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Uma longa jornada para entender a Borrelia burgdorferi no Brasil

EDITORIAL

Uma longa jornada para entender a Borrelia burgdorferi no Brasil

Natalino Hajime Yoshinari

Professor Associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: E-mail: yoshinari@lim17.fm.usp.br

Ao final da minha especialização na Escola de Medicina da TUFTS, em 1989, meu orientador, Dr. Allen C. Steere, sugeriu que eu investigasse a presença da doença de Lyme (DL) no Brasil. Eu me lembro de suas palavras "É como procurar por uma agulha em um palheiro".

Ele não fazia idéia de como essa tarefa seria difícil. Ele me ofereceu alguns reagentes e um tubo contendo cultura de Borrelia burgdorferi G 39/40 para dar início à minha pesquisa no Brasil. Durante esse longo período de pesquisa, eu recebi apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Minha primeira providência foi entrar em contato com um entomologista e, felizmente, conheci o Dr. Domingos Baggio, um homem afável que tentou me ensinar o que sabia sobre os carrapatos. Nós viajamos para regiões suspeitas a procura de casos de DL no Brasil e também coletamos carrapatos para análise.

Naquela época, não havia nenhum conhecimento sobre a DL no Brasil. Portanto, começamos a publicar artigos de revisão sobre a o assunto e informar aos médicos brasileiros sobre a possibilidade da existência dessa doença emergente transmitida por carrapatos no país.

Felizmente, identificamos os primeiros casos em 1992, em irmãos que ficaram doentes após terem sido picados por carrapato em uma região da Floresta Atlântica na cidade de Itapevi, no Estado de São Paulo. Eles apresentavam febre, eritema migrans (EM), e artrite, e a serologia para Borrelia burgdorferi (ELISA e Western-blot), feita em nosso laboratório, foram positivos para ambos.

Após a descrição desses casos, muitos outros foram identificados. Entretanto, a análise cuidadosa dos pacientes revelou que a DL no Brasil era diferente daquela descrita no hemisfério norte. A despeito da presença de todas as manifestações clínicas da DL em nosso país, observamos que os sintomas eram recorrentes e que a serologia para Borrelia burgdorferi (ELISA) era fraca e transitoriamente positiva. Além disso, o Western-blot revelou a ocorrência de poucas bandas e nunca preencheu os critérios do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) para DL. Nunca obtivemos cultura positiva para B. burgdorferi no meio BSK, mesmo quando biópsias de pele de pacientes com DL foram testadas. Adicionalmente, os resultados do PCR foram sempre negativos quando primers específicos ou preservados para Borrelia burgdorferi sensu stricto ou gênero Borrelia eram usados. O desenvolvimento de uma autoimunidade importante, com autoanticorpos contra extrato de membrana de células cerebrais humanas ou extrato de pele humana (produtos comerciais do Sigma Co.) era outra característica importante observada em pacientes com a DL brasileira

Naquele momento, nós compreendemos que a DL brasileira era completamente diferente da DL clássica, e nos deparamos com muitas dificuldades para relatar nosso resultado. Nossos manuscritos sempre foram recusados por revistas médicas internacionais porque os revisores não aceitavam os achados clínicos e laboratoriais dos nossos pacientes.

Apesar das diversas dificuldades, nós publicamos estudos em revistas médicas brasileiras, mesmo com o criticismo de parte dos pesquisadores brasileiros, para informar nossos médicos sobre a existência de uma doença emergente transmitida por carrapatos severa e estranha em nosso país. Nós também propusemos diretrizes diagnósticas preliminares para ajudá-los a identificar a doença de Lyme brasileira.

Em uma nova tentativa de identificar o agente etiológico da DL brasileira, começamos a procurar por microorganismos no sangue periférico de pacientes com suspeita diagnóstica de DL brasileira. Para nossa surpresa, identificamos espiroquetídeos na microscopia de campo escuro, e a microscopia eletrônica sugeria que esses microorganismos poderiam ser uma mistura de microorganismos latentes, como Mycoplasmas, Chlamydias e espiroquetas. Entretanto, o PCR e serologia realizados para identificar esses microorganismos latentes apresentavam resultados negativos.

Assim, com o objetivo de identificar o significado dessas estruturas interessantes observadas na microscopia eletrônica, fizemos uma revisão criteriosa da literatura médica. Descobrimos que as espiroquetas na sua forma L, conhecidas como bactérias deficientes em parede celular, podem alterar sua morfologia quando as condições de sobrevivência não são favoráveis, dando origem às mesmas estruturas descritas nos pacientes com DL brasileira.

Nesse ponto, compreendemos a astúcia das espiroquetas responsáveis pela DL brasileira. Elas provavelmente adotaram uma estratégia de sobrevivência, eliminando ou suprimindo conteúdo genético desnecessário para expressar um conteúdo protéico mínimo para o sistema imunológico do hospedeiro. Portanto, as formas L das bactérias poderiam representar espiroquetas de morfologia atípica que perderam parcialmente ou totalmente lipoproteínas da membrana externa (Osps) e flagelos periplasmáticos.

Entretanto, consideramos que elas teriam que preservar genes e proteínas essenciais para sua sobrevivência durante sua passagem por mamíferos e carrapatos. Por isso, decidimos testar novos primers, como os pertencentes ao complexo cp 32 e flgE. O primeiro é importante porque sintetiza o fator H que inibe a resposta imunológica do hospedeiro contra as espiroquetas.

A seleção do flgE foi feita após uma observação interessante. Sabíamos que as espiroquetas na forma L não podiam expressar flagelos periplasmáticos, mas, em geral, pacientes com a DL brasileira exibiam no Western-blot a presença de 41 KDa, uma proteína da flagelina. Descobrimos que os flagelos têm três componentes: o corpo basal, um gancho (flgE) e um filamento. Como espécies mutantes de B. burgdorferi para a síntese de flagelos periplasmáticos apresentam o formato de bastonetes, presumimos que o flgE poderia ser preservado nas espiroquetas brasileiras.

Os dados desses experimentos são preliminares, mas os primeiros ensaios apresentaram resultados interessantes. A reação em cadeia da polimerase com cp 32-2/7 apresentou resultados positivos, mas o seqüenciamento demonstrou a existência de uma forte reatividade cruzada com o cromossoma humano. Por outro lado, o uso de flgE como primer é promissor, já que os resultados iniciais do PCR foram positivos nas amostras de alguns pacientes e carrapatos, sendo negativos nos controles normais. Surpreendentemente, a análise seqüencial mostrou homologia com espiroquetas Borrelia burgdorferi sensu lato. É claro que esses testes devem ser repetidos e interpretados cuidadosamente, mas esses resultados inacreditáveis abrem novas e fascinantes perspectivas para o entendimento de muitos problemas relacionados à DL e a DL brasileira.

Devido a diversas particularidades, a DL brasileira tem sido chamada, desde 2005, de Síndrome de Baggio-Yoshinari (SBY). Ela é considerada uma nova doença causada pela picada do carrapato, definida como uma doença brasileira peculiar causada pela picada do carrapato, provavelmente causada pela forma L da espiroqueta Borrelia burgdorferi sensu lato (mutante), transmitida por carrapatos que não pertencem ao complexo Ixodes ricinus (Amblyoma cajannense, Riphicephalus [Boophilus] microplus, Riphicephalus snaguineus), que produz todos os sintomas clínicos da DL, exceto pela ocorrência de recaídas e manifestações auto-imunes.

No momento, não é nosso objetivo discutir a relação entre bactérias na forma L e a infecção humana. Entretanto, essa proposta fantástica explica a maioria das controvérsias da SBY, como a longa permanência das espiroquetas no hospedeiro, dificuldades para cultivá-las em meio BSK, baixa resposta imunológica contra a bactéria, desenvolvimento de autoimunidade e resistência à sua eliminação dos hospedeiros.

Acredito que o agente etiológico da SBY seja uma espiroqueta mutante pertencente ao complexo B. burgdorferi senso latu, devido a enormes diferenças geográficas e biodiversidade. Assim, achamos que uma espiroqueta única desse complexo possa ser a causa de duas doenças diferentes, DL e SBY.

Finalmente, eu gostaria de dizer ao meu amigo, Dr. Steere, que esses resultados improváveis são o resultado de uma longa jornada de 20 anos de pesquisas difíceis feitas no Brasil. Durante todo esse período, meu pensamento sempre se voltava para os ensinamentos e conselhos dados pelo meu Professor. Eu insisti nessa longa jornada devido a uma promessa feita há 20 anos.

Nota: Omitimos as referências bibliográficas por estarem citadas nos artigos publicados neste número do JBR.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Out 2009
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