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Lúpus eritematoso sistêmico complicado por vasculite intestinal e pneumatose intestinal

Resumos

As manifestações gastrointestinais no lúpus eritematoso sistêmico (LES) não são incomuns. Frequentemente são encontrados sintomas inespecíficos, como dor abdominal, náuseas, vômitos e diarreia. Por outro lado, a pneumatose intestinal, caracterizada por múltiplos cistos preenchidos por ar na parede intestinal, é uma condição raramente associada ao LES. Descreve-se a seguir o caso de um homem de 20 anos que foi internado por febre, perda ponderal, cefaleia e artrite, cuja investigação mostrou tratar-se de LES. Na evolução, apresentou quadro abdominal sugestivo de vasculite intestinal, com tomografia computadorizada de abdome revelando sinal do duplo halo ou do alvo e pneumatose intestinal. Realizado tratamento conservador com antibioticoterapia endovenosa, repouso intestinal e nutrição parenteral total, com resolução do quadro abdominal.

lúpus eritematoso sistêmico; vasculite; pneumatose cistoide intestinal; trato gastrointestinal


Gastrointestinal manifestations in systemic lupus erythematosus (SLE) are not uncommon. Non specific symptoms are often observed, such as abdominal pain, nausea, vomiting and diarrhea. On the other hand, pneumatosis cystoides intestinalis, which is characterized by multiple gas-filled cysts located throughout the intestinal wall, is a rare condition in SLE. We describe a case of a 20-year-old man who was admitted with fever, weight loss, headache and arthralgia and had a diagnosis of systemic lupus erythematosus. During his hospital stay, he developed abdominal symptoms that suggested intestinal vasculitis. The computed tomography of the abdomen showed the double halo sign, or target sign and pneumatosis cystoides intestinalis. The patient presented complete recovery after conservative treatment, with intestinal rest and total parenteral nutrition.

systemic lupus erythematosus; vasculitis; pneumatosis cystoides intestinalis; gastrointestinal tract


RELATO DE CASO

Lúpus eritematoso sistêmico complicado por vasculite intestinal e pneumatose intestinal

Débora Karine MarinelloI; Daniane RafaelII; Eduardo dos Santos PaivaIII; Robson Luiz DominoniIV

IEspecialização em Reumatologia do Hospital de Clínicas - UFPR (em curso)

IIResidente em Clínica Médica do Hospital de Clínicas - UFPR

IIIProfessor da Disciplina de Reumatologia do Hospital de Clínicas - UFPR

IVResidente em Reumatologia do Hospital de Clínicas - UFPR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Robson Luiz Dominoni Av João Gualberto nº 850 apto 107 Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80030-000 E-mail: robsondominoni@yahoo.com.br

RESUMO

As manifestações gastrointestinais no lúpus eritematoso sistêmico (LES) não são incomuns. Frequentemente são encontrados sintomas inespecíficos, como dor abdominal, náuseas, vômitos e diarreia. Por outro lado, a pneumatose intestinal, caracterizada por múltiplos cistos preenchidos por ar na parede intestinal, é uma condição raramente associada ao LES. Descreve-se a seguir o caso de um homem de 20 anos que foi internado por febre, perda ponderal, cefaleia e artrite, cuja investigação mostrou tratar-se de LES. Na evolução, apresentou quadro abdominal sugestivo de vasculite intestinal, com tomografia computadorizada de abdome revelando sinal do duplo halo ou do alvo e pneumatose intestinal. Realizado tratamento conservador com antibioticoterapia endovenosa, repouso intestinal e nutrição parenteral total, com resolução do quadro abdominal.

Palavras-chave: lúpus eritematoso sistêmico, vasculite, pneumatose cistoide intestinal, trato gastrointestinal.

INTRODUÇÃO

A pneumatose intestinal (PI) é uma condição incomum, caracterizada por múltiplos cistos preenchidos por ar na mucosa, submucosa ou subserosa intestinal. A primeira descrição foi em 1730, mas Meyer foi o primeiro a usar o termo.1 Há várias condições associadas e entre as doenças do tecido conjuntivo, a mais comum é a esclerose sistêmica.1 Raramente ocorre no lúpus eritematoso sistêmico (LES), com somente 14 casos descritos até hoje na literatura. Descrevemos a seguir um raro caso de PI em um homem de 20 anos com diagnóstico recente de LES.

RELATO DE CASO

Paciente masculino, 20 anos, branco, previamente hígido, acometido por febre durante 10 dias, perda ponderal, cefaleia intensa e história de duas úlceras orais dolorosas.

Apresentava, na admissão, estado geral regular, desidratação e palidez. Estava orientado, lúcido e febril. Linfonodomegalia cervical, sem úlceras orais. Exame do tórax normal. Abdome plano, flácido, ruídos hidroaéreos presentes, com dor em hipocôndrio direito, fígado palpável 4 cm abaixo do rebordo costal direito e baço impalpável. Artrite de joelhos e cotovelos. Exame neurológico normal.

Laboratório: anemia (Hemoglobina: 11,0 g/dL); linfopenia (331/mm3); plaquetopenia (63.000/mm3); Coombs direto reagente; reticulócitos: 0.3%; provas de função hepática normais; VHS 44 mm/h; creatinina 1,4 mg/dL; ureia 64 mg/dL; parcial de urina com três cruzes de proteína, 10.000 leucócitos, 40.000 eritrócitos, > 10 cilindros hialinos; hemoculturas negativas.

Devido a febre e cefaleia, foi coletado liquor que revelou meningite asséptica - 11,6 leucócitos; 61% monomorfonucleares e 29% polimorfonucleares; proteína 72,9 mg/dL; glicose 43 mg/dL; VDRL, gram, cultura, Ziehl e sorologia para herpese micológico direto foram negativos.

As sorologias para hepatites B e C, HIV e toxoplasmose foram negativas; CMV e EBV: IgG positivo e IgM negativo.

FAN foi positivo com título maior que 1:640, padrão nuclear homogêneo; C3 e C4 reduzidos (52 e 8 mg/dL, respectivamente); perfil ENA não reagente e Anti-DNA > 1:640.

Ecocardiograma com fração de ejeção de 74% (> 58%), pequeno derrame pericárdico, sem vegetações. Diagnosticou-se LES (artrite, serosite, alterações hematológicas, nefrite, anti-DNA e FAN). Evoluiu com confusão mental, crises convulsivas tônico-clônicas generalizadas, dor abdominal e náuseas. Tomografia computadorizada (TC) contrastada de crânio revelou hipodensidades difusas nos hemisférios cerebrais, não sendo possível descartar vasculite. Pelo acometimento grave de Sistema Nervoso Central, iniciado pulsoterapia com metilprednisolona EV 1g ao dia por três dias, seguido de ciclofosfamida EV 1g no quarto dia.

Imediatamente após, houve recuperação neurológica completa, com piora do quadro abdominal, havendo parada da eliminação de gases e fezes. Apresentava abdome discretamente distendido, ruídos hidroaéreos ausentes, hipertimpanismo e dor difusa à palpação, com descompressão brusca dolorosa (sinal de Blumberg).

Radiografia de abdome agudo demonstrou níveis hidroaéreos e dilatação de delgado, com sinal de "empilhamento de moedas" (Figura 1). A ultrassonografia revelou rins aumentados e perda da diferenciação córtico-medular; moderada quantidade de líquido livre em cavidade peritoneal, edema e espessamento de alça de intestino delgado, com aumento da ecogenicidade da gordura mesentérica ao redor.


TC de abdome demonstrou, além dos achados da ultrassonografia, distensão líquida e espessamento de parede de alças de delgado, associados à PI (Figura 2). Pela TC, diagnosticouse provável vasculite de pequenos vasos da parede intestinal, justificando acometimento entérico difuso, edema de alças e PI.


Juntamente com a cirurgia, optado por tratamento conservador - antibioticoterapia endovenosa, repouso intestinal e nutrição parenteral total (NPT) - aguardando resposta à pulsoterapia. Por haver líquido livre na cavidade, realizado paracentese, descartando-se peritonite bacteriana.

Houve melhora da dor abdominal. Após 8 dias, voltou a evacuar. Quatro dias após, iniciou dieta oral com boa aceitação e suspensão da NPT. Nova TC de abdome realizada após 10 dias demonstrou melhora significativa da distensão de alças e edema de parede, com desaparecimento da PI.

O paciente recebeu alta com prednisona via oral (1 mg/ kg/d), além de plano deciclofosfamida EV em pulsos mensais. Durante seguimento ambulatorial não apresentou novas exacerbações do quadro intestinal.

DISCUSSÃO

A incidência de vasculite do trato gastrointestinal varia entre 0,2% a 53% no lúpus, com íntima correlação com atividade de doença. Há 14 casos descritos de PI associada ao LES na literatura. Em metade deles, foi comprovado vasculite subjacente.2,3,4,5,6

A vasculite geralmente acomete pequenos vasos da parede intestinal. A histologia demonstra atrofia e degeneração da média, necrose fibrinide, trombose e infiltrado linfocitário na lâmina própria e a imunohistoquímica mostra depósito de imunocomplexos, complemento e fibrinogênio.4,7 Supõe-se que a PI seja causada por aumento da pressão intraluminal, dano à mucosa e produção gasosa por bactérias na mucosa.1,6,8

O quadro clínico é variável. Pode se manifestar como desconforto abdominal inespecífico, diarréia, distensão abdominal, até abdome agudo com sangramento maciço. O uso de imunossupressores e corticoide em altas doses pode mascarar a presença de peritonite. Ausência de ruídos hidroaéreos e defesa abdominal são sinais tardios. Quase sempre a vasculite do trato gastrointestinal é acompanhada por atividade em outros órgãos, como pele, rins e sistema nervoso central.2,3,4,5

Geralmente a PI é assintomática, porém os cistos podem romper e causar pneumoperitônio.1,9,10

Parece haver associação entre leucopenia e trombocitopenia novas ou piora de leucopenia pré-existente com vasculite intestinal.4,7

A radiografia inicial geralmente é normal, mas pode evidenciar sinais de íleo paralítico, edema de alças e pneumoperitônio. Radiografias contrastadas podem demonstrar sinal de thumbprinting (edema ou hemorragia da submucosa, altamente específico de isquemia intestinal) e extravasamento de contraste na perfuração intestinal.4,5,7 A ecografia pode mostrar espessamento de parede e líquido livre.4,11

O exame "padrão ouro" é a TC. Os achados mais frequentes são edema de alça, espessamento de parede e realce de alças pelo contraste (sinal do alvo ou duplo halo, altamente sugestivo de vasculite). Também é sensível para detectar coleções de gás intramurais, como a PI.4,,8,9,10,11,12,13

A arteriografia não é útil, pois a doença geralmente acomete pequenos vasos. Endoscopia e colonoscopia servem para localizar úlceras e realizar biópsias.4

O diagnóstico diferencial é um desafio pelas múltiplas causas de dor abdominal no paciente lúpico.14

Quando não há evidência de perfuração intestinal, a isquemia é potencialmente reversível, sendo indicado tratamento conservador. Este inclui corticoide em altas doses (prednisona 1-2 mg/kg/dia) ou pulsoterapia com metilprednisolona 1 g ao dia, por 3 dias. Deve-se associar repouso intestinal (NPT). Procinéticos podem melhorar o peristaltismo e reduzir a pressão intraluminal. Antibioticoterapia endovenosa é usada como adjuvante na presença de PI; visa a reduzir supercrescimento bacteriano e produção de gás por bactérias anaeróbias.3,4,5,15 Na refratariedade, indica-se pulso de ciclofosfamida 0,75-1 g/m2.4,13

Há relatos de uso de oxigênio inalado ou câmara hiperbárica na tentativa de remover gás dos cistos e de octreotide para melhorar motilidade e reduzir supercrescimento bacteriano.10

Quando há indicação cirúrgica, o prognóstico é pior, que pode ser melhorado quando o procedimento é precoce.4,5,7 Suspeita e tratamento precoces são essenciais para uma boa evolução. Fatores associados à recorrência são espessura de parede intestinal > 9 mm na tomografia e menor dose cumulativa de imunossupressores.15

Embora vasculite de trato gastrointestinal e PI sejam manifestações raras no LES, o presente relato descreve uma possível associação entre os dois.

Recebido em 25/01/2010.

Aprovado, após revisão, em 26/08/2010.

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

Serviço de Reumatologia, Hospital de Clínicas, Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná - UFPR.

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  • Endereço para correspondência:

    Robson Luiz Dominoni
    Av João Gualberto nº 850 apto 107
    Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80030-000
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Out 2010

    Histórico

    • Aceito
      26 Ago 2010
    • Recebido
      25 Jan 2010
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