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Manifestação otológica localizada em paciente com granulomatose de Wegener

Localized otologic manifestation in a patient with Wegener's granulomatosis

Resumos

A granulomatose de Wegener (GW) é uma vasculite granulomatosa multissistêmica rara, idiopática, que acomete vasos de pequeno e médio calibres, e que classicamente envolvem os tratos respiratórios superior, inferior e rins. Na forma limitada da doença, diversos sítios anatômicos podem ser afetados isoladamente. Foi descrito o caso de uma paciente jovem, que iniciou o acometimento da GW por dispnéia, estridor laríngeo e hipacusia. A investigação evidenciou o acometimento localizado na glote, e envolvimento da membrana timpânica comprovado por biópsia. A paciente obteve resposta com o tratamento instituído, mas permaneceu com seqüelas otológicas. Revisa-se neste artigo algumas das manifestações focais da GW, salientando especialmente as manifestações otológicas.

granulomatose de Wegener; surdez; membrana timpânica


Wegener's granulomatosis (WG) is a rare, idiopathic granulomatous vasculitis, affecting small and medium-sized vessels, classically involving upper and lower respiratory tracts and kidneys. In the limited form of the disease, several other sites can be affected. We describe the case of a young woman who presented her disease with dyspnea, laryngeal stridor and hearing loss. Investigation revealed localized glottis involvement and a tympanum biopsy confirmed granulomatous vasculitis. The patient had a partial response with the treatment, with residual deafness. We performed a review concerning the focal manifestations of WG, focusing in the ear involvement.

Wegener's granulomatosis; deafness; tympanum


RELATO DE CASO CASE REPORT

Manifestação otológica localizada em paciente com granulomatose de Wegener

Localized otologic manifestation in a patient with Wegener's granulomatosis

Márcia Regina Rosa ScalconI; Ivânio Alves PereiraII; Acir Rachid FilhoIII; Eduardo dos Santos PaivaIII

IEspecializanda em Reumatologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

IIProfessor-assistente da disciplina de Reumatologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

IIIProfessor-assistente da disciplina de Reumatologia da UFPR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Márcia Regina Rosa Scalcon Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 649/51 80510-040, Curitiba, PR E-mail: marciascalcon@terra.com.br

RESUMO

A granulomatose de Wegener (GW) é uma vasculite granulomatosa multissistêmica rara, idiopática, que acomete vasos de pequeno e médio calibres, e que classicamente envolvem os tratos respiratórios superior, inferior e rins. Na forma limitada da doença, diversos sítios anatômicos podem ser afetados isoladamente. Foi descrito o caso de uma paciente jovem, que iniciou o acometimento da GW por dispnéia, estridor laríngeo e hipacusia. A investigação evidenciou o acometimento localizado na glote, e envolvimento da membrana timpânica comprovado por biópsia. A paciente obteve resposta com o tratamento instituído, mas permaneceu com seqüelas otológicas. Revisa-se neste artigo algumas das manifestações focais da GW, salientando especialmente as manifestações otológicas.

Palavras-chave: granulomatose de Wegener, surdez, membrana timpânica.

ABSTRACT

Wegener's granulomatosis (WG) is a rare, idiopathic granulomatous vasculitis, affecting small and medium-sized vessels, classically involving upper and lower respiratory tracts and kidneys. In the limited form of the disease, several other sites can be affected. We describe the case of a young woman who presented her disease with dyspnea, laryngeal stridor and hearing loss. Investigation revealed localized glottis involvement and a tympanum biopsy confirmed granulomatous vasculitis. The patient had a partial response with the treatment, with residual deafness. We performed a review concerning the focal manifestations of WG, focusing in the ear involvement.

Keywords: Wegener's granulomatosis, deafness, tympanum.

INTRODUÇÃO

A granulomatose de Wegener (GW) é uma doença multissistêmica rara, de etiologia desconhecida, descrita inicialmente por Klinger, em 1931, e detalhada por Wegener, em 1936 e 1939(1,2).

Histologicamente, a doença é caracterizada pelo processo granulomatoso, necrotizante e ulcerado do tratos respiratórios superior e inferior e de outros órgãos internos; além de vasculite necrotizante e glomerulonefrite focal. Essas três alterações patológicas são determinadas como tríade clássica(3). Manifestações diversas da tríade clássica podem ocorrer, dificultando o diagnóstico. Os exames complementares, como VHS, c-ANCA e histologia, além de alto índice de suspeição, são imprescindíveis no diagnóstico dessa entidade clínica.

A doença pode ser classificada na sua apresentação inicial como forma limitada ou generalizada, sendo que aquilo que define a doença limitada é a ausência do comprometimento renal(4). As manifestações otológicas, como sintomas iniciais da GW, ocorrem em 20% a 25% dos pacientes e o diagnóstico pode ser difícil diante desse acometimento locorregional(5).

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, branca, 21 anos, previamente hígida, iniciou com dispnéia aos médios esforços, estridor laríngeo e hipoacusia à direita seis anos antes da avaliação atual, sendo tratada com antibióticos sem sucesso. Na avaliação laboratorial apresentava hemograma, parcial de urina, função renal e hepática normais. A velocidade de hemossedimentação (VHS) era de 6 mm; proteína C reativa inferior a 6,0 (referência normal < 6,0); sorologias virais, fator reumatóide, fator antinuclear e anticorpos anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) negativos. Foi submetida à ressonância nuclear magnética (RNM) de crânio e região cervical, que demonstrou otite crônica à direita e estenose subglótica, respectivamente. A avaliação otorrinolaringológica com obtenção de material de biópsia de membrana timpânica evidenciou inflamação granulomatosa com vasculite de pequenos vasos, sugerindo GW.

Na época foi optado pelo tratamento com prednisona oral 1 mg/kg/dia com redução gradual associada à ciclofosfamida oral durante dois anos. A paciente apresentou melhora sintomática, porém com seqüela auditiva leve à direita. Passados três anos sem acompanhamento mé mantendo-se assintomática, a paciente apresentou sintomas constitucionais, seguidos novamente de dispnéia aos médios esforços, estridor, rouquidão e piora da acuidade auditiva à direita, sendo então encaminhada para o Serviço de Reumatologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná para reavaliação do quadro.

Durante a internação foi submetida à nova RNM de crânio que evidenciou velamento da mastóide direita por processo inflamatório e/ou infeccioso, a tomografia de tórax foi normal, o sedimento urinário inocente e a endoscopia peroral com espessamento subglótico significativo. Novamente funções renal e hepática, sorologias e c-ANCA foram negativos. As provas de atividade inflamatória foram, respectivamente, VHS 16 mm e proteína C reativa de 0,65.

Com base no diagnóstico prévio de GW, mesmo com VHS normal e c-ANCA negativo, foi considerada a probabilidade de recidiva da doença e tratada, como no quadro inicial, com prednisona e ciclofosfamida oral, obtendo-se, novamente, boa resposta terapêutica, porém mantendo hipoacusia residual.

DISCUSSÃO

Os distúrbios auditivos podem ocorrer em qualquer fase da evolução da GW, podendo acometer a orelha externa, média ou interna(6). A orelha média é o local mais freqüentemente acometido(6) e o déficit otológico dominante nesses pacientes é a perda auditiva condutiva, decorrente do envolvimento granulomatoso nasofaríngeo, disfunção secundária da tuba auditiva e otite média serosa(7,8). Os sinais clínicos incluem a presença de tímpano côncavo brilhante, com ou sem vasos superficiais, e aparência amarelada(7). Em casos raros, a lesão granulomatosa pode ser vista por meio da membrana timpânica(8). A paralisia facial decorrente do envolvimento do sétimo par craniano ocorre em uma pequena porcentagem de pacientes(8). Alguns podem também sofrer de otite média purulenta aguda ou crônica, visto que esta, muitas vezes, pode levar à suspeita de GW por causa do seu caráter refratário ou recorrente(6).

A perda auditiva neurossensorial ocorre em virtude do envolvimento da orelha interna, porém é menos comum. A sintomatologia inclui hipoacusia uni ou bilateral, geralmente assimétrica, acompanhada ou não de outros sintomas, como vertigem, tinnitus e plenitude auricular(6). Padrões mistos de perda auditiva condutiva e neurossensorial são vistos freqüentemente(7). A associação entre hipoacusia e níveis séricos de ANCA não foi comprovada.

Revisões otorrinolaringológicas citam o uso do c-ANCA para o diagnóstico precoce na forma limitada da GW(2,9), porém mais de 40% dos pacientes com as formas limitadas da doença podem ser ANCA negativos(10), enfatizando que a pedra angular do diagnóstico permanece sendo a combinação das características clínicas e os achados histológicos no órgão envolvido(10).

O prognóstico da audição pode ser reservado, quando o tratamento apropriado não é instituído em estágios precoces da doença(11). Portanto, a GW deve ser incluída no diagnóstico diferencial dos casos atípicos de estados inflamatórios do ouvido(11).

Um regime de três meses de prednisona (1 mg/kg/dia)(10), que pode ser progressivamente reduzida até a retirada, usualmente controla a doença(7). Se melhora significativa não ocorrer até o final da segunda semana ou se ocorrer recaída durante a diminuição do corticoesteróide, a ciclofosfamida oral (2 mg/kg/dia)(10) deve ser adicionada ao tratamento(7). Se a função auditiva não for restaurada até o final da décima segunda semana, o dano auditivo é considerado irreversível e o tratamento deve ser descontinuado(7). Os pacientes que apresentam apenas efusão da orelha média, como a razão para a perda auditiva de condução, podem se beneficiar da remoção do fluido e da inserção de tubo de ventilação com melhora sustentada(12).

A remissão ocorre em 75% dos pacientes com a terapia medicamentosa descrita, em três a seis meses(10), porém mais da metade dos pacientes que entra em remissão desenvolverá recaídas subseqüentes(10). Deve-se salientar que esse regime está associado a toxicidades graves e a escolha terapêutica atual depende da gravidade da doença, sendo razoável o tratamento com a ciclofosfamida na indução da remissão a curto prazo, seguido do uso de drogas menos tóxicas, como o metotrexato ou a azatioprina na manutenção(10). Alternativamente, o metotrexate em combinação com corticoesteróides pode ser usado na indução da remissão da GW limitada sem envolvimento orgânico grave, poupando os pacientes dos efeitos colaterais da ciclofosfamida(13,14). Outra estratégia menos tóxica é o uso da ciclofosfamida EV em pulsos mensais, porém este esquema está associado a maiores taxas de recaídas(10).

A terapia alternativa com metotrexate não elimina e, possivelmente, não reduz o risco de pneumonia por Pneumocystis carinii (Pneumocystis jiroveci)(15), portanto, independentemente da terapia utilizada na indução de remissão (ciclofosfamida ou metotrexate), os pacientes com GW devem receber profilaxia contra pneumonia por Pneumocystis carinii com sulfametoxazol-trimetoprim ou dapsona(13). A pentamidina inalada mensalmente é uma alternativa para pacientes que apresentam efeitos adversos com o uso de sulfametoxazol-trimetoprim, porém o custo é elevado(15).

A estenose subglótica pode responder de maneira incompleta à terapia imunossupressora padrão, necessitando de dilatação cirúrgica da via aérea associada à injeção intralesional de corticoesteróides(16).

CONCLUSÃO

A paciente apresentou forma limitada da GW, com acometimento da orelha média com perda auditiva condutiva e estenose subglótica. O diagnóstico de GW foi aventado depois de um período de antibioticoterapia sem sucesso. A avaliação otorrinolaringológica foi de extrema importância para o diagnóstico correto da entidade clínica. De modo não usual, a paciente não apresentava provas de atividade inflamatória elevadas e o c-ANCA era negativo, tanto no quadro inicial quanto na recidiva. O diagnóstico foi possível com a análise do espécime histológico da membrana timpânica, em 2001. Provavelmente por causa do não-seguimento e da conseqüente falta de uma droga de manutenção, a paciente apresentou recaída após três anos assintomática. A presença de sintomas semelhantes ao quadro inicial, além do estridor e da estenose subglótica, bem como alterações em exames de imagem (RNM), ajudaram a caracterizar o segundo episódio de diminuição da acuidade auditiva como recidiva da doença. Reintroduzido o esquema terapêutico inicial, a paciente obteve melhora sintomática, porém mantendo certo grau de hipoacusia.

Recebido em 10/4/2008.

Aprovado, após revisão, em 17/7/2008.

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

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  • Endereço para correspondência:
    Márcia Regina Rosa Scalcon
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Nov 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Aceito
      17 Jul 2008
    • Recebido
      10 Abr 2008
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