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Sobre mosaicos e consensos: Gaudí o Brasil e a artrite reumatoide

EDITORIAL

Sobre mosaicos e consensos: Gaudí o Brasil e a artrite reumatoide

Licia Maria Henrique da Mota

Doutora em Ciências Médicas, Faculdade de Medicina, Universidade de Brasília - FMUnB; Professora Colaboradora de Clínica Médica e do Serviço de Reumatologia, FMUnB; Orientadora do Programa de Pós-graduação, FMUnB

Artrite reumatoide (AR) é uma doença sistêmica, crônica e progressiva, caracterizada pelo comprometimento da membrana sinovial, predominantemente das articulações periféricas. A doença não tratada ocasiona dano radiográfico, incapacidade funcional e mortalidade precoce. Sua prevalência é estimada em 0,5%-1% da população mundial.1

Acredita-se que entre as diversas personalidades possivelmente acometidas pela AR estaria o arquiteto catalão neogótico Antoni Placid Gaudí i Cornet (1852-1926), cujas concepções plásticas tornaram-se mundialmente famosas e viraram símbolos de Barcelona, cidade onde passou a maior parte de sua vida.2

Gaudí teria sido acometido desde sua infância por um tipo de reumatismo, possivelmente uma artrite idiopática juvenil, embora não haja registros de deformidades características da doença no artista. Os longos períodos de repouso e limitação impostos ao jovem pela possível doença articular teriam infl uenciado profundamente sua forma de observar e retratar a natureza.2

Entre as diversas modalidades de representação artística nas quais Gaudí se destacou, podemos sublinhar o mosaico, forma de arte decorativa milenar caracterizada por um embutido de pequenas peças de pedra ou outros materiais formando desenhos, integrados de maneira harmoniosa.

O Brasil, com sua mistura harmônica de etnias, culturas e credos pontilhando sua vasta extensão territorial, pode ser comparado, simbolicamente, a um fabuloso mosaico de Gaudí - peças muito diferentes entre si compõem um todo coeso e único em sua diversidade.

No entanto, manter a coesão e a harmonia ao lidar com toda a diversidade das macrorregiões brasileiras, com seus cenários econômicos e sociais tão distintos, a fim de homogeneizar condutas e práticas para o manejo de doenças crônicas, não é tarefa das mais fáceis.

Foi esse o desafio da Comissão de Artrite Reumatoide da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) ao escrever o Consenso 2012 da SBR para o tratamento da AR.3 O consenso é um instrumento educativo, mais que uma diretriz normativa, que permite a seus autores acrescentar dados da experiência e a opinião de especialistas à evidência científica.

Se, como publicação, o consenso perde em grau de recomendação e força de evidência, ganha como ferramenta educativa, ao valorizar a experiência de quem convive com as dificuldades da prática diária no manejo da doença. Assemelhase também a um mosaico, com as opiniões dos especialistas que participam de sua elaboração, muitas vezes diversas e conflitantes, harmonizando-se em um documento final unido pelo amálgama da evidência científica.

Avaliando as características tão peculiares de um país gigantesco e singular em seus aspectos socioeconômicos como o Brasil, de que forma montar um mosaico/consenso harmonioso utilizando peças tão díspares entre si?

Haveríamos de considerar, sem dúvida, a evidência científica e os grandes avanços no conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos da AR, com o desenvolvimento de novas classes terapêuticas e a implementação de diferentes estratégias de tratamento e acompanhamento dos pacientes, como controle intensivo da doença e intervenção na fase inicial dos sintomas.1

Mas também urgia levantar o impacto dos elevados custos relacionados ao cuidado da AR, que decorrem tanto de fatores diretos quanto indiretos, e que competem com os (limitados) recursos para a saúde em outras intervenções essenciais.

De forma às vezes conflitante, ao consenso/mosaico caberia pontuar, em um momento de transição epidemiológica, que ao mesmo tempo que comorbidades como hipertensão arterial sistêmica, doença coronariana e diabetes mellitus, tão prevalentes em nossa população, deveriam ser consideradas como fatores importantes no acompanhamento dos pacientes com AR, as doenças transmissíveis endêmico-epidêmicas (que ainda são um importante problema de saúde pública no Brasil) também deveriam ser contempladas no documento.

E assim foi elaborado o Consenso 2012 da SBR para o tratamento da AR, com o objetivo de fazer recomendações sobre o tratamento da AR no Brasil, considerando-se as características peculiares de nosso país, como disponibilidade de drogas, nível socioeconômico da população, aspectos farmacoeconômicos e ocorrência de diversas endemias. Em consonância com a publicação próxima das Diretrizes para o Tratamento de AR, o Consenso apresenta 20 recomendações e um fl uxograma de manejo medicamentoso da doença.

Gaudí, tão conhecido pela estética de sua arte, era também homem de espiritualidade elevada - tanto que no Vaticano está em andamento o processo de beatificação do arquiteto.4 Em seus momentos de introspecção, Gaudí escrevia pensamentos, dentre os quais notabilizou-se o seguinte: "A criação prossegue incessantemente por meio do homem, mas o homem não cria: descobre."

Recentes diretrizes norte-americanas e europeias para o tratamento da AR foram publicadas, e a evidência científica que serviu de lastro para elas é a mesma que nos embasa. Assim, não foi nosso objetivo criar recomendações completamente diferentes do que é cientificamente comprovado e atualmente aceito como correto para o tratamento da AR, mas descobrir uma forma de adaptá-las à realidade brasileira.

Eis, então, nosso mosaico.

  • 1
    Mota LMH, Cruz BA, Brenol CV, Pereira IA, Fronza LS, Bertolo MB et al 2011 Consensus of the Brazilian Society of Rheumatology for diagnosis and early assessment of rheumatoid arthritis. Rev Bras Reumatol 2011;51(3):199-219.
  • 2
    Azevedo VF, Diaz-Torne C. The arthritis of Antoni Gaudí. J Clin Rheumatol 2008;14(6):367-9.
  • 3
    Mota LMH, Cruz BA, Brenol CV, Pereira IA, Fronza LS, Bertolo MB et al 2012 Consensus of the Brazilian Society of Rheumatology for treatment of rheumatoid arthritis. Rev Bras Reumatol 2012;52(2):135-74.
  • 4
    Terragona JM. Antoni's Gaudí beatification. Available from: http://www.antonigaudi.org/Eng/443/443/1.htm [Acessed on December 17, 2011]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Mar 2012
  • Data do Fascículo
    Abr 2012
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