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Prevalência e diversidade genética do torque teno vírus em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico em serviço de referência no Mato Grosso do Sul

Resumos

Estudos recentes sobre o torque teno vírus (TTV), gênero Anellovirus, permitiram construir a hipótese de que esse vírus pode ser um desencadeante ou tenha algum papel patogênico nas doenças reumáticas autoimunes. OBJETIVOS: Verificar a frequência da infecção pelo TTV em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES), e sua diversidade gênica, a existência de correlação entre a infecção pelo TTV e as manifestações clínicas do LES, sua evolução clínica e o perfil sorológico. PACIENTES E MÉTODOS: Foram obtidas 46 amostras de soro de pacientes com LES atendidos no Ambulatório de Reumatologia do Hospital Universitário de Campo Grande (NHU/FAMED/UFMS). Para os controles, utilizaram-se 46 amostras de soro de doadores de sangue. O DNA viral foi extraído das amostras utilizando o QIAamp DNA Blood Mini Kit (QIAGEN, Hilden, Alemanha), e amplificado utilizando a técnica de nested PCR. RESULTADOS: Foi encontrada positividade para o TTV em 17 (37%) dos pacientes lúpicos, e em apenas sete (15,2%) dos controles (teste z, P = 0,03). Não houve correlação entre a infecção pelo TTV, as manifestações clínicas, o perfil sorológico e a evolução clínica dos pacientes avaliados neste estudo. CONCLUSÃO: A presença do TTV nos pacientes com LES necessita ser mais bem compreendida a partir deste estudo inicial

Anellovirus; doenças autoimunes; lúpus eritematoso sistêmico; torque teno vírus


Recent studies on the torque teno virus (TTV), genus Anellovirus, have allowed formulating the hypothesis that TTV may trigger autoimmune rheumatic diseases or have some pathogenic role in them. OBJECTIVES: To determine the frequency of TTV infection in patients with systemic lupus erythematosus (SLE), the genetic diversity of TTV, the correlation between TTV infection and SLE clinical manifestations, and SLE clinical course and serological profile. PATIENTS AND METHODS:Serum samples were obtained from 46 SLE patients treated at the University-Affiliated Hospital of Campo Grande (NHU/FAMED/UFMS), Brazil. For controls, serum samples were obtained from 46 healthy volunteer blood donors. Viral DNA was extracted from samples using the QIAamp DNA Blood Mini Kit (QIAGEN, Hilden, Germany) and amplified using nested PCR. RESULTS: Positivity for TTV was found in 17 (37%) of SLE patients and in only seven (15.2%) of the controls (z test, P = 0.03). There was no correlation between TTV infection, SLE clinical manifestations, SLE clinical course, and the serological profile of the patients evaluated. CONCLUSION: Further studies on the presence of TTV in SLE patients are required

Anellovirus; autoimmune diseases; systemic lupus erythematosus; torque teno virus


ARTIGO ORIGINAL

Prevalência e diversidade genética do torque teno vírus em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico em serviço de referência no Mato Grosso do Sul

Márcio Reis da CostaI; Izaias Pereira da CostaII; Sylvie DevalleIII; Ana Rita Coimbra Motta de CastroIV; Solange Zacalusni FreitasV

IProfessor-Auxiliar da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS; Mestre em Ciências da Saúde pela UFMS

IIProfessor-Associado III do Departamento de Clínica Médica da UFMS; Professor de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFMS e de Doenças Infecciosas e Parasitárias; Coordenador do Programa de Residência Médica em Reumatologia do Hospital Universitário da UFMS; Doutor em Medicina pela Universidade de São Paulo - USP

IIIDoutora em Biologia Parasitária pela Fundação Oswaldo Cruz - FioCruz; Pós-Doutoranda pelo Institute Ludwing for Cancer Research

IVProfessora-Adjunta da UFMS; Doutora em Biologia Parasitária pela FioCruz

VFarmacêutica Bioquímica da UFMS; Mestre em Saúde Coletiva pela UFMS

Correspondência para Correspondência para: Márcio Reis da Costa Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Avenida Senador Filinto Müller s/nº - Ipiranga CEP: 79056-010. Campo Grande, MS, Brasil E-mail: marciocostamed@hotmail.com

RESUMO

Estudos recentes sobre o torque teno vírus (TTV), gênero Anellovirus, permitiram construir a hipótese de que esse vírus pode ser um desencadeante ou tenha algum papel patogênico nas doenças reumáticas autoimunes.

OBJETIVOS: Verificar a frequência da infecção pelo TTV em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES), e sua diversidade gênica, a existência de correlação entre a infecção pelo TTV e as manifestações clínicas do LES, sua evolução clínica e o perfil sorológico.

PACIENTES E MÉTODOS: Foram obtidas 46 amostras de soro de pacientes com LES atendidos no Ambulatório de Reumatologia do Hospital Universitário de Campo Grande (NHU/FAMED/UFMS). Para os controles, utilizaram-se 46 amostras de soro de doadores de sangue. O DNA viral foi extraído das amostras utilizando o QIAamp DNA Blood Mini Kit (QIAGEN, Hilden, Alemanha), e amplificado utilizando a técnica de nested PCR.

RESULTADOS: Foi encontrada positividade para o TTV em 17 (37%) dos pacientes lúpicos, e em apenas sete (15,2%) dos controles (teste z, P = 0,03). Não houve correlação entre a infecção pelo TTV, as manifestações clínicas, o perfil sorológico e a evolução clínica dos pacientes avaliados neste estudo.

CONCLUSÃO: A presença do TTV nos pacientes com LES necessita ser mais bem compreendida a partir deste estudo inicial.

Palavras-chave:Anellovirus, doenças autoimunes, lúpus eritematoso sistêmico, torque teno vírus.

INTRODUÇÃO

Em 1997, Nishizawa et al.1 isolaram um novo vírus a partir de amostras de soro de um paciente com hepatite pós-transfusional de etiologia desconhecida. Esse vírus foi inicialmente denominado vírus TT (em inglês, TTV). Mais tarde o vírus seria chamado de vírus torque teno, conservando as iniciais TTV.2,3

A partícula viral do TTV não possui envelope lipídico externo, e o genoma é formado por uma fita simples de DNA circular com aproximadamente 3.800 pares de bases.4 No entanto, ao contrário de outros DNA vírus, o TTV exibe alta heterogeneidade genética.5 Devido a essa característica, são conhecidos mais de 30 genótipos de TTV, classificados em cinco grupos genômicos maiores.6

Embora o TTV tenha sido inicialmente associado à doença hepática e à alta mortalidade entre pacientes com hepatite aguda pelo vírus da hepatite B (VHB), essa associação não foi confirmada por estudos mais recentes.5

Estudos epidemiológicos têm evidenciado a presença do TTV em várias condições patológicas, tais como doença de Hodgkin,7 anemia aplástica,8 fibrose pulmonar idiopática,9 doença pulmonar aguda,10 pênfigo bolhoso,11 piora do prognóstico do câncer de laringe12 e redução da sobrevida em pacientes portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV).13 Contudo, esses estudos não conseguiram caracterizar o real significado da presença do TTV nessas enfermidades.14

Atualmente, tem-se discutido o papel das infecções virais como fator desencadeador das doenças autoimunes.15 Conhecimentos recentes da biologia do TTV permitiram construir a hipótese de que ele possa ser desencadeador de doenças reumáticas autoimunes.14,16 Entretanto, existem poucos trabalhos relacionando infecção pelo TTV com tais doenças reumatológicas.

Em 2005, Gergely et al.17 observaram uma frequência de infecção pelo TTV em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES) de 56,87%, significativamente mais alta que a frequência nos controles saudáveis, de 33,16% (P < 0,001). Foi observado, ainda, que parentes de primeiro grau de pacientes lúpicos apresentavam frequência de infecção (51,28%) significativamente menor que a de seus respectivos parentes (66,11%; P = 0,0184), mas significativamente maior que a dos controles saudáveis sem grau de parentesco (33,16%; P = 0,0026). Especulou-se, então, que fatores genéticos para a suscetibilidade para o LES poderiam, ainda, influenciar na infecção pelo TTV.17

O presente trabalho tem como objetivos verificar a frequência da infecção pelo TTV e sua diversidade gênica em pacientes com LES, assim como verificar se ocorre correlação entre a presença do vírus, as manifestações clínicas e o perfil sorológico de autoanticorpos antinucleares apresentados pelos pacientes lúpicos.

PACIENTES E MÉTODOS

Foram utilizadas neste trabalho 46 amostras de soro obtidas aleatoriamente de pacientes portadores de LES, entre 14 e 51 anos, atendidos no Ambulatório de Reumatologia do Núcleo do Hospital Universitário de Campo Grande da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (NHU/FAMED/UFMS). Para os controles foram utilizadas 46 amostras de soro, obtidas de doadores de sangue saudáveis do Hemonúcleo do NHU/FAMED/UFMS.

Todos os pacientes selecionados deveriam apresentar pelo menos quatro dos 11 critérios de classificação revisados para LES do American College of Rheumatology,18 concordar em participar da pesquisa após explicação e entendimento da mesma, e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Nenhum paciente poderia apresentar outras doenças infecciosas associadas, neoplasias malignas ou outras doenças autoimunes.

A partir de seus prontuários médicos arquivados no Serviço de Arquivamento Médico do NHU/FAMED/UFMS, foram pesquisados os seguintes dados dos pacientes selecionados: gênero, idade, manifestações clínicas do LES, tempo de doença, presença de fator antinúcleo (FAN, técnica de imunofluorescência indireta, substrato células HEp2) e presença dos autoanticorpos anti-DNA (imunofluorescência indireta, substrato Crithidia luciliae), anti-Ro, anti-La, anti-Sm, anti-RNP (técnica de ELISA), além de tratamentos prévio e atual.

Para a análise dos resultados, o tratamento dos pacientes foi considerado como baixa imunossupressão quando uso de cloroquina e/ou prednisona na dose de até 20 mg/dia. O uso de prednisona com dose acima de 20 mg/dia e/ou azatioprina e/ou metotrexato e/ou ciclofosfamida e/ou ciclosporina foi considerado como alta imunossupressão.

Para a extração do DNA viral a partir do soro foi utilizado o QIAamp DNA Blood Mini Kit (QIAGEN, Hilden, Alemanha), de acordo com as instruções do fabricante. O DNA viral extraído foi então amplificado utilizando-se a técnica de reação de cadeia de polimerase nested (nested PCR), descrita por Devalle e Niel.19 Todos os oligonucleotídeos utilizados pela técnica de PCR (T1S e T2S, senso; T1A, T2G1A, T2G2A, T2G3A, T2G4A e T2G5A, antissenso) foram descritos por Devalle e Niel em 2004.6

A relação entre TTV e LES foi avaliada por meio do teste exato de Fisher. O mesmo teste foi utilizado para avaliar a relação entre o LES e os genogrupos do TTV, entre TTV e os sinais clínicos, entre TTV e os resultados observados na sorologia, e entre TTV e o esquema de tratamento utilizado. A comparação do percentual de indivíduos com TTV positivo entre o grupo-controle e aquele de indivíduos com LES foi realizada por meio do teste z. Já a comparação entre indivíduos com TTV positivo e com TTV negativo em relação ao tempo de doença (LES) foi realizada por meio do teste t de Student.20 A análise estatística foi realizada utilizando-se os softwares SigmaStat, versão 2.0, e SPSS, versão 13.0, considerando diferenças e relações significativas quando P < 0,05.

Este trabalho foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da UFMS.

RESULTADOS

A idade média dos indivíduos com LES foi de 31,8 ±9,4 anos (média ±desvio-padrão). Com relação ao gênero, 44 (95,7%) eram feminino. O tempo médio de doença foi de 6,0 ±4,1 anos. Entre os controles, a idade média foi de 38,8 ±11,5 anos, e 45 (97,8%) pacientes eram do gênero feminino (Tabela 1).

Entre os indivíduos portadores de LES, 17 (37,0%) apresentavam TTV positivo e 29 (63,0%) apresentavam TTV negativo. Já entre os indivíduos do grupo-controle, apenas sete (15,2%) apresentavam TTV positivo, enquanto 39 (84,8%)apresentavam TTV negativo. Houve relação significativa entre LES e presença do TTV (teste exato de Fisher, P = 0,02), com percentual de indivíduos com LES e TTV positivo significativamente maior que o observado para aqueles do grupo-controle (teste z, P = 0,03) (Tabela 2).

Entre os indivíduos com LES e TTV positivo (n =17), sete (41,2%) apresentavam TTV do genogrupo 1, nenhum (0,0%) apresentava TTV do genogrupo 2, sete (41,2%) apresentavam TTV do 3, outros sete (41,2%) apresentavam TTV do 4 e, finalmente, outros sete (41,2%) apresentavam TTV do genogrupo 5 (Tabela 2).

Com relação às coinfecções entre vários genogrupos, nove (52,9%) indivíduos apresentavam TTV de apenas um genogrupo, enquanto os oito restantes (47,1%) apresentavam TTV de mais de um genogrupo. Especificamente, seis indivíduos (35,3%) apresentavam TTV de dois genogrupos, um (5,9%) apresentava TTV positivo de três genogrupos, um (5,9%)apresentava TTV positivo de quatro genogrupos e nenhum indivíduo apresentava TTV positivo dos cinco genogrupos (Tabela 2). Não houve relação entre ter ou não LES e a quantidade de genogrupos TTV positivos observados (teste exato de Fisher, P = 0,19).

Os sinais clínicos pesquisados entre os indivíduos lúpicos estão apresentados na Tabela 3. Não houve relação entre TTV e cada um dos sinais clínicos avaliados neste estudo (teste exato de Fisher, P variando entre 0,07 e 1,00).

Os dados da sorologia estão apresentados na Tabela 4. Não houve relação entre TTV e FAN (teste exato de Fisher, P = 0,23). Da mesma forma, não houve relação entre TTV e os autoanticorpos avaliados neste estudo (teste exato de Fisher, valor de P variando entre 0,12 e 1,00).

Com relação ao tratamento para o LES, entre os indivíduos com a doença e que apresentavam TTV positivo (n =17), três (17,6%) estavam sendo tratados com imunossupressão baixa e 14 (82,4%) estavam sendo submetidos à imunossupressão alta. Já entre os que apresentavam TTV negativo (n =29), 10 (34,5%) estavam sendo tratados com imunossupressão baixa e 19 (65,5%) com imunossupressão alta. Não houve relação entre o esquema de tratamento utilizado e o TTV (teste exato de Fisher, P = 0,32) (Tabela 5).

DISCUSSÃO

Encontramos prevalência de infecção pelo TTV mais baixa que a relatada na literatura,21,22 seja nos pacientes lúpicos (37,0%, n = 17), seja nos controles (15,2%, n = 7).

Para a detecção do DNA viral, são críticos os métodos de extração do DNA e a região do genoma viral reconhecido pelos oligonucleotídeos iniciadores utilizados na técnica de PCR.23

De Paula et al.,24 ao compararem quatro métodos diferentes de extração de RNA do vírus da hepatite A (VHA) em amostras de soro e fezes, concluíram que os métodos que utilizam fenol-clorofórmio são mais eficientes para extração de RNA viral em amostras de soro, enquanto os métodos que utilizam a guanidina são mais eficientes em amostras fecais. Embora o TTV seja um DNA vírus, essa observação talvez seja válida e possa explicar a baixa prevalência encontrada, uma vez que o QIAamp DNA Blood Mini Kit utilizado neste trabalho não contém fenol-clorofórmio, mas utiliza guanidina.

Niel et al.,25 utilizando método de extração de DNA à base de fenol-clorofórmio, encontraram prevalência de infecção pelo TTV em doadores de sangue normais de 62% (n =45), e 71% (n =37) em pacientes com hepatite não A-C. Devalle et al.,6 utilizando os mesmos oligonucleotídeos dirigidos à região UTR utilizados neste estudo e com método de extração de DNA à base de fenol-clorofórmio, encontraram prevalência de 46% (n =11) em doadores de sangue.

Encontrou-se neste trabalho uma associação estatisticamente significativa entre LES e infecção pelo TTV. Dessa forma, o TTV, ao infectar indivíduos suscetíveis, pode ser um fator desencadeante para o desenvolvimento do LES, e vários poderiam ser os meios pelos quais o vírus levaria à doença.

Shirai et al.26 relataram que vírus com tropismo por linfócitos, como o TTV, têm potencial para ativação policlonal de células B e T, inclusive linfócitos autorreativos. Assim, o TTV levaria à proliferação de células B, causando aumento da produção de anticorpos, resultando em acúmulo de complexos imunes circulantes que poderiam causar dano ao hospedeiro.27 Ou, ainda, poderia estimular a expansão de células T autorreativas que já estavam presentes dentro do próprio organismo do hospedeiro, mas devido ao seu pequeno número eram incapazes de causar uma doença autoimune.28,29

Ao infectar as células do hospedeiro, muitos vírus, pela ação de suas proteases, alteram o metabolismo das mesmas.30 Após infectar células do sistema imunológico, como macrófagos e células T, o TTV poderia interferir como o processamento e a apresentação de antígenos, gerando novos epítopos, que serviriam de desencadeantes para a autoimunidade. Poderia ainda, semelhante ao que ocorre com o citomegalovírus, interferir com a expressão de moléculas de MHC classe I.31 Dessa forma, o TTV estimularia a indução de diversas citocinas que podem desviar as células T regulatórias para a suscetibilidade ao LES.

Em alguns isolados de TTV foi observada a presença de uma proteína putativa com potencial apoptótico, denominada proteína indutora de apoptose derivada do TTV (em inglês, TAIP). Essa proteína apresentou capacidade de induzir apoptose em linhagens de células humanas cancerígenas, como células de carcinoma hepatocelular, osteossarcoma e carcinoma pulmonar de pequenas células.32,33 Anormalidades na apoptose poderiam levar à perda de linfócitos regulatórios essenciais para o controle da autoimunidade. Ou, ainda, a produção excessiva de restos apoptóticos, ou mesmo a produção de restos apoptóticos qualitativamente diferentes devido à apoptose anormal, associadas à depuração defeituosa geneticamente mediada ou induzida pelo vírus, poderiam estimular células B autorreativas via receptores toll-like (TLR).34 Em estudo publicado em 2009, Rocchi et al.35 observaram que o DNA do TTV poderia induzir células esplênicas de camundongo a produzir e secretar IFγ, IL-6 e IL-10, e que este efeito seria mediado via TLR 9.

Além disso, o mimetismo molecular entre antígenos do TTV e autoantígenos poderia estimular linfócitos autorreativos, sinalizando para o desenvolvimento de uma resposta de autoimunidade.36

Gergely et al.17 observaram a resposta cruzada entre o autoantígeno nuclear HRES-1/p28, peptídeos específicos do TTV e o autoantígeno lúpico 70kU1 snRNP, mas o significado clínico dessa resposta ainda não foi estabelecido.

A associação encontrada entre a infecção pelo TTV e o LES poderia, no entanto, ser decorrente da imunossupressão provocada pelo seu tratamento, à base de corticosteroides e imunossupressores, tais como azatioprina e ciclofosfamida. Nesse caso, deveríamos considerar a infecção pelo TTV como oportunista. A relação entre a infecção pelo TTV e o nível de imunossupressão dos pacientes foi avaliada, e não houve diferença estatística significativa entre os indivíduos que apresentavam alta e baixa imunossupressão. Apesar de este dado sugerir não haver relação entre a imunossupressão e a infecção pelo TTV, ele deve ser considerado com cautela, pois um dos grupos (TTV positivo submetido à imunossupressão baixa) apresentou número muito baixo de indivíduos (n =3), o que dificulta a avaliação estatística.

Niel et al.37 sugeriram ser comum no Brasil a coinfecção entre vários genótipos de TTV. Apesar disso, em nosso trabalho a maioria dos indivíduos infectados pelo TTV, seja do grupo-controle, seja do grupo com LES, apresentou infecção por apenas um genogrupo (respectivamente, 85,1% e 52,9%). Não houve diferença estatística entre esses dados.

Entre os pacientes lúpicos, todos os genogrupos foram encontrados, exceto os genogrupos 2 e 4, que são os menos comuns do TTV no Brasil.6

Neste trabalho, as manifestações clínicas mais prevalentes do LES (artrite, fotossensibilidade, eritema malar, alterações hematológicas, úlceras orais ou nasais e alterações renais) foram semelhantes ao que foi observado por Bezerra et al.38 Não houve relação estatisticamente significativa entre TTV e cada um dos sinais clínicos avaliados neste estudo. Porém, as manifestações neurológicas apresentaram frequência maior nos indivíduos TTV positivos, enquanto as outras manifestações, principalmente as renais, predominaram entre os indivíduos TTV negativos. Em 2005, Gergely et al.17 também não conseguiram associar a detecção do DNA do TTV a alterações sistêmicas do LES ou aos escores SLEDAI.

Soroprevalências elevadas do TTV têm sido observadas em várias regiões do mundo, mesmo em pessoas aparentemente saudáveis,22 e, como atualmente todo o potencial patogênico do TTV baseia-se em levantamentos epidemiológicos, alguns pesquisadores têm inclusive duvidado deste potencial.14 Portanto, não existem ainda evidências para se indicar tratamento para a infecção pelo TTV; também ainda não há evidências de que a erradicação do TTV no organismo possa alterar o curso de alguma doença em evolução.

Porém, depreende-se deste estudo, e do material que se encontra nos artigos científicos a respeito, que o TTV poderia utilizar mais de um mecanismo para desenvolver a doença autoimune, mas que ainda são necessários outros trabalhos a fim de determinar o real potencial patogênico do TTV dentro do sistema imune, sua capacidade de induzir uma resposta autoimune alterada, modificar o curso clínico ou desencadear o LES em indivíduos geneticamente predispostos.

Recebido em 10/04/2011.

Aprovado, após revisão, em 02/11/2011.

Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.

Comitê de Ética: CEP/UFMS nº 900.

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS.

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  • Correspondência para:

    Márcio Reis da Costa
    Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
    Avenida Senador Filinto Müller s/nº - Ipiranga
    CEP: 79056-010. Campo Grande, MS, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Fev 2012

    Histórico

    • Recebido
      10 Abr 2011
    • Aceito
      02 Nov 2011
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