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Manifestações sistêmicas e ulcerações cutâneas da hanseníase: diagnóstico diferencial com outras doenças reumáticas

Resumos

A hanseníase apresenta acometimento cutâneo e neurológico característicos; entretanto, as manifestações reumáticas são relativamente comuns sendo, em alguns pacientes, a queixa inicial. O presente relato de caso descreve uma paciente do sexo feminino, com hanseníase borderline, cuja manifestação inicial foi poliartrite simétrica, lesões cutâneas ulceradas em membros inferiores e manifestações sistêmicas simulando doença reumática. Os autores enfatizam a importância do diagnóstico diferencial do comprometimento sistêmico, articular e cutâneo na hanseníase com as doenças reumáticas.

hanseníase; poliartrite; lesões cutâneas ulceradas


Leprosy is a systemic disease with predominant involvement of skin and nerves; articular manifestations are common and, in some cases, represent the initial complaint. We describe the case of a female patient with borderline leprosy, which manifested, initially, with symmetric polyarthritis, cutaneous ulcerative lesions on the lower limbs, and systemic manifestations mimicking rheumatic disease. The authors emphasize the importance of the differential diagnosis of the systemic, joint and, cutaneous involvement of leprosy with rheumatic diseases.

leprosy; polyarthritis; cutaneous ulcerative lesions


RELATO DE CASO

Manifestações sistêmicas e ulcerações cutâneas da hanseníase: diagnóstico diferencial com outras doenças reumáticas

Sandra Lúcia Euzébio RibeiroI; Erilane Leite GuedesII; Helena Lucia Alves PereiraIII; Lucilene Sales de SouzaIV

IProfessora do Departamento de Clínica Médica da Disciplina de Reumatologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

IIMedicina Interna

IIIMédica-reumatologista assistente do Hospital Universitário Getúlio Vargas da UFAM

IVMédica-dermatologista da Fundação Alfredo da Matta da FUAM

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Sandra Lúcia Euzébio Ribeiro MD Avenida Apurinã 4, Bairro Praça 14 Manaus - Amazonas, Brasil. CEP: 69020-170 Tel: (92) 3633-4977 E-mail: sandraeuzebio@vivax.com.br

RESUMO

A hanseníase apresenta acometimento cutâneo e neurológico característicos; entretanto, as manifestações reumáticas são relativamente comuns sendo, em alguns pacientes, a queixa inicial. O presente relato de caso descreve uma paciente do sexo feminino, com hanseníase borderline, cuja manifestação inicial foi poliartrite simétrica, lesões cutâneas ulceradas em membros inferiores e manifestações sistêmicas simulando doença reumática. Os autores enfatizam a importância do diagnóstico diferencial do comprometimento sistêmico, articular e cutâneo na hanseníase com as doenças reumáticas.

Palavras-chaves: hanseníase, poliartrite, lesões cutâneas ulceradas.

INTRODUÇÃO

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa crônica causada pelo Mycobacterium leprae, bacilo álcool-ácido resistente, com afinidade pelas células do tecido cutâneo e dos nervos periféricos.1

A doença pode apresentar um amplo espectro de manifestações clínicas, incluindo aquelas decorrentes do acometimento sistêmico, que ocorre principalmente em pacientes multibacilares (borderline e virchowiano). Essas manifestações são infrequentes, no entanto adquirem importância pela similaridade de apresentação clínica com as doenças reumáticas.2,3

Apresentamos um caso de hanseníase, no qual a paciente evoluiu inicialmente com um quadro sistêmico de astenia e perda ponderal, seguido de poliartrite simétrica de pequenas e grandes articulações associado a lesões cutâneas ulceradas nos membros inferiores (MMII) sugestivas de vasculite, simulando uma doença do tecido conjuntivo.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, com 58 anos, iniciou em janeiro de 2009 um quadro de astenia, fraqueza muscular progressiva e úlceras cutâneas nos MMII associadas à poliartrite simétrica em mãos, punhos, joelhos, tornozelos e pés. Após 3 meses, houve piora, evoluindo com perda ponderal de 10 kg, infecção secundária nas lesões cutâneas e comprometimento da deambulação. Procurou assistência médica no serviço de dermatologia e, na ocasião, foi observada xerodermia generalizada com predomínio nas pernas, nos pés e nas mãos; cianose do 5º quirodáctilo direito, e dos 2º, 3º e 4º pododáctilos esquerdos (Figuras 1A e 1B), edema e lesões ulceradas em ambas as pernas (pés, tornozelos e região de inserção do tendão de Aquiles), de tamanhos variados, com bordas elevadas e hiperemiadas e centro com secreção purulenta (Figuras 2A e 2B). Foi realizada biópsia das lesões cutâneas e iniciada antibioticoterapia. Os exames laboratoriais evidenciavam anemia hipocrômica e microcítica (hemoglobina = 9,5 g/dL, hematócrito = 24,7%), eosinofilia = 11%, velocidade de hemossedimentação (VHS) - 64 mm, proteína C-reativa - 6 mg/dL, fator reumatoide (látex) - 64 UI/mL, fator antinuclear - (FAN) HEp 2 1:160, padrão pontilhado fino, aspartato aminotransferase (AST) = 115 U/L, alanina aminotransferase (ALT) = 83 U/L. Exames de imagem: radiografia dos MMII, joelhos e tornozelos e coluna lombar sem alterações; ultrassonografia (US) de abdome total com sinais de hepatoesplenomegalia e linfonodos periportais. A paciente procurou o serviço de reumatologia, em decorrência da poliartrite e dor intensa na coluna cervical, sendo prescrito anti-inflamatório não hormonal. Ao retornar, referiu melhora discreta das lesões cutâneas, porém persistindo com quadro sistêmico (astenia importante, anorexia e febre), e poliartrite de grandes e pequenas articulações. O laudo histopatológico foi compatível com micobacteriose (hiperplasia da epiderme, fibroplasia intensa da derme, infiltrado inflamatório de macrófagos, linfócitos, numerosos plasmócitos nos anexos cutâneos e numerosos bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR) fragmentados). Na coloração de Fite-faraco-WADE, numerosos bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR) fragmentados. Em maio, após o resultado da biópsia, foi encaminhada para realizar baciloscopia, cujo resultado positivo do índice baciloscópico (IB - 2,25) confirmou o diagnóstico de hanseníase borderline borderline (BB) e foi iniciada a poliquimioterapia (PQT) com prednisona 60 mg/dia. Após o segundo ciclo de PQT e prednisona 10 mg/dia a paciente vem evoluindo com melhora das manifestações sistêmicas, das lesões cutâneas e da poliartrite. Foi iniciada prednisona 40 mg em 7/7/09 por 10 dias, e reduzindo até 10 mg. A programação é manter o tratamento especifico por 12 meses.





DISCUSSÃO

As diversas queixas clínicas que podem ser relacionadas com a hanseníase, que, muitas vezes, se assemelham a outras enfermidades de evolução clínica insidiosa, tornam esta doença crônica um desafio diagnóstico nos primeiros meses e anos em que ocorre. Os sintomas de febre, fadiga, parestesias, e as queixas musculoesqueléticas, associadas a lesões cutâneas e acometimento visceral contribuem para a semelhança da hanseníase com outras enfermidades.1

A infecção ativa pelo M. leprae é caracterizada por uma grande diversificação no curso clínico, variando de doença paucibacilar a multibacilar, de acordo com a carga bacilar presente nas lesões.1 As similaridades das manifestações clínicas e laboratoriais entre hanseníase e as doenças do tecido conjuntivo são conhecidas de longa data.2

Na literatura, há descrições de pacientes com hanseníase que foram diagnosticados e tratados inicialmente como lúpus eritematoso sistêmico (LES), artrite reumatoide (AR), dermatopolimiosite e vasculites sistêmicas.3-8 Essas manifestações sistêmicas ocorrem principalmente na hanseníase multibacilar, especialmente durante as fases reacionais, são decorrentes da infiltração e da proliferação direta do bacilo no órgão acometido.2,9

As manifestações incluem eritema malar, nódulos subcutâneos, ulcerações, púrpuras, necrose isquêmica, fenômeno de Raynaud, polineuropatia, mononeurite múltipla, fraqueza muscular, linfadenopatia generalizada, hepatoesplenomegalia e glomerulonefrite.2,8-10 Entre as alterações sorológicas estão a presença do fator reumatoide, anticorpos antipeptídeos citrulinados cíclicos, FAN, anticorpo anticardiolipina, anticorpo anticitoplasma de neutrófilos e outros.2,11

O comprometimento articular ocorre principalmente nas formas reacionais, sendo a reação eritema nodoso hansênico a mais frequente. As outras formas de acometimento articular são a artropatia de Charcot, as artrites sépticas não específicas após traumas, e a artrite específica por infiltração articular direta pelo M. lepra.12,13 No presente caso, embora não tenha sido realizada a biópsia sinovial, acreditamos que a poliartrite seja originada pela presença do bacilo nas articulações e, portanto, uma manifestação de pioartrite específica pelo M. leprae. Apesar de incomum, a poliartrite, pode ser justificada pela alta carga bacilar e pelo fato da paciente ainda não ter iniciado o tratamento específico. A instalação da poliartrite de maneira insidiosa e progressiva é semelhante à apresentação clinica da artrite reumatoide.7

No presente caso, as manifestações clínicas como a poliartrite exuberante, as lesões cutâneas necróticas e os achados laboratoriais eram sugestivos de doença do tecido conjuntivo, porém na biópsia foram identificados bacilos de Hansen comprovando o diagnóstico de hanseníase multibacilar. O comprometimento multissistêmico muito provavelmente foi decorrente da infiltração bacilar e consequente à reação granulomatosa focal. A bacilemia é descrita principalmente nos pacientes VV não tratados, e no histopatológico, os bacilos são vistos em macrófagos, em células endoteliais, nas luzes dos vasos da circulação terminal, no seio marginal dos linfonodos onde aparecem fagocitados por macrófagos ou livres no interior da luz sinusal. Assim veiculados, os bacilos podem atingir múltiplas localizações orgânicas, proliferando e estimulando reação granulomatosa. Os órgãos comprometidos são os linfonodos, fígado, baço e medula óssea, as membranas sinoviais, as mucosas de vias respiratórias altas e os testículos.14

As necroses cutâneas da hanseníase são atribuídas às tromboses vasculares induzidas pela invasão direta das paredes dos vasos e do endotélio pelos bacilos de Hansen.15 No caso descrito, o que nos chamou atenção foram as diversas lesões cutâneas cianóticas, ulceradas e necróticas nas extremidades, semelhante ao quadro do fenômeno de Lúcio, que se caracteriza, por necrose em lesões de eritema nodoso surgidos na evolução de uma reação hansênica, em pacientes com hanseníase multibacilar não tratados. No entanto, a nossa paciente não relatava nem apresentava ao exame físico lesões do tipo eritema nodoso. Na histopatologia do fenômeno de Lúcio, há proliferação endotelial, trombose, necrose isquêmica, infiltrado mononuclear discreto e numerosos bacilos ao redor e nas paredes vasculares, não observados na descrição da biópsia da paciente.15

Com o advento da PQT e com os programas de detecção precoce da doença, casos com comprometimento multissistêmico como o relatado estão ficando raros; no entanto, o reumatologista deve ficar atento ao seu aparecimento, pois são os que mais se assemelham clínica e laboratorialmente com as doenças reumáticas.

Recebido em 7/07/2009

Aprovado, após revisão, em 10/08/2009

Declaramos a inexistência de conflito de interesse.

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  • Endereço para correspondência:
    Sandra Lúcia Euzébio Ribeiro
    MD
    Avenida Apurinã 4, Bairro Praça 14
    Manaus - Amazonas, Brasil. CEP: 69020-170
    Tel: (92) 3633-4977
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Out 2009

    Histórico

    • Aceito
      10 Ago 2009
    • Recebido
      07 Jul 2009
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