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Doença de Graves associada à artrite idiopática juvenil

Resumos

Os autores relatam o caso de uma menina de 10 anos de idade com diagnóstico de doença de Graves (DG), em tratamento com propiltiouracil, que desenvolveu uveíte e artrite poliarticular e cuja mãe também tem DG e lúpus discoide. São discutidos os diagnósticos diferenciais de artrite inflamatória que surge em uma criança com doença tireoidiana autoimune medicada com drogas antitireóideas.

doença de Graves; uveíte; doenças autoimunes; artrite; criança


The authors report the case of a 10-year-old girl with Graves' disease (GD), treated with propylthiouracil, who developed uveitis and polyarticular arthritis, and whose mother also had GD and discoid lupus. The differential diagnosis of inflammatory arthritis that appears in a child with autoimmune thyroid disease managed with antithyroid drugs is discussed.

Graves' disease; arthritis; uveitis; autoimmune diseases; child


RELATO DE CASO

Doença de Graves associada à artrite idiopática juvenil

Vanessa de Matos Santos Mendonça MarquesI; Sónia Cristina Dias de CarvalhoII; Ana Maria Magalhães Madeira de Paiva AntunesIII; Olinda Amélia Miranda Cerqueira Castro Pinho MarquesIV; Maria Helena Fernandes SilvaV; Maria José da Costa VieiraII

ILicenciatura em Medicina - Interna Complementar de Pediatria - Centro Hospitalar do Médio Ave - Famalicão

IILicenciatura em Medicina - Assistente Hospitalar de Pediatria e Reumatologia Pediátrica - Centro Hospitalar do Médio Ave - Famalicão

IIILicenciatura em Medicina - Assistente Hospitalar de Pediatria - Hospital de S. Marcos - Braga

IVLicenciatura em Medicina - Assistente Hospitalar de Oftalmologia - Hospital de S. Marcos - Braga

VLicenciatura em Medicina - Assistente Hospitalar de Endocrinologia - Hospital de S. Marcos - Braga

Correspondência para Correspondência para: Sónia Carvalho Serviço de Pediatria, C.H. Médio-Ave- Unidade de Famalicão 4761-917 V.N.Famalicão, Portugal Tel.: 00351 918822430 E-mail: sonia070673@yahoo.com.br

RESUMO

Os autores relatam o caso de uma menina de 10 anos de idade com diagnóstico de doença de Graves (DG), em tratamento com propiltiouracil, que desenvolveu uveíte e artrite poliarticular e cuja mãe também tem DG e lúpus discoide. São discutidos os diagnósticos diferenciais de artrite inflamatória que surge em uma criança com doença tireoidiana autoimune medicada com drogas antitireóideas.

Palavras-chave: doença de Graves, uveíte, doenças autoimunes, artrite, criança.

INTRODUÇÃO

A doença de Graves (DG) é uma doença autoimune causada por autoanticorpos estimulantes da tireoide, que cursa com sintomas típicos de hipertireoidismo (labilidade emocional, fadiga, tremor, palpitações) e manifestações extratireóideas incluindo oftalmopatia, mixedema e acropaquia. Pode estar associada com outras doenças autoimunes, em particular lúpus eritematoso sistêmico (LES) e artrite reumatoide (AR).1 Embora raramente, sabe-se que drogas antitireóideas, em especial propiltiouracil (PTU), podem induzir complicações autoimunes, tais como artrite e vasculite.2

Relatamos o caso de uma criança com DG, que desenvolveu artrite idiopática juvenil (AIJ), e discutimos causas potenciais de artrite em uma criança tratada com PTU.

RELATO DE CASO

Uma menina de 10 anos, primeira filha de pais não consanguíneos, apresentou DG aos três anos de idade, tendo sido desde então tratada com PTU (25 mg/dia). Seus antecedentes familiares não apresentavam alterações, exceto por sua mãe também portadora de DG.

Aos seis anos de idade, foi diagnosticada com coriorretinite à esquerda, de etiologia desconhecida e tratada com corticosteroides endovenosos.

Aos sete anos de idade, foi internada no departamento de Pediatria com dor e edema no joelho esquerdo de três semanas de duração, com posterior envolvimento do joelho contralateral e articulações tibiotarsais, que impediam a deambulação. Não houve relato de febre, rash, nem queixas respiratórias ou gastrointestinais.

O exame clínico revelou sinais inflamatórios simétricos nos joelhos, tornozelos, articulações metatarsofalângicas e punhos. Houve também edema pré-tibial, sem dermopatia, uveíte anterior esquerda com hiperemia conjuntival, e exoftalmia bilateral com retração palpebral.

Os exames de laboratório revelaram: anemia normocrômica microcítica (hemoglobina: 9,5 g/dL); trombocitose (460.000 plaquetas/uL); elevada velocidade de hemossedimentação (VHS) Westergreen (101 mm/h); títulos negativos para os anticorpos antinuclear (ANA), antimieloperoxidase (ANCA-MPO), anti-DNA de dupla hélice (anti- dsDNA) e fator reumatoide (FR); elevada gamaglobulina; e função tireóidea normal.

Melhora clínica da artrite com tratamento com deflazacort (1 mg/kg/d) e ibuprofeno (40 mg/kg/d) e resolução da uveíte (tratada com ciclopentolato e corticosteroides tópicos) foram observadas após três meses. Houve normalização da VHS, do nível de hemoglobina e da contagem de plaquetas. Os anticorpos ANCA e anti-dsDNA permaneceram negativos.

Redução gradual dos corticosteroides foi iniciada até um quarto da dose inicial em dias alternados, quando se observou recidiva da artrite nos dois joelhos e articulações tibiotarsais. Nessa ocasião, a VHS era de 84 mm/h e, pela primeira vez, o nível de ANCA-MPO foi positivo, com concomitante negatividade para os anticorpos FR, ANA e anti-dsDNA. Iniciou-se terapia com metotrexato (15 mg/m2/semana), obtendo-se melhora clínica acentuada e sustentada.

Atualmente, aos dez anos de idade, a menina permanece clinicamente assintomática em uso de metotrexato, e, a título de curiosidade, sua mãe foi diagnosticada com lúpus discoide.

DISCUSSÃO

O aparecimento de poliartrite em uma criança com DG tratada com PTU apresenta algumas dificuldades no diagnóstico diferencial. Tais dificuldades devem-se ao fato de que artrite associada com ANCA-MPO positivo pode ser induzida pelo próprio PTU.3,4 Entretanto, a remissão dos sintomas, a ausência de outras manifestações de vasculite ou positividade para ANCA sem a suspensão do PTU não corroboram tal hipótese. Artrite associada com doença inflamatória intestinal é outra possibilidade, mas não houve manifestações gastrointestinais nem mucocutâneas em quatro anos de seguimento, tornando essa teoria menos provável. Outro aspecto pertinente e controverso é o fato de que o hipertireoidismo também pode induzir por si só a formação de ANCA.3-5

A artropatia associada a DG caracteriza-se por tumefação de partes moles e alterações periosteais dos dedos das mãos, dos pés e extremidades inferiores causando baqueteamento (Figuras 1 e 2). Em geral, ocorre até 30 anos após o diagnóstico inicial de DG, sendo mais comum em pacientes submetidos à ablação com iodo radioativo.6 Nossa paciente não tinha nenhum sinal clínico nem radiológico de acropaquia tireóidea.



Acreditamos que AIJ seja a hipótese mais provável e que a coriorretinite possa ter sido sua primeira manifestação, confirmada no segundo episódio de uveíte. Ainda reforçando essa ideia está o fato de que a doença tireóidea autoimune parece estar associada a outras doenças imunológicas, incluindo AR de início na idade adulta. Elas compartilham a mesma fisiopatologia, que inclui perda da autotolerância, destruição de tecido imune causada por vários fatores, e ocorrência simultânea na família, sugerindo uma base genética comum ou fatores ambientais. O polimorfismo de nucleotídeo único (SNP) no gene PTPN22 da proteína tirosina fosfatase foi recentemente associado com um aumento do risco de desenvolver AR, assim como de outros distúrbios autoimunes, como as doenças tireóideas autoimunes e LES,7,8 mas isso não foi testado na nossa paciente.

Outros SNPs dentro do gene IL2RA/CD25 previamente associados com diabetes mellitus tipo 1, DG e esclerose múltipla foram recentemente associados à AIJ.9,10

Um relato de AR e DG concomitantes em uma mulher adulta e de DG em sua irmã foi publicado por Bourikas et al. 11 Esses autores discutem as causas de artrite inflamatória e o caso ilustra a predisposição genética para autoimunidade.

Com o presente caso enfatizamos as dificuldades encontradas durante o diagnóstico diferencial de uma artrite inflamatória em uma criança com DG.

Recebido em 17/1/2010.

Aprovado após revisão em 14/1/2011.

Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse.

Centro Hospitalar do Médio Ave - Unidade de Famalicão - Hospital de S. Marcos - Braga, Portugal.

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  • Correspondência para:

    Sónia Carvalho
    Serviço de Pediatria, C.H. Médio-Ave- Unidade de Famalicão
    4761-917 V.N.Famalicão, Portugal
    Tel.: 00351 918822430
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Aceito
      14 Jan 2011
    • Recebido
      17 Jan 2010
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