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Osteoartropatia hipertrófica idiopática: relato de caso e revisão da literatura

Resumos

A osteoartropatia hipertrófica primária é uma síndrome rara, caracterizada pela presença de baqueteamento digital de mãos e pés, aumento das extremidades e de tecidos periarticulares secundários à proliferação óssea, fisionomia facial grosseira, dor e edema articular. A forma primária representa 3 a 5% de todos os casos de osteoartropatia hipertrófica e tem como fatores etiológicos influência genética, anormalidade da atividade fibroblástica e alteração no suprimento sanguíneo periférico. Apresenta evolução crônica e insidiosa, alternando fases de exacerbação com períodos assintomáticos. As manifestações clínicas são variáveis. A denominação síndrome completa é reservada aos casos com paquidermia (espessamento cutâneo da face e couro cabeludo, periostite e cutis vertici gyrata); síndrome incompleta, quando não há envolvimento do couro cabeludo; e frustra, quando se observa paquidermia com periostite mínima ou ausente. Os autores descrevem um homem branco de 39 anos diagnosticado com a forma primária da osteoartropatia hipertrófica. A partir do relato de caso, discutem-se características clínicas, radiológicas e a abordagem terapêutica dessa patologia.

osteoartropatia hipertrófica primária; paquidermoperiostose


Primary hypertrophic osteoarthropathy is a rare syndrome, consisting of clubbed hands, fingers, and feet digits; enlarged extremities secondary to periarticular and bone proliferation; thickened facial skin; painful and swollen joints. The idiopathic form represents 3 to 5 per cent of all cases of hypertrophic osteoarthropaty. Genetic influence, abnormal fibroblasts activity, and changes of the peripherical blood flow appear to be significant on the pathogenesis. Clinical manifestations are variable: the term complete syndrome is used for the patient with pachydermia, coarsening of the face skin and scalp, periostitis, and cutis verticis gyrata); the incomplete form, when there is no sparing of the scalp; and the frusted form for pachydermia with minimal or absent periostitis. The authors describe a 39-year-old white man diagnosed with primary hypertrophic osteoarthropathy. We also report the clinical and radiological carateristics of this syndrome and terapeutical approach of pachydermoperiostosis.

hypertrophic osteoarthropathy; pachydermoperiostosis


RELATO DE CASO

Osteoartropatia hipertrófica idiopática: relato de caso e revisão da literatura

Aline Biral ZanonI; Mellysande Pontes FaccinII; Sônia Maria Alvarenga AntiIII; Felipe José Silva Melo CruzIV; Renata Ferreira RosaV

IAcadêmica do quinto ano de Medicina da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC)

IIProfessora da disciplina de Propedêutica Clínica da FMABC

IIIProfessora da disciplina de Reumatologia da FMABC

IVResidente de Clínica Médica da FMABC

VMédica reumatologista associada da disciplina de Reumatologia da FMABC

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Aline Biral Zanon Rua Piratininga, 790, 22 Bairro Barcelona, São Caetano do Sul, SP CEP: 09550-160 E-mail: alinebiralzanon@gmail.com

RESUMO

A osteoartropatia hipertrófica primária é uma síndrome rara, caracterizada pela presença de baqueteamento digital de mãos e pés, aumento das extremidades e de tecidos periarticulares secundários à proliferação óssea, fisionomia facial grosseira, dor e edema articular. A forma primária representa 3 a 5% de todos os casos de osteoartropatia hipertrófica e tem como fatores etiológicos influência genética, anormalidade da atividade fibroblástica e alteração no suprimento sanguíneo periférico. Apresenta evolução crônica e insidiosa, alternando fases de exacerbação com períodos assintomáticos. As manifestações clínicas são variáveis. A denominação síndrome completa é reservada aos casos com paquidermia (espessamento cutâneo da face e couro cabeludo, periostite e cutis vertici gyrata); síndrome incompleta, quando não há envolvimento do couro cabeludo; e frustra, quando se observa paquidermia com periostite mínima ou ausente. Os autores descrevem um homem branco de 39 anos diagnosticado com a forma primária da osteoartropatia hipertrófica. A partir do relato de caso, discutem-se características clínicas, radiológicas e a abordagem terapêutica dessa patologia.

Palavras-chave: osteoartropatia hipertrófica primária, paquidermoperiostose.

INTRODUÇÃO

A osteoartropatia hipertrófica é uma patologia caracterizada pelo baqueteamento digital das mãos e dos pés, aumento das extremidades secundário à proliferação óssea e de tecidos periarticulares, dor e edema articular, ptose palpebral bilateral, face leonina e pele espessada.1,2

Classifica-se em primária (paquidermoperiostose) ou secundária. A forma primária ou idiopática é considerada rara, correspondendo a 3-5% de todos os casos da doença.

A seguir, descrevemos a apresentação clínica e radiológica de um paciente com a forma primária da osteoartropatia hipertrófica e revisamos a literatura a respeito dela, enfocando o desafio terapêutico da dor articular refratária.

RELATO DE CASO

Paciente masculino, 31 anos, internado em 1997 com queixa de ter inchaço e dor nos joelhos, tornozelos e pequenas articulações das mãos há cinco anos, com piora ao exercício e sem rigidez matinal. Negava febre ou outros sintomas associados. Vinha fazendo uso de anti-inflamatórios não hormonais (AINH) sem melhora. Negava qualquer afecção reumatológica ou quadro semelhante na família.

Ao exame físico, apresentava ausculta cardiorrespiratória e palpação abdominal sem alterações. A avaliação osteoarticular demonstrava baqueteamento digital com unhas em vidro de relógio, mãos difusamente edemaciadas e edema de membros inferiores, além de artrite de tornozelo esquerdo (Figuras 1 e 2).



A avaliação radiológica do tórax foi considerada normal. Os raios X de mãos e punhos apresentavam aumento de partes moles e alargamento das falanges médias e distais, associado a espessamento cortical. A partir de um raio X realizado em técnica de mamografia (Figura 3), detectou-se hipertrofia dos tufos distais com áreas de acrosteólise. No raio X de tíbia e fíbula (Figura 4), observaram-se irregularidades e proliferação periostal grosseira nas epífises, metáfises e diáfises, além de redução do canal medular.



A análise laboratorial mostrou uma velocidade de hemossedimentação (VHS) de 110 mm na primeira hora, proteína C-reativa (PCR) negativa, mucoproteínas 2,9 mg% (normal entre 1,9 e 4,9 mg%) e fator reumatoide, fator antinuclear e antiDNA não reagentes.

Não se encontrou patologia cardíaca, pulmonar ou hepática. Realizaram-se exames laboratoriais e de imagem, os quais excluíram causas secundárias de osteoartropatia.

Durante o acompanhamento, apresentou quadro dispéptico grave devido ao uso crônico de AINH, com perda de peso de 11 kg em quatro meses. Endoscopia digestiva alta diagnosticou úlcera duodenal com presença de Helicobacter pylori.

Devido à refratariedade da dor musculoesquelética, propôs-se o uso de paracetamol associado a antidepressivo tricíclico (amitriptilina) como alternativa analgésica.

DISCUSSÃO

A osteoartropatia hipertrófica foi descrita pela primeira vez por Friedreich, em 1868. Trata-se de uma condição reumatológica em que o paciente apresenta baqueteamento digital das mãos e dos pés, aumento das extremidades secundário à proliferação óssea e de tecidos periarticulares, dor e edema articular, ptose palpebral bilateral, face leonina e pele espessada.1,2 Na avaliação histológica, observa-se hiperplasia do tecido conjuntivo subcutâneo.3

Classifica-se em primária (hereditária ou idiopática) ou secundária. A Tabela 1 resume as principais causas de osteoartropatia hipertrófica secundária.

A forma idiopática (também chamada de paquidermoperiostose, osteoartropatia hipertrófica primária ou ainda síndrome de Touraine-Solente-Golé) é uma doença rara, de etiologia desconhecida, e representa de 3 a 5% de todos os casos de osteoartropatia hipertrófica.2,4 A presença de baqueteamento digital, periostose radiográfica e fisionomia facial grosseira é o principal critério diagnóstico.

Embora a transmissão aceita seja autossômica dominante, de penetrância incompleta e expressão variável, estudo populacional envolvendo 68 famílias (204 pacientes acometidos) encontrou 37 famílias com mutação autossômica dominante e herança autossômica recessiva nas 31 restantes. As duas formas de transmissão diferiram quanto à gravidade do quadro e à prevalência de algumas características clínicas.5

A paquidermoperiostose ocorre predominantemente em homens (80% dos casos), os quais frequentemente mostram um fenótipo mais grave. Uma mutação ligada ao cromossomo X, associada a alterações hormonais (proliferação dependente de testosterona), pode estar envolvida na distribuição da doença por gênero.5 A incidência também é maior em negros do que na raça caucasoide.

A patogênese da síndrome de Touraine-Solente-Golé ainda não foi completamente elucidada. Uma breve análise de pacientes com a doença mostrou suprimento sanguíneo periférico anormal em relação a indivíduos não afetados; entretanto, estudos adicionais falharam em reproduzir esse achado. Biópsias de pele e medula óssea mostram uma proliferação exacerbada de fibroblastos, associada a hiperplasia difusa da epiderme, oclusão parcial do lúmen vascular e infiltração linfoistiocitária com deposição de fibras colágenas. Um estudo isolado demonstrou proliferação fibroblástica normal, mas com decréscimo na taxa de proteínas totais e da síntese de colágeno, e com aumento importante de proteoglicanos e glicosaminoglicanos sulfatados.5

Estudo anterior relatou nos portadores de paquidermoperiostose acúmulo de um modulador de crescimento no tecido conjuntivo, sugerindo que o agente responsável pela doença pode ser uma única substância circulatória (por exemplo, um hormônio), presente em níveis anormais nesses indivíduos.6 Estudos subsequentes em pacientes com osteoartropatia hipertrófica demonstraram aumento no nível plasmático de diversas substâncias, incluindo osteocalcina,6,7 endotelina-1, β-tromboglobulina, fator de crescimento derivado de plaquetas,8 fator de von Willebrand9e fator de crescimento endotelial vascular.10 Concentrações aumentadas de receptor nuclear esteroidal nesses pacientes sugerem aumento na sensibilidade tissular para hormônios sexuais circulantes.11

Quanto ao quadro clínico, tipicamente inicia-se na adolescência, evoluindo crônica e insidiosamente e alternando exacerbações com períodos assintomáticos.12 Em geral, progride por aproximadamente dez anos, até estabilizar espontaneamente. Embora a evolução da forma idiopática seja mais insatisfatória (à semelhança do paciente relatado), não costuma interferir na expectativa de vida do paciente.

As manifestações clínicas são muito variáveis, dependendo de o paciente apresentar a síndrome completa (espessamento cutâneo da face e couro cabeludo, paquidermia, periostite, cutis vertici gyrata), incompleta (quando não há envolvimento do couro cabeludo) ou ainda a forma frustra (paquidermia com periostite mínima ou ausente).

As alterações cutâneas incluem seborreia, blefaroptose, acne, hiper-hidrose das palmas e solas, eczema, lesões eritematosas nas articulações e sensação de queimação nas mãos e pés.5 As deformidades cosméticas e funcionais podem ser melhoradas com procedimentos cirúrgicos simples, como ressecção de camadas da pele e tecido adjacente, seguida de cicatrização primária.3

A forma idiopática caracteriza-se pela predominância de depósito periostal irregular que surge entre metáfises e epífises dos ossos longos, assim como no esqueleto axial. Em dissemelhança do paciente relatado, a paquidermoperiostose tem os primeiros sinais clínicos com surgimento no jovem, com história familiar presente e ausência de dor significante nas articulações.

Anormalidades gástricas (úlcera e gastrite hipertrófica) são manifestações ocorridas em 27,6% dos casos de osteoartropatia hipertrófica primária,13 inclusive com descrição de desenvolvimento de adenocarcinoma gástrico com nove anos de evolução da doença.12 Devido ao pequeno número de casos, essa associação ainda não está comprovada na literatura. Nosso paciente foi submetido a várias endoscopias devido ao quadro dispéptico; não havia sinais de neoplasia em qualquer um desses procedimentos.

O tratamento preconizado para casos de paquidermoperiostose é o uso de analgésicos, AINH, colchicina ou ciclos de corticoide oral, embora todos possam mostrar-se ineficazes para o controle da dor. Estudo utilizando pamidronatona dose única de 1 mg/kg intravenoso por falha da terapêutica convencional obteve melhora significativa em dois de três pacientes, evidenciada pela diminuição do consumo diário de analgésicos, e sem efeitos adversos relatados.14 As alternativas para o tratamento do caso relatado se esgotaram, principalmente pelo quadro dispéptico. O uso de antidepressivos tricíclicos em dose baixa foi uma opção para o controle da dor, embora não existam dados suficientes na literatura quanto a seu uso na paquidermoperiostose.

Quanto ao aconselhamento genético, tanto a heterogeneidade da transmissão da osteoartropatia hipertrófica idiopática como a inviabilidade de testes genéticos diagnósticos dificultam a orientação a ser dada ao paciente. Entretanto, torna-se obrigatória uma cuidadosa avaliação clínica e radiológica de todos os parentes de primeiro grau.5

CONCLUSÕES

A identificação do quadro de osteoartropatia secundária é relativamente comum entre os clínicos. Porém, é necessário conhecer as características da forma primária, patologia de difícil tratamento em que o prognóstico articular depende da extensão da rigidez e das limitações impostas pelo espessamento periostal periarticular.

Recebido em 14/07/2008.

Aprovado, após revisão, em 02/02/2009.

Declaramos a inexistência de conflito de interesse.

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  • Endereço para correspondência:
    Aline Biral Zanon
    Rua Piratininga, 790, 22
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009

    Histórico

    • Aceito
      02 Fev 2009
    • Recebido
      14 Jul 2008
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