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Ascite por peritonite lúpica: uma forma rara de início do lúpus eritematoso sistêmico

Resumos

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) frequentemente cursa com serosites. Cerca de 16% dos pacientes lúpicos apresentam acometimento de pleura e pericárdio. O acometimento peritoneal, no entanto, é especialmente raro, ocorrendo clinicamente em pequeno grupo de pacientes. O presente estudo trata do caso de uma paciente de 47 anos com diagnóstico de lúpus discoide que evoluiu com manifestações sistêmicas da doença, caracterizadas por distensão e dor abdominal significativas, astenia, emagrecimento, sinais propedêuticos de ascite e diarreia aguda baixa e não invasiva. Foi realizada exaustiva investigação diagnóstica por meio de exames laboratoriais, de imagem, colonoscopia e análise do líquido ascítico. A investigação, além de descartar a possibilidade de etiologia infecciosa, neoplásica e hemodinâmica, também permitiu a confirmação de LES. Dessa forma, a hipótese de peritonite lúpica com ascite tornou-se viável. Foi introduzido tratamento com prednisona e cloroquina, com melhora substancial do quadro

lúpus eritematoso sistêmico; serosite; ascite; colite


Serositis is commonly seen in systemic lupus erythematosus (SLE). Approximately 16% of patients with SLE have pleural or pericardial involvement. However, peritoneal involvement is extremely rare, and clinically seen in a small group of patients. This is the case report of a 47-year old female with discoid lupus who evolved with systemic manifestations of the disease, characterized by significant abdominal distension and pain, asthenia, weight loss, signs of ascites, and acute non-invasive diarrhea. Exhaustive diagnostic investigation was performed and included laboratory and imaging tests, colonoscopy, and analysis of the ascitic fluid. Besides ruling out the possibility of an infectious, neoplastic, and hemodynamic etiology, the investigation also allowed the confirmation of SLE. Thus, the hypothesis of lupus peritonitis with ascites became viable. The patient was treated with prednisone and chloroquine, with substantial improvement of her condition

systemic lupus erythematosus; serositis; ascites; colitis


RELATO DE CASO

Ascite por peritonite lúpica: uma forma rara de início do lúpus eritematoso sistêmico

Henrique Pott JúniorI; André Amate NetoI; Maria Aparecida Barone TeixeiraII; José Roberto ProvenzaIII

IPhysician, Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas

IIFull Professor of Internal Medicine; Coordinator of the Clinicopathologic Correlation Study Group (GECAC), PUC-Campinas

IIIFull Professor of Rheumatology, PUC-Campinas

Correspondência para Correspondência para: Dr. Henrique Pott Junior Av. Onze de Junho, 730/124 - Vila Clementino CEP: 04041-002. São Paulo, SP, Brasil E-mail: henriquepott@gmail.com

RESUMO

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) frequentemente cursa com serosites. Cerca de 16% dos pacientes lúpicos apresentam acometimento de pleura e pericárdio. O acometimento peritoneal, no entanto, é especialmente raro, ocorrendo clinicamente em pequeno grupo de pacientes. O presente estudo trata do caso de uma paciente de 47 anos com diagnóstico de lúpus discoide que evoluiu com manifestações sistêmicas da doença, caracterizadas por distensão e dor abdominal significativas, astenia, emagrecimento, sinais propedêuticos de ascite e diarreia aguda baixa e não invasiva. Foi realizada exaustiva investigação diagnóstica por meio de exames laboratoriais, de imagem, colonoscopia e análise do líquido ascítico. A investigação, além de descartar a possibilidade de etiologia infecciosa, neoplásica e hemodinâmica, também permitiu a confirmação de LES. Dessa forma, a hipótese de peritonite lúpica com ascite tornou-se viável. Foi introduzido tratamento com prednisona e cloroquina, com melhora substancial do quadro.

Palavras-chave: lúpus eritematoso sistêmico, serosite, ascite, colite.

INTRODUÇÃO

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença autoimune multissistêmica crônica, cuja característica mais marcante, dos pontos de vista clínico e patológico, é o desenvolvimento de reações inflamatórias em vários tecidos e órgãos.1,2

A doença evolui com períodos de exacerbação do processo inflamatório, intercalados por períodos de relativa melhora ou mesmo inatividade, comprometendo principalmente pele, articulações, serosas, glomérulos e sistema nervoso central. A serosite é uma característica comum dentre a ampla gama de manifestações em pacientes com LES. Cerca de 16% dos indivíduos com LES apresenta pleurite e/ou pericardite, mas raramente o derrame causa repercussões ventilatórias ou circulatórias. No entanto, serosite peritoneal apresentando ascite (chamada peritonite lúpica) é manifestação especialmente rara.3

Este estudo trata do caso de paciente com diagnóstico inicial de lúpus discoide que evoluiu com manifestações sistêmicas sob a forma de serosite crônica peritoneal e colite.

RELATO DE CASO

Mulher de 47 anos, branca, com queixa de aumento progressivo de volume abdominal, associado a astenia e dor abdominal em peso e difusa, com evolução de dois meses, mas com piora acentuada há uma semana. Negava qualquer padrão de irradiação da dor, associação com alimentação, disúria ou febre. Referia, ainda, perda ponderal de aproximadamente 7 kg nos últimos três meses, e diarreia aquosa em pequena quantidade, sem restos alimentares, sem muco, pus ou sangue há uma semana. À anamnese dirigida, relatava lúpus discoide diagnosticado há um ano sob tratamento com cloroquina, mas negava exacerbações recentes da doença de base. A paciente negava etilismo e uso de drogas ilícitas, e referia tabagismo de meio maço de cigarros por dia durante 30 anos.

Ao exame físico, apresentava-se em regular estado geral, hipocorada, acianótica, anictérica, febril (37,5 ºC), eupneica e emagrecida, sem alterações ao exame cardiovascular e respiratório. O abdome mostrava-se globoso, distendido e difusamente doloroso, sem massas palpáveis ou circulação colateral. Os sinais propedêuticos de ascite estavam presentes. Fígado e baço não palpáveis. O toque retal não evidenciou fezes, sangue ou massa na ampola retal. Nos membros inferiores havia edema discreto, bilateral, frio, depressível e indolor. Sistema osteoarticular sem alteracões. Na pele havia manchas ritematovioláceas de aspecto rendilhado em tronco e dorso compatíveis com livedo reticular. Havia também eritema malar e lesões discoides difusas em tronco e membros.

A paciente não havia realizado exames laboratoriais prévios. Os exames laboratoriais iniciais na internação evidenciaram FAN 1:160 pontilhado fino, anti-Ro reagente, crioglobulinas e complemento sérico normais, anti-La, anti-DNA, anticardiolipina, anticoagulante lúpico, anti-SM, anti-RNP, anti-SCL 70 e anticentrômero não reagentes. Sorologias para HIV, hepatites virais e VDRL negativas. ALT, AST, GGT, LDH normais. Apresentava hemograma com anemia normocítica e normocrômica com Coombs direto negativo. Leucograma e plaquetas normais. Ureia normal com discreta elevação da creatinina (1,86 mg/dL). Proteinúria de 24 horas: 800 mg/24h; albumina sérica: 3,68-2,54-2,20 g/dL. Exame de fezes a fresco e coprocultura sem alterações. Exame de urina 1:25.000 hemácias e proteinúria +++.

A punção do líquido ascítico revelou contagem global de 135 leucócitos com diferencial de 94% de linfócitos, 3% de neutrófilos e 3% de eosinófilos, células mesoteliais frequentes, LDH de 136 U/L e amilase de 9 U/L. Pesquisa de células LE, bacterioscopia, BK e citologia oncótica foram negativos. Gradiente de Albumina Soro-Ascite (GASA) de 0,85.

Nos exames de imagem, a radiografia simples de tórax não mostrou alterações. A ultrassonografia de abdome revelou apenas ascite moderada sem qualquer outra alteração, e a ultrassonografia transvaginal não evidenciou alterações em útero e anexos. A tomografia computadorizada do abdome confirmou os achados ultrassonográficos e evidenciou espessamento discreto da parede colônica.

A esofagogastroduodenoscopia revelou pangastrite enantemática moderada e bulboduodenite leve, com teste da urease negativo. A colonoscopia revelou lesões enantemáticas em íleo terminal e cólon ascendente, sem sinais de sangramento. Durante esse procedimento foi realizada biópsia, cujo anatomopatológico evidenciou ileíte crônica inespecífica moderada com áreas de erosão e colite crônica moderada ativa e ulcerada, com focos esparsos de criptite aguda.

A suspeita de LES baseou-se nos critérios estabelecidos pelo American College of Rheumatology:2 exantema malar, lúpus discoide, fotosenssibilidade, proteinúria persistente > 500 mg/dL, serosite e FAN. Foi introduzida prednisona 60 mg/dia e mantida cloroquina 250 mg/dia. A paciente evoluiu com melhora do estado geral, diminuição da circunferência abdominal e ganho ponderal, e iniciou seguimento ambulatorial.

Decorridos três meses do início do tratamento, a paciente encontra-se em acompanhamento ambulatorial, assintomática, sem ascite, com hábito intestinal regular de uma a duas vezes por dia, fezes pastosas sem sangramento, e ganhou 4 kg.

DISCUSSÃO

O LES é uma doença autoimune com manifestaçõesclínicas que podem afetar qualquer órgão ou sistema.1 A inflamação das membranas serosas da pleura e do pericárdio, apesar de inespecífica, é relativamente frequente, constituindo um dos 11 critérios do American College of Rheumatology para a classificação de LES.2 A inflamação das membranas serosas, que incluem pericárdio, pleura e peritônio, pode levar a dor, acúmulo de fluidos, aderência e até mesmo fibrose.3 Em recente estudo prospectivo de 1.000 pacientes europeus com LES acompanhados por 10 anos, a frequência de serosite foi relatada em 16%.3 A serosite peritoneal apresentando ascite (chamada peritonite lúpica) é especialmente rara.4

O trato gastrointestinal pode estar acometido no LES.5,6 No entanto, as manifestações gastrointestinais são, na maioria das vezes, causadas por infecções ou reações adversas da medicação. Os sintomas relacionados à doença em si não são tão comuns como o envolvimento de outros órgãos, como na nefrite lúpica. Por outro lado, a incidência de manifestações gastrointestinais pode ser subestimada clinicamente, uma vez que algumas são inespecíficas e podem não haver sintomas abdominais.5,6

A diarreia aguda é uma manifestação clínica comum a várias doenças. Suas causas podem ser agrupadas em duas categorias principais: infecciosas e não infecciosas. Mais de 90% dos casos de diarreia aguda são causadas por agentes infecciosos, e são frequentemente acompanhadas de vômitos, febre e dor abdominal. No caso apresentado, inicialmente a diarreia associada ao quadro de ascite não nos trouxe dúvidas quanto a uma possível síndrome diarreica aguda, baixa, não invasiva e de etiologia infecciosa. Todavia, a ausência de melhora após 48 horas e a atividade vigente do LES motivaram uma investigação mais apurada. A ausência de alterações nos exames laboratoriais direcionou o diagnóstico de diarreia como manifestação do LES. Quando o acometimento gastrointestinal está associado à atividade do LES, as causas a serem consideradas são vasculite mesentérica e enteropatia perdedora de proteínas.5,6 A hipoproteinemia apresentada pela paciente pode ser justificada tanto pela proteinúria quanto pela enteropatia perdedora de proteínas. É possível, ainda, que o quadro intestinal tenha sido secundário à vasculite mesentérica, pois respondeu prontamente ao tratamento da doença de base.

Em um estudo de necropsias, constatou-se que 60%-70% dos pacientes com LES apresentavam peritonite, enquanto apenas cerca de 10% deles foram diagnosticados clinicamente.5 No caso apresentado, a paciente apresentou ascite moderada de início insidioso como manifestação inicial de LES. Na prática clínica, frente a um quadro de ascite visível como o desta paciente, o diagnóstico correto da causa da ascite é o primeiro passo essencial para o sucesso do tratamento. A ascite pode apresentar-se de forma aguda ou crônica, com ou sem dor, e isso pode ser causado basicamente por dois fatores: hipertensão do sistema porta ou doenças do peritônio. Esses fatores deflagram um processo mais amplo, cíclico, que justifica e perpetua o constante acúmulo de líquido abdominal. Afinal, esse processo resume-se à ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, retenção de sódio e água, aumento do volume plasmático e extravasamento para o líquido ascítico.7

Não obstante, a abordagem diagnóstica específica é iniciada pela distinção entre esses dois fatores deflagradores por meio da paracentese diagnóstica. Assim, na hipertensão do sistema porta, a ascite é formada por um mecanismo que envolve apenas o aumento da pressão hidrostática vascular, resultando classicamente em um transudato, enquanto na lesão do tecido peritoneal (seja inflamatória ou neoplásica) há alteração da permeabilidade de seus vasos, originando um líquido exsudativo rico em proteínas.7

A ascite, ainda pouco compreendida, envolve provavelmente um mecanismo multifatorial. Sugerem-se dois fatores deflagradores: em um, os linfócitos B autorreativos produzem autoanticorpos que se ligam a antígenos circulantes, formando imunocomplexos que se depositam no peritônio, desencadeando uma reação inflamatória local; em outro, vasculite de vasos do peritônio ou da serosa de órgãos abdominais. Independente do fator deflagrador, a ascite no LES é uma condição peritoneal, resultando classicamente em um exsudato.

A peritonite lúpica deve ser encarada como diagnóstico de exclusão, e exige extensa avaliação na busca de causas mais frequentes de ascite exsudativa, como carcinomatose peritoneal, mesotelioma primário, pseudomixoma peritoneal, carcinoma hepatocelular, peritonite tuberculosa, peritonite fúngica, peritonite associada ao HIV, síndrome nefrótica, enteropatia perdedora de proteína e desnutrição grave.7

O prognóstico da peritonite no LES é geralmente bom, caso o tratamento específico seja instituído oportunamente.3,4,8 Por ser uma doença com substrato etiopatogênico inflamatório, os esquemas terapêuticos existentes baseiam-se no uso de anti-inflamatórios não hormonais e corticosteroides.3,8,9 Embora a serosite lúpica normalmente responda aos anti-inflamatórios não hormonais ou ao tratamento com corticosteroides, casos refratários que levam ao acúmulo persistente de líquido na cavidade serosa foram relatados na literatura.3 Nesses casos, imunomoduladores ou imunossupressores, bem como procedimentos cirúrgicos como a pleurodese e a fenestração pericárdica, podem ser necessários.3,9

CONCLUSÕES

A serosite é uma característica comum no LES; enquanto a peritonite lúpica é mais rara, muito provavelmente por ser subestimada clinicamente. Ainda assim, a peritonite lúpica deve ser considerada como diagnóstico de exclusão, e requer extensa avaliação clínica em busca de causas alternativas de ascite exsudativa. O prognóstico é geralmente bom, e o tratamento baseia-se no uso de anti-inflamatórios não hormonais e corticoesteroides, obtendo-se boa resposta. Para casos refratários, medidas alternativas individualizadas são indicadas.

Recebido em 03/11/2010.

Aprovado, após revisão, em 02/11/2011.

Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.

Faculdade de Medicina, Centro Ciências da Vida, Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas.

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  • Correspondência para:

    Dr. Henrique Pott Junior
    Av. Onze de Junho, 730/124 - Vila Clementino
    CEP: 04041-002. São Paulo, SP, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Fev 2012

    Histórico

    • Recebido
      03 Nov 2010
    • Aceito
      02 Nov 2011
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