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Polimiosite associada à arterite linfocítica do sistema nervoso central

Resumos

Complicações do Sistema Nervoso Central (SNC) raramente são descritas em miopatias inflamatórias idiopáticas. Os autores relatam o caso de uma paciente de 48 anos com diagnóstico de polimiosite com autoanticorpo anti-Jo-1 positivo que, após cinco anos de evolução, apresentou extensa lesão desmielinizante do SNC associada à arterite linfocítica.

polimiosite; vasculite do Sistema Nervoso Central; autoanticorpos miosite-específicos; anti-Jo-1


Central Nervous System (CNS) complications in idiopathic inflammatory myopathies are seldom reported. The authors describe the case of a 48-year old female with polymyositis and positive anti-Jo-1 autoantibody who, after five years of evolution, developed extensive CNS demyelinating injury associated with lymphocytic arteritis.

polymyositis; central nervous system vasculitis; myositis-specific autoantibodies; anti-Jo-1


RELATO DE CASO

Polimiosite associada à arterite linfocítica do sistema nervoso central

Izaias Pereira da CostaI; Elisangela Possebon PradebonII; Julia Villegas CamposII; Fabrícia Santos MeloIII; Flávia Midori Arakaki Ayres TavaresIII

IProfessor Doutor Associado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina (FAMED)/ UFMS; Chefe do Serviço de Reumatologia do Hospital Universitário da UFMS

IIMédica-residente R4 do Serviço de Reumatologia do Hospital Universitário da UFMS

IIIMédica-residente R3 do Serviço de Reumatologia do Hospital Universitário da UFMS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Izaias Pereira da Costa Av Senador Filinto Muller, s/n. Hospital Universitário/UFMS. Serviço de Reumatologia Campo Grande, MS - CEP: 79080-190 Tel: 55 67 3349-3203 E-mail: izapec@hotmail.com

RESUMO

Complicações do Sistema Nervoso Central (SNC) raramente são descritas em miopatias inflamatórias idiopáticas. Os autores relatam o caso de uma paciente de 48 anos com diagnóstico de polimiosite com autoanticorpo anti-Jo-1 positivo que, após cinco anos de evolução, apresentou extensa lesão desmielinizante do SNC associada à arterite linfocítica.

Palavras-chave: polimiosite, vasculite do Sistema Nervoso Central, autoanticorpos miosite-específicos, anti-Jo-1.

INTRODUÇÃO

As miopatias inflamatórias idiopáticas são um grupo de doenças caracterizadas por fraqueza muscular proximal, com inflamação não supurativa do músculo esquelético e produção de autoanticorpos e sem alteração sensorial e dos reflexos tendíneos.1,2

A polimiosite faz parte deste grupo, e uma interação entre fatores ambientais e genéticos parece determinar seu início, quadro clínico e perfil de autoanticorpos.3 As alterações histológicas são bem características.1 As mulheres são duas vezes mais acometidas que os homens.1

Os critérios de classificação de Bohan e Peter, publica-dos em 1975 e modificados por Targoff e Miller em 1997 permanecem os mais utilizados.4 Podem ser utilizados ainda, nos casos de dúvida diagnóstica, os critérios propostos por Dalakas (1991), revisados em 2003, que se utiliza da imuno-histoquímica para a diferenciação diagnóstica.4,5

Os anticorpos antissintetases, considerados específicos das miopatias inflamatórias, são dirigidos contra diferentes enzimas aminoacil-tRNAsintetases, encontradas no citoplasma celular: anti-PL-7, anti-PL-12, anti-EJ, anti-OJ, anti-Ks, anti-Zo, anti-tirosil-tRNA sintetase e o anti-Jo1, sendo este o mais prevalente nos pacientes com polimiosite.3,6,7

Estudos recentes apontam um papel do anti-Jo1 na indução e manutenção da chamada "síndrome antissintetase",6,8,9 além dos níveis séricos correlacionarem-se com a atividade da doença.6,7

Entre as manifestações extramusculares da polimiosite, o comprometimento pulmonar é a mais frequente.3,10,11 Já complicações do Sistema Nervoso Central (SNC) raramente são documentadas.12

RELATO DE CASO

Mulher, branca, 48 anos, foi admitida no nosso serviço em 2002 com quadro de fraqueza muscular proximal dos membros inferiores, iniciado há "alguns meses", com intensificação do quadro há três meses, evoluindo com acometimento muscular da cintura escapular e disfagia inicial para alimentos sólidos. Apresentava diabetes tipo II, com adequado controle glicêmico com metformina.

O exame físico mostrou força muscular proximal dos quatro membros grau III, reflexos tendíneos e sensibilidade preservados. Não existiam manifestações cutâneas de interesse.

Com exceção da alanina-aminotransferase (ALT) que se encontrava elevada três vezes o valor normal e a VHS que era de 43 mm/1ª hora, todos os demais exames laboratoriais de rotina e enzimas musculares eram normais, inclusive a CK e aldolase. As eletroneuromiografias dos membros demonstraram padrão miopático, sem alterações do sistema nervoso periférico. Na biópsia muscular de deltoide direito, havia escassos feixes de fibras musculares, permeados por glóbulos de tecido adiposo, sugerindo substituição adiposa.

Realizou-se um ciclo de pulsoterapia com metilprednisolona (1 g) e ciclofosfamida (20 mg/kg), com remissão completa dos sintomas, sendo prescrito, na manutenção, prednisona (1 mg/kg/dia), com programação de redução gradual da dose.

Após cinco meses, já assintomática, a paciente abandonou o tratamento.

Em 2007, apresentou recidiva da fraqueza muscular, agitação psicomotora, alucinações, sinais de demência e hipertonia espástica à esquerda. Estava em uso irregular de prednisona (10 mg/dia), glibenclamida e diazepam.

Os exames complementares, incluindo sorologias para as principais doenças infecciosas, estavam inalterados. De todos autoanticorpos pesquisados, apenas o anti-Jo-1 foi positivo.

O liquor coletado por punção lombar tinha aumento de proteínas (74 mg%) e glicose (94 mg%).

A ressonância magnética de crânio mostrou alteração de sinal extenso bilateral, temporoparieto-occipital direito e parieto-occipital esquerdo, atingindo a substância branca periventricular (Figura 1).


Abiópsia cerebral revelou infiltrado histiocitário difuso em área desmielinizada, associado à angiite linfocítica crônica não necrosante, com redução da luz dos vasos (Figura 2). Pesquisas para BAAR, fungos e células neoplásicas, mostraram-se negativas.


Após pulsoterapia mensal, por seis ciclos, com metilprednisolona (1 g) e ciclofosfamida (20 mg/kg), e mantendo prednisona (0,5 mg/kg/dia) nos intervalos das pulsoterapias, houve melhora da alucinação e agitação psicomotora.

Após quatro meses de suspensão da pulsoterapia e em uso de prednisona 20 mg/dia, houve piora da proteinorraquia (468 mg%). Após novos ciclos de pulsoterapia, com ciclofosfamida (20 mg/kg) e metilprednisolona (1 g), a proteinorraquia baixou para 78 mg%. Houve melhora da força motora proximal objetiva e da hipertonia espástica esquerda; no entanto, a paciente mantém impossibilidade de deambulação.

DISCUSSÃO

No presente caso, a paciente apresentou quadro clínico de miopatia inflamatória.

A rápida resposta inicial aos corticoides e a ausência de acometimento dos músculos distais dos membros afastaram o diagnóstico de miosite por corpúsculos de inclusão. Excluiu-se dermatomiosite pela ausência de manifestações cutâneas.

Anormalidades eletrolíticas, infecções e toxicidade por drogas foram excluídas como causas da lesão do SNC.

O fato da maior parte das enzimas musculares da paciente estar normal é relatado na literatura.2,6 Além disso, a substituição gordurosa já predominava sobre o processo inflamatório, justificando a elevação moderada da ALT.

Portanto, o caso relatado preenche os critérios de Bohan e Peter para polimiosite, com anti-Jo-1 positivo.

Foram descritos poucos casos de acometimento de SNC em miopatia inflamatória idiopática.12,13 Não foram encontrados relatos de complicações de polimiosite com lesão do SNC semelhante ao aqui descrito.

Nos trabalhos revisados, várias hipóteses etiológicas para o envolvimento do SNC foram aventadas. Entre elas o acometimento vascular, que poderia ocorrer por: vasculopatia como parte do quadro clínico de dermatomiosite, encefalopatia hipóxica isquêmica secundária à hipoperfusão cerebral, encefalopatia hipertensiva e como consequência do uso de corticoides.12

O uso de glicocorticoides pela paciente não justifica o quadro miopático, pois o mesmo ocorre quase exclusivamente em pacientes tratados com mais de 30 mg/dia de prednisona ou equivalente,e as alterações eletromiográficas e histológicas musculares têm características diferentes.14

A presença de infiltrado linfocítico na parede arterial, com redução da luz vascular, além de caracterizar uma arterite inflamatória, exclui as possibilidades de a lesão cerebral ser decorrente de hipóxia ou de encefalopatia hipertensiva. Além disso, a arterite linfocítica não é compatível histologicamente com arteriopatia diabética.

Estudos demonstram que a produção de autoanticorpos específicos da miosite correlacionam-se com mecanismos patogênicos das miopatias inflamatórias idiopáticas e suas manifestações extramusculares.6,7,8,9 O anti-Jo-1 teria papel patogênico na lesão orgânica, desencadeando processo inflamatório local e resposta imunológica sistêmica.6,8,9

No presente caso, aventamos a hipótese do possível papel do anti-Jo-1 na patogênese da arterite linfocítica, que teria determinado a lesão do SNC, evidenciada pelo aumento dos níveis da proteína no liquor, bem como pela resposta clínica favorável após o uso de imunossupressores.

Recebido em 02/10/2009

Aprovado, após revisão, em 14/11/2009

Declaramos a inexistência de conflito de interesse.

Serviço de Reumatologia do Hospital Universitário da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (FAMED - UFMS)

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  • Endereço para correspondência:
    Izaias Pereira da Costa
    Av Senador Filinto Muller, s/n. Hospital Universitário/UFMS. Serviço de Reumatologia
    Campo Grande, MS - CEP: 79080-190
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2010

    Histórico

    • Recebido
      02 Out 2009
    • Aceito
      14 Nov 2009
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