34+.

ABSTRACT

Immune ablation of T lymphocytes, key players in the physiopathogenic processes leading to autoimmune diseases, may arrest scleroderma progression even in some severely ill patients. High-dose chemotherapy followed by autologous stem cell reinfusion - sometimes named peripheral blood stem cell transplantation - has been an effective therapy for some autoimmune diseases, including scleroderma. In this paper the authors present a patient with the diffuse form of scleroderma who received immunosuppression with cyclophosphamide 0.5 g/m2 and fludarabine followed by infusion of autologous CD-34+ cells without T lymphocyte purging. This patient was followed up with cutaneous score measures, imaging and laboratory tests, as well as a well-being questionnaire. After transplantation there were major positive responses on skin and gastrointestinal tract, with cessation of diarrhea and malabsorption syndrome. These clinical improvements did not last past 6 months. We observed transitory stem cell transfusion reaction and localized herpes zoster. The patient died 12 months after the procedure due to aspirative pneumonia and gastrointestinal complications. The immunosuppressive regimen, and not the autologous stem cell transplantation, could have been responsible for the observed transitory patient improvement.

Keywords: systemic scleroderma, autoimmune diseases, immunosuppression, autologous stem cell transplantation, CD-34+ cells.

INTRODUÇÃO

A esclerose sistêmica (ES) em sua forma difusa possui pior prognóstico se comparada à forma CREST. Seu tratamento é motivo de controvérsia, principalmente por desconhecimento fisiopatogênico. Estudos retrospectivos mostram que a D-Penicilamina aumenta a sobrevida dos pacientes em cinco anos, quando comparados com indivíduos sem tratamento(1-2), com melhora clínica maior sendo observada nos acometimentos cutâneo e pulmonar. Inúmeros outros fármacos foram propostos, sem no entanto trazer um diferencial importante nos resultados de fatores clínicos como medidas do acometimento sistêmico. A exceção talvez possa ser creditada à utilização de pulsoterapia mensal com altas doses de ciclofosfamida via parenteral(3). Mais recentemente alguns resultados se mostram promissores com o uso de imunossupressão seguida ou não de suporte com transplante autólogo de células hematopoéticas pluripotenciais (antes chamado "transplante de medula óssea"), como tratamento para esclerodermia e outras doenças auto-imunes de adultos e crianças com grave acometimento sistêmico(4-10).

O objetivo deste trabalho é o de relatar o caso de um paciente com esclerodermia severa que recebeu imunossupressão com ciclofosfamida e fludarabina, seguido de suporte com CTH e manutenção com ciclofosfamida e fludarabina. Trata-se, na medida do nosso conhecimento, do primeiro caso a receber tal tratamento no Brasil.

RELATO DO CASO

Paciente masculino, branco, 46 anos, professor, procedente de Santa Catarina, previamente hígido, desde 1993 com fenômeno de Raynaud, artralgias em mãos e joelhos, fadiga e espessamento cutâneo de mãos e pés que em poucos meses evoluiu para face, tórax e abdome. O exame físico da época mostrava ausculta cardíaca e pulmonar sem anormalidades, diminuição da elasticidade e pregueamento da pele dos membros superiores, face e tronco com áreas de discromia cutânea (hipo e hiperpigmentação) e sinais de atrofia cutânea nos dedos das mãos já com certo grau de aderência a planos profundos. O paciente preenchia os critérios de classificação do Colégio Americano de Reumatologia para esclerose sistêmica(11).

As chapas contrastadas de esôfago mostravam hipoperistalse esofágica, com FAN reagente em título 1:160 de padrão pontilhado. Os demais exames - hemograma, creatinina, creatinafosfoquinase, comum de urina, radiografias de tórax e de mãos - não mostravam anormalidades. Iniciou-se uso de prednisona 10mg/dia, D-Penicilamina 300mg/dia (atingindo a dose de 900mg/dia em 4 meses), nifedipina 20mg/dia e ciclofosfamida 1g endovenosa por mês durante 6 meses.

Houve melhora subjetiva do fenômeno de Raynaud, porém persistiu o quadro de espessamento cutâneo, o qual se tornou generalizado. Em 1995 o paciente apresentou epigastralgia, realizando novos exames laboratoriais e de imagem. A tomografia computadorizada de tórax evidenciou formações bolhosas em ápices e infiltrado intersticial na base direita. A endoscopia digestiva alta mostrou esofagite e pangastrite. Demais exames como hemograma, creatinina, transaminases, comum de urina e radiografias do tórax foram novamente normais.

Foi suspensa a D-Penicilamina em conseqüência do quadro digestivo, havendo piora marcada do quadro cutâneo após alguns poucos meses. Foi reiniciada a ciclofosfamida na dose de 600mg endovenosa mensal, porém tendo que ser suspensa pois o paciente apresentou intensa astenia. Neste período houve melhora das úlceras digitais. Em 1998 o paciente teve quadro de mialgias, fraqueza muscular, com alterações laboratoriais sugestivas de miopatia (CPK = 1717 mg/dl, normal até 170; e TGO = 120 mg/dl, normal até 20), com piora dos sintomas digestivos: dor epigástrica, alguns episódios de vômitos, distensão abdominal, alternância de diarréia (três episódios ao dia) com constipação e marcada perda de peso. Neste período aumentou-se a dose de prednisona para 40mg/dia. Houve boa resposta da miopatia com melhora da fraqueza muscular e normalização da CPK. Reduziu-se a prednisona de forma gradativa até sua suspensão e iniciou-se com bloqueadores da bomba de prótons, drogas pró-cinéticas e metronidazol 400mg/dia. Houve piora progressiva do quadro intestinal, com intensificação da diarréia, dor abdominal difusa e emagrecimento de 8 kg em 6 meses, sem melhora com medicação proposta.

O paciente foi então internado no Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, com o objetivo de realizar imunossupressão com ciclofosfamida e fludarabina e suporte de CTH para controle de sua doença. Neste período apresentava-se emagrecido, desidratado, com espessamento cutâneo generalizado e com vasculite de polpas digitais (Figura 1). A ausculta pulmonar apresentava ruídos bibasais compatíveis com fibrose pulmonar, o abdome estava distendido, porém sem defesa à palpação. O trânsito intestinal visto em chapas radiográficas mostrava dilatação de alças e alterações compatíveis com má absorção intestinal. Outros exames realizados nesta fase podem ser vistos na Tabela 1. Após estabilização clínica e consentimento informado do paciente foi iniciada antibioticoterapia profilática com fluconazol, sulfametoxazol com trimetoprim e aciclovir, e realizada a mobilização de células progenitoras CD34+ com o uso IV de fator estimulador de colônia de granulócitos 300mcg/dia durante 6 dias. As células foram coletadas durante 3 dias e a contagem celular foi realizada por citometria de fluxo até que pelo menos 2x106 células CD34+/kg fossem obtidas. Não foi efetuada depleção de células T após coleta para não elevar o custo do procedimento e por dúvidas na literatura a respeito deste tipo de conduta(12,13). Vários transplantes já foram efetuados com sucesso sem depleção de linfócitos T(14,15). A embalagem com células CD34+ foi conservada a -70ºC até reinfusão. A seguir o paciente recebeu infusão IV de ciclofosfamida 500mg/m2 e fludarabina 35mg/m2 durante 3 dias consecutivos, seguidos da reinfusão de células progenitoras. Após, seguiu-se administração de 300mcg/dia de fator estimulador de colônia de granulócitos durante 11 dias. Nova imunossupressão com dose total de ciclofosfamida 500mg/m2 e de fludarabina 35mg/m2 de manutenção foi realizada 5 meses e 8 meses após o primeiro ciclo.


O paciente teve alta hospitalar 16 dias após o início da imunossupressão sem intercorrências graves. Apresentou durante a reinfusão de células CD34+ uma reação tipo distúrbio neurovegetativo, com calafrios, sensação de pânico e tremores, que cessaram espontaneamente em cerca de 30 minutos. O nadir de leucócitos no quarto dia após a imunossupressão foi de 5.700/mm3 e o de linfócitos de 57/mm3, não se atingindo, portanto, ablação total da medula óssea, o que ocorreu conforme programado. Medidas evolutivas de atividade da doença podem ser vistas na Tabela 1.

A tomografia computadorizada de tórax manteve o mesmo padrão de fibrose pulmonar bibasal. A impressão da abertura palmar não mostrou modificações. Os episódios de diarréia diminuíram para um episódio ao dia e as crises de dor e distensão abdominal tornaram-se bem mais brandas até cessar. O paciente seguiu com dieta pobre em fibras e rica em carnes brancas. Após a alta hospitalar seguiu tratamento com pentoxifilina 400mg/dia, usada pelas vasculites de polpas digitais, vibramicina 200mg/dia (para a síndrome de má-absorção intestinal), omeprazol 20mg/dia (como profilático de lesões gastroduodenais), prednisona 15mg/dia e fluoxetina 20mg/dia (para depressão, após avaliação psiquiátrica).

Cerca de 3 meses após o transplante autólogo o paciente apresentou alguns episódios de crise hipertensiva sem perda de função renal onde foi iniciado o uso de captopril 50mg/dia. Neste período voltaram as crises de dor e distensão abdominal, porém de forma mais branda e fugazes, acompanhadas por um episódio de fezes amolecidas ao dia. O paciente realizou nova sessão de quimioterapia com 35mg/m2 de fludarabina e 500mg/m2 de ciclofosfamida 5 e 8 meses após o transplante. Três meses após o último ciclo de quimioterapia apresentou infecção por herpes zoster na região torácica, foi tratado com antiviral em doses usuais evoluindo bem, porém apresentou neuropatia pósherpética com boa resposta à amitriptilina.

Um mês após a infecção herpética apresentou quadro de pseudo-obstrução intestinal, provavelmente relacionada com sua doença de base, associado aos efeitos anticolinérgicos da amitriptilina. Foi tratado clinicamente e colocado em nutrição parenteral total, havendo melhora do quadro intestinal, evoluindo, porém, alguns dias após com quadro de infecção respiratória e plaquetopenia severa (contagem de 17.000 plaquetas/cm3). Foi iniciada antibioticoterapia, aumentada a dose de prednisona para 2mg/kg/dia e efetuada infusão de imunoglobulinas IV 600 mg/kg/dia, sem que se obtivesse uma boa resposta da plaquetopenia. Esta apenas normalizou após melhora da infecção respiratória e a retirada do antibiótico. Apresentou então novo quadro de distensão abdominal com vômitos, tendo aspirado conteúdo gástrico e fazendo broncopneumonia aspirativa. Evoluiu para insuficiência respiratória intratável e óbito.

DISCUSSÃO

Os resultados obtidos com o tratamento imunossupressor seguido de infusão de células CD34+ autólogas mostraram boa recuperação do estado geral do paciente, com importante melhora das crises abdominais nos primeiros 5 meses de acompanhamento. Houve normalização do teste da D-Xylose, mostrando melhora marcada do padrão de absorção intestinal. A hemossedimentação caiu à metade, porém sem normalização (Tabela 1). Também o hematócrito tendeu à normalização após 5 meses, com nova queda aos 8 meses de evolução. Após melhora inicial da mobilidade das mãos e da pele como um todo, principalmente em termos subjetivos, não houve progressão favorável do quadro cutâneo com relação aos achados pré-transplante. Objetivamente não pudemos demonstrar melhora do escore cutâneo pela técnica de Kahaleh et al.(16), ou da esclerodactilia pelo "carimbo" das mãos espalmadas. Piora progressiva dos sintomas gastrointestinais, marcantes neste paciente, ocorreu precocemente após o transplante. De fato, não seria de se esperar reversão de lesões esclerodérmicas estabelecidas na parede intestinal. O óbito após 12 meses do procedimento não se deveu a complicações atribuíveis diretamente à imunossupressão e reposição de células tronco CD34+, mas sim à pneumonia aspirativa e insuficiência respiratória complicada pela fibrose pulmonar.

O propósito do transplante autólogo de células CD34+ é permitir intensa imunossupressão com quase total imunoablação da medula óssea. Retiram-se assim as células T responsáveis potencialmente pela doença do indivíduo e se consegue uma reconstituição precoce dos elementos celulares do sangue, com menor risco ao paciente. As células pluripotenciais reinfundidas colonizarão a medula óssea, permitindo hematopoese precoce e um sistema imune novo.

Há na literatura vários estudos de pacientes com esclerodermia e outras doenças auto-imunes que receberam tratamento com imunossupressão e transplante autólogo de células progenitoras da medula óssea, em geral num tom positivo(17,18). Tyndall et al.(19) realizaram, em 1997, imunoablação da medula óssea com ciclofosfamida seguida do transplante autólogo de medula óssea em uma paciente de 37 anos com esclerodermia grave, observando melhora no estado geral e redução do escore cutâneo em 6 meses de observação, achado semelhante ao de nosso paciente. Martini et al.(20) observaram melhora sustentada após 2 anos de transplante autólogo e uso de anticorpo monoclonal CAMPATH-1G em jovem de 14 anos com esclerodermia. Em outro estudo, Breban et al.(21) utilizaram 4g/m2 de ciclofosfamida seguidos da infusão de fator estimulador de colônia de granulócitos em 4 pacientes com artrite reumatóide severa e observaram diminuição da atividade da doença. Burt et al.(22) efetuaram tratamento semelhante em 4 pacientes com artrite reumatóide refratária, mostrando boa tolerância e eficácia clínica em 2 casos, com diminuição do número de articulações inflamadas após 6 meses. Resultados aparentemente brilhantes também têm sido publicados em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico e grave acometimento sistêmico(23-29).

Dúvidas vêm sendo levantadas na literatura, se os efeitos benéficos do procedimento de transplante autólogo em doenças auto-imunes não ocorreria em razão das altas doses de imunossupressão utilizadas no regime de condicionamento. Davis et al.(30) utilizaram dois grupos de pacientes com artrite reumatóide severa, que receberam 20mg/m2 (n=12) e 30mg/m2 (n=14) de fludarabina por 3 dias consecutivos mensalmente durante seis meses. Ambos os grupos apresentaram melhora clínica após 6 meses de tratamento, porém vários episódios infecciosos ocorreram. Viallard et al.(31), em 1999, descreveram paciente com lúpus eritematoso sistêmico apresentando poliartrite irresponsiva a corticóides que melhorou substancialmente com o uso de 25mg/m2 de fludarabina durante 5 dias num total de 6 ciclos da medicação. Profunda e prolongada supressão de sub-populações CD4+/ CD8+ são atingidas com fludarabina, um efeito de deleção química de linfócitos T patogênicos.

O uso de imunoablação seguido de transplante autólogo de medula óssea tem se mostrado um meio eficaz de tratar doenças auto-imunes, porém devemos salientar que este procedimento apresenta elevada taxa de mortalidade nos melhores centros, exigindo longos períodos de internação hospitalar e altos custos(17,32,33). Seleção correta de pacientes (com critérios para identificar precocemente fatores adversos e para estabelecer as potenciais indicações), métodos de mobilização de células CD-34+, manipulação do enxerto (com remoção de células patogênicas), natureza e toxicidade do condicionamento (ajuste para cada distinta doença autoimune e complicações secundárias a longo prazo), questionamentos bioéticos em crianças e adultos, e recorrência precoce ou persistência da doença básica após o transplante são tópicos ainda não resolvidos e motivo de intenso debate na literatura mais atual(7,34-37). No entanto, casos esporádicos e algumas séries tentam demonstrar que remissão total pode ser conseguida em indivíduos com doença resistente à terapêutica e severa a ponto de colocar em risco a vida dos pacientes. Assim, os potenciais riscos de uma terapia experimental seriam aceitáveis, com potenciais resultados muito favoráveis, mesmo em se tratando de crianças(38).

Uma alternativa a ser explorada seria utilizar quimioterapia não-mieloablativa, mas em doses maiores que as normalmente utilizadas por reumatologistas e sem suporte de CTH. Ciclofosfamida e fludarabina, da maneira como utilizamos no presente caso, são fármacos com efeito sinérgico e podem causar remissões sustentadas de pacientes com doenças auto-imunes quando utilizados isolada ou conjuntamente(30,39,40).

São necessários mais estudos utilizando esse grupo de drogas em esclerodermia para melhor avaliar sua eficácia, em estudos controlados com e sem suporte de células tronco hematopoéticas.

Recebido em 21/2/2002.

Aprovado, após revisão, em 27/11/2003.

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  • Endereço para correspondência:
    Carlos Alberto von Mühlen
    R. Cel.Camisão 132, ap. 201
    Porto Alegre, RS, CEP 90540-050
    E-mail:
  • *
    Serviços de reumatologia, oncologia e hematologia do Hospital São Lucas da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS. Trabalho realizado com o apoio do Fundo de Auxílio à Pesquisa e Ensino em Reumatologia da Sociedade Brasileira de Reumatologia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2004

    Histórico

    • Aceito
      27 Nov 2003
    • Recebido
      21 Fev 2002
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