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Aspectos éticos das publicações médicas Ensaios clínicos sobre biológicos

EDITORIAL

Aspectos éticos das publicações médicas Ensaios clínicos sobre biológicos

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ricardo Fuller Av. Brigadeiro Luiz Antonio, 2.466, conjs. 93-94 CEP 01402-000. São Paulo, SP, Brazil

Quando me convidaram a escrever sobre este

tema, a ética médica, meu primeiro impulso foi

negar-me; meu estado anímico rapidamente

passou do medo ao recato no sentido de recusar.

Como iria eu falar de ética sem descrever-me a

mim mesmo, minhas culpas e as transgressões

que seguramente realizo com os meus deveres,

os mais elementares. Porém, depois pensei que

minhas culpas não eram muito maiores nem tanto

menores que as dos meus colegas em geral.

Jaime Woolrich

Presidente da Academia Nacional de Medicina do México; 1979

Por ter me ocupado de ética outrora, na UNICAMP, e de publicações médicas, na Presidência da Comissão de Publicação de Ensaios Clínicos durante a gestão de Hilton Seda (JAMB, Jornal da AMB. Ano XI, nº 442, 19 de maio de 1969, SP), é que me dispus a aceitar tão honroso convite. Bem entendido, não sem antes perguntar-me se tenho sido ético toda minha vida e, de certa forma, consolar-me com o que dissera Jaime Woolrich. Por sorte, a ética médica, diferentemente da consciência, é de tempos em tempos mutável, e um dentre muitos exemplos é o da inseminação artificial, não ética há mais de meio século, diferente hoje das propaladas e também consistentemente aceitas mães de aluguel, bebê de proveta etc. Outro exemplo mais contundente é a pratica do aborto, por milênios condenada e hoje em discussão nas tribunas das câmaras altas do país, frontalmente contrária aos princípios do exercício médico. Também a eutanásia, outrora condenada por ferir o mais sagrado dos princípios cristãos (somente Deus nos deu a vida e somente Ele tem o arbítrio de no-la tirar), é hoje praticada veladamente em um e declaradamente em outro país da Europa. Ambos, eutanásia e aborto, também condenadas por Hipócrates e seus discípulos em 460 a.C., constantes do juramento médico "a ninguém darei um remédio mortal, nem um conselho que induza a morte. Do mesma forma, não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva etc."

Quatro décadas depois, revendo aqueles regulamentos da tal Comissão de Ensaios Clínicos, não posso esconder meu desapontamento e uma certa dose de ingenuidade à época, visto que hoje consultórios médicos são constantemente invadidos por publicações, revistas, separatas, fascículos, boletins e revistas de Sociedades Médicas etc. Os fascículos e congêneres, porém, com algumas páginas dedicadas a um determinado medicamento obviamente com bons resultados revelam claramente um conflito de interesses do autor, que deixa entrever certa tendenciosidade metodológica. O novo Código de Ética tem um artigo relacionado com o tema. É vedado ao médico: "art.109 - Deixar de zelar, quando docente ou autor de publicações científicas, pela veracidade, clareza e imparcialidade das informações apresentadas, bem como deixar de declarar relações com a indústria de medicamentos, órteses, próteses, equipamentos, implantes de qualquer natureza e outras que possam configurar conflitos de interesses, ainda que em potencial." No capítulo dos: "Princípios fundamentais - artigo XXIII - Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico agirá com insenção e independência, visando ao maior benefício para os pacientes e a sociedade." Por acréscimo, e em favor de tais publicações, um inquérito de outrora revelara surpreendentemente que as revistas e aqueles fascículos constituíam a segunda maior fonte de consultas do médico, perdendo apenas para os livros de texto. Ouso dizer com isso que, se repetido nos dias atuais o tal inquérito, médicos certamente optariam por eles em primeiro lugar, pois são poucos aqueles que têm biblioteca médica, ou que elas também não estão ao alcance de todos, e se estivessem também não haveria tempo para uma consulta quase sempre muito demorada em livros de texto. Por sinal, a internet, a despeito da superficialidade como aborda os temas em geral, sobretudo para uma consulta tanto quanto possível rápida e eficaz, é hoje a maior fonte de pesquisa até mesmo pelos doentes, que não raro travam uma autêntica batalha de conhecimentos durante a consulta.

Excluindo os tais fascículos que não nos compete policiar, quem sabe outros órgãos não societários, porém igualmente competentes, poderiam contribuir para esse estado de coisas, como, por exemplo, o Conselho Regional de Medicina, a Comissão de Éticas da Associação Paulista de Medicina ou até mesmo a ANVISA. No meu entender, é esta última, dentre todas, a maior responsável e a quem cabe, em última análise, julgar sobre: a qualidade do medicamento; sua farmacocinética e farmacodinâmica; a bibliografia pertinente à honorabilidade científica do autor; o serviço a que pertence e se é de excelência ou não e, por último, se o trabalho teve a aprovação do Comitê de Ética hoje instituído nas universidades e nos serviços de excelência para desenvolver ensaios clínicos. Lembremos que os fascículos, como fonte de pesquisa, são também sedutores, além de uma tão propalada parceria em que a força de venda de algumas indústrias farmacêuticas, felizmente minoria, veladamente cobra, da classe médica e do seu receituário, troca de favores, sejam eles de que natureza forem.

Esses enunciados para aqueles tais fascículos se aplicam às revistas, como fonte informadora de Sociedades Médicas, porém com mais rigor, até porque pesa sobre nossos ombros um fardo imenso de responsabilidades, ensejadas sob um denominador comum do que é ético ou não ético, desde a profissão que juramos exercer. Vivemos sob a mesma ética do procedimento médico, não havendo a mais remota hipótese ou pretexto de como separar ética do exercício médico, daquela qualquer área de atuação do médico, portanto de publicações médicas também. Influenciados por elas, médicos menos avisados em lugares longe dos grandes centros, com dificuldade de comunicação, podem por em risco uma legião de seres humanos. Lembremos que são os doentes que correm risco por efeitos de medicamentos e não os médicos. Eles nos perguntam se estão servindo de cobaias, e creio que estão porque a cada doente é uma nova experiência acumulada. Quando os biológicos foram introduzidos no tratamento das doenças reumáticas, o entusiasmo foi assombroso e só mais tarde se soube que eram mais eficazes se usados em associação com metotrexato ou leflunomida, e, mesmo assim, nem sempre com boas respostas, havendo casos em que uma troca por outro biológico era necessária. Tem sido sempre assim com outros medicamentos, dentre eles a cortisona e mais recentemente os anti-COX 2.

Sobre publicações médicas de ensaios clínicos, não creio serem elas diferentes das demais. Criou-se de alguns anos para cá, contudo, a expressão "conflito de interesses", que por definição reporta-se a situações em que aspectos de ordem financeira ou outros, de interesse pessoal, podem comprometer ou aparentar a possibilidade de comprometer o julgamento ou a decisão de um profissional em suas atividades administrativas, gerenciais, de ensino, de pesquisa, assistenciais ou outras. Não se resumem, pois, às situações que envolvem aspectos meramente econômicos. Pessoalmente, não vejo como separar um artigo ético de um possivelmente não ético porque parto do pressuposto de que este último não passara pelo crivo de um board editorial com competência suficiente para recusar sua publicação, porque comprometerá a idoneidade da revista tendo em conta uma antiga sabedoria francesa - il ni a pas de science sans conscience. Não é pois em vão que revistas médicas têm nota de impacto, podendo ser mais ou menos impactante de acordo com o nível científico de suas publicações. Cito apenas a título de exemplo o Lancet,o New England Journal of Medicine, o Arthritis and Rheumatism, o Annals of the Rheumatic Diseases,o Annals of Internal Medicine etc. Por sinal, eles já estão publicando ensaios clínicos, principalmente sobre essa nova classe de drogas como os agentes biológicos. Quando afirmei que a ética é mutável, recordo que me referi também sobre a consciência, que não o é e que tem caráter textualmente absoluto e de nenhuma forma está subordinada a qualquer forma de conflito de interesses. Lembremos que, ao se submeter ao Comitê Editorial da Revista Brasileira de Reumatologia um trabalho sobre Ensaio Clínico, ele já passou presumivelmente por diversas fronteiras éticas e científicas desde o isolamento de uma molécula, aos ensaios in vitro, in vivo e ex vivo, fase três em anima nobile etc.AIndústria Farmacêutica é, dentre todas a maior interessada em saber da eficácia e da tolerabilidade de uma droga, sob pena de aquela que não responder a esses quesitos causar a ela custos irreparáveis em ações indenizatórias, lucro cessante, queda do valor de suas ações na bolsa etc. Outrora já nos referimos a todas as outras fronteiras e, resumidamente, a exemplo de outras congêneres internacionais, não vejo nenhum inconveniente em publicações, de qualquer natureza, investigacional, observacional e de ensaios clínicos, desde que éticas e ditadas pela consciência. Regulamentar sua publicação é preciso.

Professor Dr. Adil Muhib Samara

Presidente da Academia Brasileira de Reumatologia 2002-2004

O autor declara a inexistência de conflitos de interesse

  • Endereço para correspondência:

    Ricardo Fuller
    Av. Brigadeiro Luiz Antonio, 2.466, conjs. 93-94
    CEP 01402-000. São Paulo, SP, Brazil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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