Acessibilidade / Reportar erro

É hora de tratar a esclerose sistêmica

EDITORIAL

É hora de tratar a esclerose sistêmica

Dr. Percival D. Sampaio-Barros

Assistente-Doutor da Disciplina de Reumatologia, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Coordenador nacional do GEPRO (Grupo de Esclerose Sistêmica do Projeto Pronuclear) da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Presidente do Grupo de Estudos de Esclerose Sistêmica da Liga Panamericana de Associações de Reumatologia (PANLAR)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr. Percival D. Sampaio-Barros Disciplina de Reumatologia Departamento de Clínica Médica Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Barão Geraldo - Campinas - SP CEP: 13081-970 E-mail: psbarros@fcm.unicamp.br

A esclerose sistêmica (ES) continua sendo um dos mais difíceis desafios terapêuticos dentro do campo das doenças reumáticas autoimunes, mas na última década houve muitos progressos ligados a um diagnóstico e tratamento mais precoces e a uma melhor caracterização do perfil epidemiológico e clínico evolutivo da doença. Se conseguirmos estabelecer um diagnóstico mais precoce dos diferentes acometimentos cutâneos e viscerais, estratégias órgão-específicas mais eficientes poderão ser propostas. Dentro desta filosofia, o ano de 2009 começou com a primeira publicação de recomendações para o tratamento da ES, por especialistas integrantes do EULAR Scleroderma Trials and Research Group (EUSTAR).1 Outro sinal desse crescente interesse é que a atual edição da Revista Brasileira de Reumatologia (RBR) conta com dois trabalhos nacionais sobre terapêutica na ES.2,3

Dentro do tratamento da esclerose sistêmica, duas situações exercem influência marcante: a fibrose e o endotélio vascular alterado. Várias drogas têm sido utilizadas por sua atuação antifibrótica, notadamente no espessamento difuso da pele e na pneumopatia intersticial. O uso da ciclofosfamida4 e dos imunossupressores em geral5 na ES foi descrito e analisado recentemente. No entanto, os únicos estudos randomizados, duplo-cegos, placebo-controle com a ciclofosfamida foram publicados apenas em 2006,6,7 com resultados favoráveis, mas sem grande expressão estatística. O Scleroderma Lung Study (SLS), estudo multicêntrico realizado nos Estados Unidos sob o patrocínio do National Institute of Health (NIH), avaliou 158 pacientes em uso de ciclofosfamida (ou placebo) por via oral, pelo período de um ano, e os pacientes foram acompanhados por um total de dois anos; houve melhora estatisticamente significativa nos desfechos primários e secundários.6 Nesses anos subsequentes, o SLS Research Group tem publicado diversos outros trabalhos, analisando com mais profundidade diferentes aspectos do estudo, como a função pulmonar e o escore cutâneo,8 as formas clínicas da ES,9 a qualidade de vida,10 o lavado broncoalveolar11 e os parâmetros de avaliação da tomografia computadorizada de alta resolução (TCAR) de tórax.12 O outro estudo controle foi o FAST, que avaliou 45 pacientes com ES e alveolite ativa na Inglaterra tratados com ciclofosfamida endovenosa (ou placebo) por 12 meses, tendo posteriormente utilizado a azatioprina por outros 12 meses; os desfechos primários e secundários não tiveram resultados estatisticamente significativos, sendo observada apenas tendência estatística de melhora da capacidade vital forçada (CVF) nos pacientes que utilizaram a ciclofosfamida.7 Os resultados desses dois estudos controlados permitiram que a ciclofosfamida pudesse ser considerada e indicada no tratamento da pneumopatia intersticial da ES pelas recomendações do EUSTAR,1 que ainda exigem mais trabalhos para considerar a ciclofosfamida como tratamento dos quadros cutâneos agressivos, predominantes na ES difusa precoce.

Na presente edição da RBR, Macedo et al.2 analisaram a evolução clínica de nove pacientes com ES difusa com escore cutâneo total (ECT) > 30 e sem acometimento visceral grave que fizeram uso de ciclofosfamida endovenosa por um período de 18 meses, acompanhados na Universidade de São Paulo (USP). Observaram redução significativa do ECT após 12 meses (ECT médio ± desvio-padrão (DP): 37,77 ± 4,08 vs. 29,22 ± 8,13; P = 0,009), mantida após 18 meses de tratamento (ECT médio ± DP: 26,42 ± 10,08; P = 0,01), sem efeitos colaterais graves. Há 10 anos, também na RBR, publicamos uma experiência da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com a ciclofosfamida endovenosa no tratamento de 45 pacientes com ES, sendo 13 com ES difusa rapidamente progressiva, também observando melhora estatística na evolução do ECT.13 Novos estudos, com maior número de pacientes e seguimento por maior prazo, são necessários para confirmar essa capacidade de melhora do espessamento cutâneo com o uso da ciclofosfamida na ES.

Dentre as medicações vasoativas, existem drogas com excelente perfil de segurança e eficácia no tratamento da crise renal esclerodérmica14 e da hipertensão pulmonar.15 À medida que os pacientes com ES têm um aumento na sua sobrevida média, manifestações como a ocorrência de úlceras isquêmicas digitais recorrentes se tornam mais frequentes.16,17 Os tradicionais bloqueadores de canais do cálcio (como a nifedipina e o diltiazem) são mais eficientes na prevenção de novos ataques nos pacientes com fenômeno de Raynaud primário.18 As úlceras isquêmicas mais complicadas podem ser tratadas com o uso do iloprost,19,20 do treprostinil,21 da bosentana22,23 e do sildenafil.24,25 Porém, além do tratamento das crises, essas ulcerações extremamente dolorosas e incapacitantes devem também ter um tratamento de prevenção. As recomendações do grupo EUSTAR para o tratamento da ES consideram que a nifedipina, os prostanoides (notadamente o iloprost endovenoso) e a bosentana podem ser utilizados para prevenir a recorrência de úlceras isquêmicas na ES.1

Dois estudos prospectivos multicêntricos, randomizados, duplo-cegos, placebo-controle (RAPIDS-1 e RAPIDS-2), analisando pacientes em 17 centros da Europa e América do Norte, evidenciaram que a bosentana pode prevenir a ocorrência de novas úlceras digitais, embora não acelerem a cicatrização de úlceras presentes no momento da randomização, em pacientes esclerodérmicos com úlceras recorrentes.26,27 Tendo como base os resultados desses dois estudos, Mariz et al.,3 em artigo neste número da RBR, utilizaram a bosentana por via oral no tratamento de úlceras isquêmicas ativas refratárias em três pacientes atendidos na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), contribuindo para a cicatrização e prevenção da ocorrência de novas úlceras num curto espaço de até 12 semanas. As diferentes respostas quanto à cicatrização parecem residir na heterogeneidade dos critérios de atividade e cronicidade das úlceras isquêmicas.28

Resumindo, para os reumatologistas interessados no diagnóstico e tratamento precoces da ES, a análise detalhada dos diferentes parâmetros epidemiológicos e clínicos, que regem as diferentes respostas terapêuticas na doença, é fundamental na escolha da medicação ideal para cada fase da evolução da ES, otimizando assim efeitos colaterais, expectativas dos pacientes e custos do tratamento.

  • 1
    Kowal-Bielecka O, Landewé R, Avouac J, Chwiesco S, Miniatti I, Czirjak L et al EULAR recommendations for the treatment of systemic sclerosis: a report from the EULAR Scleroderma Trials and Research Group (EUSTAR). Ann Rheum Dis 2009;69:620-8.
  • 2
    Macedo PA, Borges CTL, Souza RBC. Ciclofosfamida: eficaz no tratamento do quadro cutâneo grave na esclerose sistêmica. Rev Bras Reumatol 2009;49(3):261-71.
  • 3
    Mariz HA, Corrêa MJU, Kayser C. Bosentana no tratamento de úlceras de extremidades refratárias na esclerose sistêmica. Rev Bras Reumatol 2009;49(3):250-60.
  • 4
    Berezné A, Valeyre D, Ranque B, Guillevin L, Mouthon L. Interstitial lung disease associated with systemic sclerosis: what is the evidence for efficacy of cyclophosphamide? Ann N Y Acad Sci 2007;1110(9):271-84.
  • 5
    Hunzelmann N, Moinzadeh P, Genth E, Krieg T, Lehmacher W, Melchers I et al High frequency of corticosteroids and immunosuppressive therapy in patients with systemic sclerosis despite limited evidence for efficacy. Arthritis Res Ther 2009;11:R30.
  • 6
    Tashkin DP, Elashoff R, Clements PJ, Goldin J, Roth MD, Furst DE et al Cyclophosphamide versus placebo in scleroderma lung disease. N Engl J Med 2006;354(25):2655-66.
  • 7
    Hoyles RK, Elis RW, Wellsbury J, Lee B, Newlands P, Goh NS et al A multicenter, prospective, randomized, placebo controlled trial of corticosteroids and intravenous cyclophosphamide followed by oral azathioprine for the treatment of pulmonary fibrosis in scleroderma. Arthritis Rheum 2006;54(12):3962-70.
  • 8
    Tashkin DP, Elashoff R, Clements PJ, Roth MD, Furst DE, Silver RM et al Effects of 1-year treatment with cyclophosphamide on outcomes at 2 years in scleroderma lung disease. Am J Respir Crit Care Med 2007;176(10):1026-34.
  • 9
    Clements PJ, Roth MD, Elashoff R, Tashkin DP, Goldin J, Silver RM et al Scleroderma Lung Study (SLS): differences in the presentation and course of patients with limited versus diffuse systemic sclerosis. Ann Rheum Dis 2007;66(12):1641-7.
  • 10
    Khanna D, Yan X, Tashkin DP, Furst DE, Elashoff R, Roth MD et al Impact of oral cyclophosphamide on health-related quality of life in patients with active scleroderma lung disease. Arthritis Rheum 2007;56(5):1676-84.
  • 11
    Strange C, Bolster MB, Roth MD, Silver RM, Theodore A, Goldin J et al Bronchoalveolar lavage and response to cyclophosphamide in scleroderma interstitial lung disease. Am J Respir Crit Care Med 2008;177(1):91-8.
  • 12
    Goldin JG, Lynch DA, Strollo DC, Suh RD, Schraufnagel DE, Clements PJ et al High-resolution CT scan findings in patients with symptomatic scleroderma-related interstitial lung disease. Chest 2008;134(2):358-67.
  • 13
    Marques Neto JF, Sampaio-Barros PD, Samara AM. Uso da ciclofosfamida endovenosa na esclerose sistêmica. Rev. Bras. Reumatol. 1999;39(2):91-7.
  • 14
    Penn H, Howe AJ, Kingdon EJ, Bunn CC, Stratton RJ, Black CM et al Scleroderma renal crisis: patient characteristics and long-term outcomes. Q J Med 2007;100(8):485-94.
  • 15
    Bull TM. Screening and therapy of pulmonary hypertension in systemic sclerosis. Curr Opin Rheumatol 2007;15(6):598-603.
  • 16
    Hachulla E, Clerson P, Launay D, Lambert M, Morrell-Dubois, Queyrel V et al. Natural history of ischemic digital ulcers in systemic sclerosis: single-center retrospective longitudinal study. J Rheumatol 2007;34(12):2423-30.
  • 17
    Nihtyanova SI, Brough GM, Black CM, Denton CP. Clinical burden of digital vasculopathy in limited ande diffuse cutaneous systemic sclerosis. Ann Rheum Dis 2008;67(1):120-3.
  • 18
    Thompson AE, Pope JE. Calcium channel blockers for primary Raynaud´s phenomenon: a meta-analysis. Rheumatology 2005;44(2):145-50.
  • 19
    Zulian F, Corona V, Gerloni V, Falcini F, Buoncompagni A, Scarazatti M et al. Safety and efficacy of iloprost for the treatment of ischaemic digits in paediatric connective tissue diseases. Rheumatology 2004;43(2):229-33.
  • 20
    Herrgott I, Riemekasten G, Hunzelmann N, Sunderkotter C. Management of cutaneous vascular complications in systemic scleroderma: experience from the German network. Rheumatol Int 2008;28(10):1023-9.
  • 21
    Chung L, Fiorentino D. A pilot trial of treprostinil for the treatment and prevention of digital ulcers in patients with systemic sclerosis. J Am Acad Dermatol 2006;54:880-2.
  • 22
    Launay D, Diot E, Pasquier E, Mouthon L, Boullanger N, Fain O et al. Le bosentan dans le traitment des ulceres digitaux evolutifs au cours de la sclerodermie systemique (9 cas). Presse Med 2006;35(4):587-92.
  • 23
    García de la Peña-Lefebvre P, Rodríguez RS, Valero Expósito M, Carmona L, Gámir Gámir ML, Beltrán Gutiérrez J et al. Long-term experience of bosentan for treating ulcers and healed ulcers in systemic sclerosis patients. Rheumatology 2008;47(4):464-6.
  • 24
    Gore J, Silver R. Oral sildenafil for the treatment of Raynaud´s phenomenon and digital ulcers secondary to systemic sclerosis. Ann Rheum Dis 2005;64(9):1387.
  • 25
    Colglazier CL, Sutej PG, O´Rourke KS. Severe refractory fingertip ulcerations in a patient with scleroderma: successful treatment with sildenafil. J Rheumatol 2005;32(12):2440-2.
  • 26
    Korn JH, Mayes M, Matucci-Cerinic M, Rainisio M, Pope J, Hachulla E et al. Digital ulcers in systemic sclerosis: Prevention by treatment with bosentan, an oral endothelin receptor antagonist. Arthritis Rheum 2004;50(12):3985-93.
  • 27
    Seilbold JR, Denton CP, Furst DE, Matucci-Cerinic M, Mayes M, Morganti A et al. Bosentan reduces the number of new digital ulcers in patients with systemic sclerosis. Arthritis Rheum 2006;52(Supl. II):552.
  • 28
    Herrick AL, Roberts C, Tracey A, Silman A, Anderson M, Goodfield M et al. Lack of agreement between rheumatologists in defining digital ulceration in systemic sclerosis. Arthritis Rheum 2009;60(3):878-82.
  • Endereço para correspondência:

    Dr. Percival D. Sampaio-Barros
    Disciplina de Reumatologia
    Departamento de Clínica Médica
    Faculdade de Ciências Médicas
    Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
    Barão Geraldo - Campinas - SP
    CEP: 13081-970
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
    Sociedade Brasileira de Reumatologia Av Brigadeiro Luiz Antonio, 2466 - Cj 93., 01402-000 São Paulo - SP, Tel./Fax: 55 11 3289 7165 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: sbre@terra.com.br